Repercuto aqui entrevista realizada por Elias Pinto, publica no Diário do Pará, do dia 15 de novembro, com a devida autorização do autor. O livro terá lançamento em Belém, no dia 18
“Havia 40 pianos em Santarém numa época remota. Tinha-se a pretensão de ser uma civilização diferente, uma cultura próxima do litoral. Imagina se em Belém uma moça saísse de shortinho na década de 1960, 70... Em Santarém era normal”
Lúcio Flávio Pinto deixou Santarém, sua terra natal, aos cinco anos de idade. Mas Santarém e sua história jamais deixaram de lhe habitar as lembranças, o faro jornalístico, a memória. Que ele agora compartilha com o leitor nas 900 páginas da reedição ampliada de Memória de Santarém. O livro, através de um conjunto de dados e análises, ao iluminar o passado santareno, revela-o como “ferramenta para se posicionar hoje e amanhã”. Lúcio observa, na apresentação do volume (e que volume!), que “esse conjunto de informações, extraídas de jornais e outras fontes cotidianas, mostra que esta terra tem história e tem inteligência”.
O livro, que teve Miguel Nogueira de Oliveira e Nicodemos Sena, diretor da Editora Letra Selvagem, como organizadores, reúne crônicas e artigos publicados durante 25 anos no jornal O Estado do Tapajós (já extinto) e no portal www.oestadonet.com.br.
, editado a partir de Santarém pelo jornalista Miguel Oliveira.
“Quando decidimos organizar mais essa edição, verificamos que Lúcio Flávio continuava a produzir importantes textos sobre a vida econômica, política e cultural do Baixo Amazonas, que não estavam contidos na primeira edição. Além disso, nesse hiato de 15 anos, Lúcio teve acesso a documentos inéditos que, ora confirmavam ou davam nova versão a fatos ocorridos em Santarém”, enfatiza Miguel Oliveira. “Essa edição também incorpora resultados de pesquisas acadêmicas, por exemplo, sobre o período escravocrata em Santarém, com base em registros da Justiça. Há também a transcrição de mensagens radiofônicas destinadas a familiares de pessoas que moravam ou trabalhavam em lugares distantes no vale do rio Tapajós.”
Memória de Santarém será lançado em Belém na próxima terça-feira, às 18h, no auditório do Ministério Público Federal, na Domingos Marreiros. E em dezembro em Santarém.
Na entrevista a seguir, Lúcio Flávio Pinto, 76 anos, fala sobre o método na elaboração do livro, que reflete seu próprio trabalho jornalístico, em busca da verdade, do fato, que desenvolveu ao longo de seis décadas de profissão e o fez ser reconhecido como o mais importante jornalista da Amazônia, premiado não só no Brasil, mas também no exterior. Entre outras distinções, foi considerado pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, com sede em Paris, como um dos mais importantes jornalistas do mundo, o único selecionado no Brasil para essa honraria.
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“A minha formação passa pelo método de pensar, que é rigoroso. Jornalismo é sentir o pulso da notícia, da informação”
P Esta é a segunda edição de Memória de Santarém, certo?
R Sim. Os artigos saíram durante um longo tempo como encarte no jornal O Estado do Tapajós, e foram reunidos, na primeira edição, em um álbum, mas com letras pequenas. Esta agora é uma nova edição, modificada, corrigida e ampliada, que resultaram em 900 páginas.
P Tudo que está no livro saiu antes no jornal?
R A parte noticiosa foi toda retirada de jornais de Santarém. A outra parte, sobre narrativa de viajantes, foi retirada de livros dos viajantes que percorreram o Baixo Amazonas.
P O que Memória de Santarém se aproxima e difere de outro grande livro sobre Santarém, o Tupaiulândia, de Paulo Rodrigues dos Santos?
R O Paulo Rodrigues dos Santos não fez uma história sistemática. Nem eu fiz também. Há passagens muito interessantes em Tupaiulândia: ele conversou com uma senhora em Santarém, de mais de 100 anos de idade, que foi amante de vários cabanos. O livro dele é uma espécie de antologia, reunião das crônicas que ele escreveu, muitas sob pseudônimos, como era costume na época, principalmente quando o assunto era mais picaresco. Inclusive, em 1971, publiquei duas páginas em A Província do Pará sobre esse livro que ele estava escrevendo. O governador Fernando Guilhon soube e mandou editar, muito mal editado, por sinal.
