O educador Raimundinho é um testemunho vivo do avanço do grande capital sobre as fronteiras amazônicas.
O mar da história é agitado. Cheio de ameaças e guerras. E, vez em
quando, os fatos põem o mundo de pernas para o ar. Colocam tudo em
suspenso. É pandemia, é a distância dos seus entes queridos, são rusgas, e a
ameaça à uma debilitada jovem denominada democracia, aqui do lado de baixo do
equador.
O mar da história vez em quando sacode a vida das pessoas, e tende a desagregar
os laços familiares, de parentesco e de amizade. Promove a busca por outros caminhos,
incentiva a aventura por dias melhores em outros cantos que não a terra de
origem. Navegar é preciso, diria o poeta.
Migrar, rebateria o outro. A
Amazônia é um mundo de migração. Assim, como São Paulo, “a maior cidade
nordestina fora do Nordeste”, como brinca Tom Zé.
Migrar é a busca por dias menos
doridos. Migrar é busca por ar. Migrar é um dos maiores fenômenos dos nossos
dias. Migrar é um ato pela vida. Um aquilombar em outro lugar.
Incremento dos modos de produção,
avanço das tecnologias, as desigualdades sociais, crises econômicas e políticas,
guerras, desastres naturais, falta de terras para cultivar e ausência de
oportunidade de trabalho são alguns dos fatos motivadores do migrar.
A migração tem tecido longo nas terras
dos Carajás, no sudeste do Pará. Raimundo
Gomes, natural do Piauí, que hoje soma ano de vida faz parte deste ambiente. Isidoro e Rosa, os pais baixaram nas terras do
Pará para labutar em castanhais. A prole totaliza nove almas. É gente.....
Isidoro era chefe de barracão de
castanhal no povoado denominado de Barreira Branca, de senhor conhecido por
Dionor. Rosa fazia as atividades do lar e zelava pela educação dos “barrigudinhos”. Quando Raimundinho somou 60 anos os pais
ainda estavam neste plano, hoje não mais.
Contradições é o mar da vida.
Isidoro no comando da caderneta/contabilidade do barracão de oligarquias rurais, o
filho comunista. Raimundinho é um educador na essência da palavra. A forjar
trincheiras do educar. Educação na práxis do libertar.
Já dizia João Cabral de Melo
Neto, “um galo sozinho não tece uma manhã”. E nas lidas da vida o educador
somou com muitos pares. Criaram o Centro de Educação de Pesquisa, Assessoria
Sindical e Popular (Cepasp) na década de 80. O espaço ganhou outros ares. Agora
é uma comuna. A luta no campo e na cidade. Terra e moradia. Cidadania.
Diz a lenda que o ‘comandante”, -
como os mais jovem tratam o educador -, desde miudinho era sabido. E, por isso
foi enviado para escola em Marabá. Cantídia foi quem garantiu abrigo ao rebento
alheio. No estranho mundo da migração as vezes ocorrem acolhidas.
Pelo que contam Angelina e o
Thiago, a primeira, companheira de Mundinho há mais de 40 anos, e o segundo, rebento, Isidoro e Rosa puxaram a mula do
castanhal e conseguiram montar um hotel na Av. Antônio Maia, o Hotel Santa Rita.
Nestes tempos o agrônomo e
cientista social migrou para Belém para cursar universidade. Em prosas sobre políticas
e canções, o militante manifestou em várias ocasiões não morrer de amores pela
capital. O motivo ao certo nunca compreendi. Lá se defendia como era possível, até vender
trecos no Ver o Peso.
O mercado é a mãe dos errantes. A
república e a casa de estudantes a família dos migrantes. Assim foi a lida do pai
de João e Thiago, vindos ao mundo na tumultuada década de 1980. Os meninos são
os rebentos biológicos. Tem a Maria das Neves, adotiva, radicada em São
Luís/MA e a Jane.
Após a “faculdade” do Ver o Peso,
aprovado em Agronomia, o “comandante” caiu em sala de aula da rede pública e
cursinho a ministrar aula de matemática. Fazer as contas no organizar a luta no
educar.
Nem só de trabalho vive o cabra.
Nas férias Raimundinho adotava o bairro do Cabelo Seco como chamego ao lado dos
parças Ademir Martins e do poeta e escritor Ademir Braz (Pagão), dentre outros ilustres
devotos da luta, poesia e birita.
Na brecha do tempo corria
comunidades rurais ao lado dos manos/as de atividades do Movimento de Educação
de Base (MEB). MEB, CPT e CEBs, a santa trindade de alinhamento na formação dos
sindicatos combativos. Foram fundamentais nas pelejas.
Militar por direitos nestas
plagas distantes sempre foi atividade de risco. Mundinho é testemunho de
enterros a perder de vista. Contam os antigos que quando da morte José Cláudio
e Maria, mortos há pouco tempo em Nova Ipixuna, a voz do comandante embargou no
momento do discurso da despedida. A fronteira faz gente querida. Apesar da
aridez.
Anos de 1970. Sombrios dias. Tempos
de militarização da Amazônia. Dias da Guerrilha do Araguaia.
Em 1976, já com o “canudo” Raimundinho
senta na praça em Marabá. Dona Rosa não nutria simpatia pela militância do
filho. Por ironia, vários militares tinham no hotel dos pais de Raimundinho
como morada. “O bagulho era doido”. Contraditório. Por conta do que ouvia dos
militares, Rosa corria terço pela proteção do filho.
Acampamento em delegacia pela libertação do sindicalista de Eldorado, Arnaldo, morto na década de 90. |
Em tramas com parentes pintou uma
chance legal de voltar à terra natal. A oportunidade era um trampo no INCRA. Em
1977 se alinha com a Angelina por conta de atividade no Projeto de Integrado de
Colonização (PIC), na cidade de Elizeu Martins/PI, onde a companheira labutava.
O agrônomo era escalado para
atividade David Caldas. O começo de tudo. Gelada, música e pá. A labuta era mediada por contratos marcado por
intervalos de desemprego.
O mar da história distancia.
Aproxima. O mar da história arrebenta sobre a rocha a fazer outros desenhos,
criar outros mapas, juntar outras letras e gramáticas.
Angelina puxou Juazeiro/BA, enquanto
Raimundinho correu trecho para Marabá. Chão de dá em doido. Não havia zap. A
carta acodia o recomeço. E, assim, assado, Angelina caiu na estrada a conhecer
Marabá.
A fronteira é madrasta e o
comunista fez enlace na Igreja de São Francisco. Tinha até vela. Já faz
quarenta e tantos anos. Chico curte bicho e a natureza, assim como Mundinho.
O mar da história faz cada uma. Quem
acreditaria que o comandante aventuraria Serra Pelada em busca de riqueza
mágica? “Rodado” na década de 1980 o agrônomo encarou a peleja. Ganhou um
troco, fez lambança pra burro, e comprou a casa onde mora até hoje.
Casa que sempre abriga outros
errantes: gente de pé rachado da roça, brancos pobres, pesquisadores, e por aí
vai.
Há sempre um armador para uma
rede. Um prato de comida, uma dose de pinga, uma prosa amena. Outro dia a
matutar ocorreu que o cafofo do Raimundinho tem a feição de um quilombo. Um território
alternativo.
Esse dedo de prosa era somente
para felicitar o educador, já tá a se estender em demasia, a transbordar maresias, a
lembrar que “ o homem coletivo sente a necessidade de lutar”.
Fotos: arquivo da família. Texto feito a partir da deduração da Angelina e Thiago.