sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Apanhados na fila da perícia médica


Logo cedo, 6h, corre para o outro lado da cidade. A missão é encarar um processo de perícia de deficiência. Já nem sabe qual é a fase e quantas vezes já foi ao soturno lugar.  Na espera, somente ele outro senhor de homens.

A maioria no corredor mal iluminado é composto por senhoras.  Elas falam de crises de depressão, coisas de desenlace, casa, útero, vagina e do coração. Ah, esse maltrato ente do peito.

Uma delas é muito grande. Como se em casa estivesse, deita em um dos bancos do corredor de espera. Há algo de filme de terror no ambiente. A senhora conta histórias de gravidez e abortos. Uns provocados, outros espontâneos. Para cada mal aventado, recomenda um tipo de garrafada. Diz que toma uns quatro tipos por dia. Foi a segunda a ser atendida. Ao levantar, a senha de atendimento despenca de uma de suas inúmeras dobrinhas. Anda com o apoio de uma bengala. Um esforço hercúleo, o apartamento do corpo da senhora do banco.

Uma outra, exímia contadora de causos, entre risos e expressões faciais tristes, roga aos colegas de fila uma ajuda para a passagem de volta para casa, apesar de ser passe livre. Diz que precisa de 20 contos para voltar paras a comunidade. Algumas pessoas ajudam. A solidariedade soa como se tática de sobrevivência fosse entre os despossuídos.

Ela dispara causos. Um no rabo do outro. “Meu irmão era feio mais que o cão. Tirava a vida na caça, ali na comunidade de Solimões. Fez filho mais que preá. Não fosse a diabete tombar ele, ainda hoje fazia menino. Vivo fosse somaria mês que vem 97. No Solimões é bom demais de viver. Tudo quieto”.

Noutro momento lembra do tempo de andanças pelo vasto mundo das águas do Amazonas, o rio. “Ponta do Cururu é lugar bonito, mas, é arriscoso. Periga de barco afundar. Maresia forte. Coisa de cobra gigante que tem por lá. Quando o barco afunda o jeito é ficar de bubuia. Como a gente perdeu farinha nesse desmantelo da vida”.

Meia vida. Meia morte. Meio dia. Resta esperançar. Sol de lascar. Antes do meio dia arrisca de ser atendido. Após o atendimento no ambulatório, precisa reapresentar o laudo à assistência social, e rogar que a carteira de passe livre chegue antes de 12 meses.

Carlos Walter Porto-Gonçalves, presente!

 

Um bamba no riscado das geo-grafias, que sempre deixou explicito em falas, escritas, prosas amistosas e em outras oportunidades, de que lado samba, ali, junto, colocado aos colocados em condições de subaltenização, em particular nas Amazônias e América Latina. 

Maracatu pesado, Carlos Walter Porto Gonçalves (CWPG) deixou este plano no dia 06. Todavia, os seus escrevinhamentos permanecem como marcas a serem seguidas, comentadas, criticadas e reinterpretadas neste mundo agoniado marcado pela gula capital, que a tudo fagocita.

No dia de sua partida/permanência proseávamos com jovens do curso de Engenharia Sanitária, da Ufopa, em Santarém, em quente tarde, a obra Amazônia: encruzilhada civilizatória, em uma disciplina ministrada pela professora Thulla Esteves.

Entusiasmados, os jovens empenharam esforços na construção de seminários sobre o livro. Um riscado estranho à grade em que são obrigados a cumprir para efeito de acesso a diploma.

Carlos Walter Porto-Gonçalves deixou este plano no dia 06. 

Para além das geo-grafias transborda os ensinamentos de CWPG. Sabença pra mais de metro, como se diz por estas paragens. Sabença ancestral é uma das balizas do ler/compreender/interpretar/escrevinhar de Walter.

Uma marcha junto a indígenas, quilombolas, camponeses e tantas gentes da vasta sociodiversidade das Amazônias. 

Nas quebradas do Acre, Xapuri, fez par com Chico, o Mendes, assassinado ao apagar das luzes do ano de 1988.

A Chico e às suas companheiras e companheiros de seringais e paragens mais é creditado a ideia de uma modalidade de reforma agrária para a floresta, onde o ser o humano não é apartado da natureza. Assim germinou a possibilidade das Resexs. Carlos falava com entusiasmado sobre o tema/ensinamento.

Bem, não tenho autoridade para falar de CWPG, apenas li algumas coisas de sua autoria e ouvi palestras.  Apenas sei um cadinho da sua relevante contribuição ao debate sobre a região e aos povos.

Aqui, apenas agradeço a sua generosidade em enviar um artigo para a composição de um Dossiê sobre o Baixo Amazonas, publicado em 2018.

O professor Bruno Malheiro (Unifesspa) foi o mediador da empreita.  

CWPG, agradecido! CWPG, presente!.

Acesse o Dossiê AQUI