P Pela Imprensa Oficial do Estado.
R Sim. E depois o Cristovam Sena reeditou, com qualidade, pelo ICBS, o Instituto Cultural Boanerges Sena. Paulo Rodrigues foi o historiador da cidade. Ele publicava em O Jornal de Santarém. Há também uma história sobre Santarém do Arthur Cezar Ferreira Reis, mas que é muito fraca.
P O Rodrigues dos Santos não tinha formação como historiador...
R Não. E também não precisava ter formação como jornalista para escrever. Aliás, ele escrevia muito bem, ainda que de modo arcaico. Era poeta... Um beletrista.
P Agora, em Memória de Santarém, já temos o jornalista reunindo informações.
R Como jornalista eu não publico aquilo que não tenho como fundamentar. Não me baseio na memória livre, solta, mas em documentos que consegui reunir em jornais da época.
P Como conseguiste reunir esses jornais mais antigos de Santarém?
R Alguns eu próprio arranjei e também recebi de uma amiga uma coleção quase completa de O Jornal de Santarém. Mas às vezes eram fontes que não serviam, por trazerem poucas informações, ter muitos adjetivos. Tinha-se que ler vários exemplares para aproveitar alguma coisa. Consegui também documentos oficiais.
P Pesquisaste ainda em que outras fontes?
R Muitas informações tirei dos jornais de Belém. E também de inquéritos sobre o caso traumático da cassação do prefeito Elias Pinto: utilizei documentos que ainda não tinham sido acessados. Saiu também outro livro só sobre isso.
P A Tragédia de Santarém. A propósito, ao longo da publicação dos teus artigos no jornal O Estado de Tapajós, prosseguiste com a coleta de dados, de pesquisa, ou já estava tudo previamente reunido?
R Já havia muita coisa quando comecei, mas aumentou muito durante o curso do trabalho. Posso dizer que não se tinha, antes deste livro que está sendo lançado em segunda edição, uma fonte segura de informações. Agora se tem, já que a anterior estava esgotada. E mesmo quem tem a primeira edição vai querer ter a nova, que ficou muito melhor. É uma edição à altura da história de Santarém. E do Baixo Amazonas.
P Bem, não és também historiador...
R Mas lembra que sou sociólogo.
P Sim, claro. Ia dizer que são poucas as cidades brasileiras, inclusive capitais, que dispõem de um livro como este Memória de Santarém. Principalmente se pensarmos nos municípios paraenses, tão carentes de memória.
R Temos em Vigia, Bragança, Alenquer, mas não é uma história sistemática. Nem a minha é. É uma história episódica. No caso de 1968 – da cassação do prefeito Elias Pinto, do MDB, afastado nove meses depois da posse pela Câmara Municipal, que tinha ampla maioria de vereadores da Arena, e da repressão violenta aos manifestantes de apoio ao prefeito, que resultou em três mortos e outros tantos feridos –, eu aprofundo bastante. De qualquer maneira, como este livro sobre Santarém, acredito não ter nenhum, com seu grau de aprofundamento. Memória de Santarém passa a ser obra de referência.
P Memória de Santarém é um legado ao lugar em que nasceste. Mas também tens o Memória do Cotidiano, em vários volumes, sobre Belém.
R Sim, saíram 12 volumes
P E estes 12, reunidos, dariam um volume considerável.
R Ah, sim. Mais que o de Santarém.
P Como situas Santarém e Belém em tua vida, digamos, afetiva.
R Vim para Belém com cinco anos. Então minha formação se deu aqui, mas nunca deixei de acompanhar Santarém, ainda que esteja há muito tempo sem voltar lá. Mas escrevi muito sobre Santarém. A primeira palestra que fiz na minha vida foi em Santarém, em 1966. Não havia muita informação sobre Santarém, que está tendo agora, mais acadêmica, com a Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará). Não fiz ciência, história etc. Fiz jornalismo, mas de rigor. A minha geração foi a que começou a entrar para a universidade. Na geração anterior ninguém queria ter formação acadêmica, entrar para a universidade. Era considerada a capacidade de escrever, de observar. A nossa geração percebeu que precisava ter uma formação acadêmica. E a minha é o método de pensar, que é rigoroso, e dele não abro mão. Tanto que uma das minhas características é que não se consegue desmentir o que publico, pois são fatos verificados. E contra fato não há argumento. Foi isso que fiz em relação a Santarém. Cada vez que ia de férias, trazia coisas para escrever sobre o município.
