terça-feira, 29 de agosto de 2017

Lamentos de um cego no trecho



Amazônia. O calor é escaldante. Racha a taboca, como se diz no trecho. Em média 40º na sombra. Clima incensado por poeira e queimadas. “Cu do diabo”, resmunga um vizinho de mesa.  

Numa feira de cidade média, o cão espia a máquina a assar os frangos. Ao lado um monte de sacos de carvão. Nutro preferência pelo frango assado em brasa. Acredito que fica mais saboroso. O frango assado é a salvação do solteiro ou do preguiçoso.

No restaurante acanhado, dono de raras cadeiras, duas senhoras gordinhas zelam pela comida. Dez “paus” o prato feito (PF). É bem servido. Paga o preço.  O movimento é tímido. Mas, todos os dias, ao meio dia, uns cinco peões religiosamente tomam uma mesa.

Além de comida, o restaurante negocia cerveja em lata. Duas grandes TVs exibem jogos ou programas de esporte, conforme o calendário e o horário dos jogos. Um aparelho fica na entrada da empresa, e a segunda na parede externa.

A TV da rua é sucesso de público. Pode até ser jogo da segunda divisão. À frente do aparelho sempre precipita uma pequena multidão a insultar o técnico, como ocorre nos jogos do Papão.  

Em dois sacos um senhor acomoda a empresa. Os sacos estão amarrados a um banco de metal. O corpo do negociante de badulaques eletrônicos é franzino. Estranho um senhor a negociar eletrônicos: brinquedos, pendrives, rádios e outros penduricalhos.  O chapéu protege a cabeça do sol. Ele acomoda os sacos sobre à mesa que ocupo.

De um dos sacos ecoa um choro clássico, Lamentos, atribuído a Pixinguinha e Vinicius de Morais. Parada do começo do século passado. Indago ao comerciante informal: “ é um choro. É rádio? Ele responde: “um pendrive. Negocio. ” Ele não insistiu em passar a peça para frente. Apanhou o PF e seguiu porta à fora.

À porta um senhor cego e negro estaciona. Com o olhar típico de quem não enxerga dana-se a contar as cédulas de um dos bolsos da camisa encardida. Há várias de cem reais. Uma delas cai. A parceira dele não nota. Alguém avisa. Ainda existe humanidade na aridez diária, presumo. Ela agradece por mais de uma vez. “ Deus o guarde!” “Deus o guarde!” “Deus o guarde!”