P Isso norteia o teu jornalismo, a comprovação do fato, o uso da documentação. Mas no caso de Memória de Santarém usaste como fonte o que foi publicado em jornal. Isso garante a informação?
R Olha, sempre fiz jornalismo, e para mim, em essência, ele é investigativo. Dizer jornalismo investigativo é pleonasmo. Quando fui escrever um artigo sobre Filipe Patroni, para uma seção que havia na Província, de retrospectiva, era o irmão do Dalcídio Jurandir que fazia, mas ele ficou doente e assumi o lugar durante um tempo. Foi quando descobri, aos 17 anos, o Patroni, mas sob outra ótica. Ele não era o doido, como se dizia. Ele teve problema mental no fim da vida, mas foi até advogado do imperador. Não é porque sai no jornal que você incorpora tudo. Sei fazer a diferença entre matéria boa e ruim, e esta, a ruim, não pode servir de referência.
P Durante tua trajetória jornalística já te queixaste de que a academia, à qual não deixas de pertencer como sociólogo, algumas vezes se utiliza como referência do jornalismo na linha de frente, apurado no calor da hora, mas sem citar esse uso na bibliografia, como se assim procedendo desmerecesse o rigor da pesquisa. No caso de Memória de Santarém, o que foi reproduzido de jornais, te preocupa a apuração, a checagem?
R Preciso checar. Não vou transmitir uma coisa errada. Neste caso, não uso ou vou aprofundar. Cabe nesse tipo de jornalismo o I-Juca Pirama, do Gonçalves Dias: meninos, eu vi. Nas minhas matérias, para vários lugares, só eu ia. Nas cheias do Baixo Amazonas, ia de voadeira testemunhar, reportar a realidade, às vezes com o Manoel Dutra. Por exemplo, ninguém fazia matéria sobre o ceifador de juta, o juteiro, que trabalhava sob condições terríveis, da metade do corpo para cima sob o sol, metade para baixo na água, duas temperaturas diferentes. Era um trabalho medieval em pleno século XX. Jornalismo é isso, sentir o pulso da notícia, da informação.
P Sei que a colônia santarena é grande em Belém, mas, em particular, como o leitor belenense, já que o livro será lançado primeiro aqui, deve receber o Memória de Santarém? O que representou Santarém para a capital, que já foi a segunda cidade do Pará, e o que representa hoje?
R Belém nunca admitiu que Santarém tivesse autonomia, isso criou um ressentimento, uma frustração na população local. Havia condições de Santarém ser capital do estado do Baixo Amazonas, do Tapajós, do Oeste. Tem uma cultura. Havia 40 pianos em Santarém numa época remota. Havia a pretensão de ser uma civilização diferente, um modo de vida litorâneo, porque tem a praia, as pessoas saíam de short. É uma cultura mais próxima do litoral, a praia na frente da cidade, como no Rio de Janeiro. Imagina se em Belém uma moça saísse de shortinho na década de 1960, 70... Em Santarém era normal.
P E como o santareno deve receber a sua memória?
R Deve receber com boa vontade, mas também cobrar se é bom ou não, o que está certo ou errado.
P E as novas gerações?
R Em geral, as pessoas não estão preocupadas com a história de Santarém. Há uma penetração muito grande de imigrantes.
P Que havia já com os arigós.
R É, mas os arigós cultivaram uma identidade. Atualmente, com a soja, e essa penetração, não se tem mais uma visão histórica, o que foi Santarém. Comparar Santarém com Parauapebas, Canaã dos Carajás, Marabá, o padrão de vida dessas cidades, em função de Carajás, é muito maior que em relação a Santarém. E vale a pena se aprofundar nessa história. A população que nasceu em Santarém vai poder conhecer muitas pessoas importantes, citadas no livro, e que já não se tem mais referência sobre elas.







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