No roer das horas o asfalto a tudo devora. Matas, rios, jacarés, passarinhos e encantarias. Assim, por aqui sucedeu. Sucede. Um beijo de Judas, deus progresso. Um punhado de moedas e alguns montam na onça. A cidade a se reconfigurar ao dissabor do muque capital.
“A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe. O debaixo
desce” é Science na veia do mangue. Por estas paragens, a Av. Fernando Guilhon
(PA 453) subjugou matas e rios. Matar é a ordem do desenvolvimento. Rodovia,
navalha é uma artéria da cidade de Santarém/PA. Ela faz convergência com a BR
163 (Cuiabá- Santarém) e com a PA 257 (Everaldo Martins). A avenida integra uma
geografia de expansão do município polo do oeste paraense.
Nunca mais naquela estação encontrei meu coração. Samba triste
traficando melancolias. Nesta quadradura, prédios, loteamentos, grilagens, ocupações
vicejam com desenvoltura. O preço de imóveis é algo transcendental. Seja lote,
terreno, casa, apartamento ou prédio. A rodovia liga o Centro ao Aeroporto, e possibilita
acesso ao território do povo Borari (Alter do Chão). O progresso a tudo
fagocita. A todo momento reclama sangue, plasma, placenta, corações, rins, pâncreas
e tristeza. O cabra é de morte! É de matar! Matas, rios, risos, jacarés, passarinhos
e encantarias.
O negócio seguinte. Cemitérios de vidro. Shoppings. Coral de cães desafinados
no natal. Farmácias, laboratórios, padarias, pizzarias, petshop, botecos, pequenos
comércios - que bravamente resistem aos atacarejos -, hotéis, hamburguerias, motéis,
movelarias e afins espocam por todos os flancos. Um campo minado. “A cidade não para. A cidade só cresce”. Muitos
para o beleléu, alguns para o céu. Jogo de poder. Malícia. Carícia em criptomoeda.
Faz calor. A fuligem de queimadas precipita sobre solidões,
políticos anões, depressivos e suicidas. Na ópera de sobrevivência, sob o ruído
de automóveis, depois das 18h vendedores de churrasquinhos despontam ao pôr do
sol. Avista-se de longe os fios de fumaça. Negociantes de frutas e peixes completam
a aquarela. Territorialidades ao sabor do improviso. Outros mundos em universo
de escassez. Comunhões de excluídos. Seios e culhões à mostra. Procissão de mortos
vivos ruma em busca de algum templo.
Cisco nos olhos. Tudo embaçado, de cabo a rabo. Entre mesas,
bancos, cadeiras, beliches e outros tipos de movelaria funcional, era possível
avistar uma cristaleira na loja Pica Pau. A peça destoava de tudo ao redor. Quase um
mutante entre os convencionais. Era negra. Elegante. Faltava-lhe um vidro na
composição da porta. Não era grande. Nem pequena.
A exibição sucedia de forma descuidada. A peça estava sempre
empoeirada. Por mais de 12 meses a contemplamos. Checamos o preço. Fora da nossa
realidade. Transbordava o precário orçamento de educador. Não havia espaço que
a acomodasse no acanhado lar. Em meio à fumaça, não se avista a lua. Tenho a
vista fraca. Um palmo diante do nariz nada enxergo. Tudo é brasa.
O realejo histórico explica que a cristaleira existe desde o século
XVII. O mimo nasceu como distinção de classe. Louças, pratarias e talheres eram
ali expostos. Na casa, o móvel ocupava
lugar privilegiado. Um empavulamento de poder. Uma carteirada. Zero ternura, mermão.
“O cara tava me devendo um troco. Não tinha como pagar. O que
possuía de valor era a cristaleira. Tomei!”, explicou o vendedor em uma das
muitas incursões à mal ajambrada loja. Segundo
ele, para a venda fez uma redução radical do preço original com vistas a
despachar o móvel com maior brevidade possível.
Existe amor em Santarém? Em recente visita à loja para verificar
preço de uma banqueta, indagamos a outro vendedor o destino tomado pela
cristaleira. Estávamos curiosos em saber quem a adquiriu. Com desenvoltura o
senhor explicou que o dono original a resgatou.
Deus duvidará de algo? O prestador de serviço conta com entusiasmo
juvenil que o dono havia se enrabichado por uma enteada. Ganhou o mundo movido
pelo mais pueril amor. A longevidade do romance durou menos que um algodão doce
em quermesse de tarde modorrenta. Música
para televisão.
Inúmeras vezes contemplado com chifres pela Lolita, drasticamente decidiu
em retornar para o município, onde de imediato readquiriu o móvel. Sabe-se
que hoje vive em exílio amoroso em algum ramal na estrada que leva até Alter. E,
que arrumou a cristaleira, que por mais de um ano tomou poeira e chuva à sua
espera.
Em meio a tempestades de mágoas, encontros e desencontros, uma moça
vasta em trajes mínimos, empacota diuturnamente em um mercantil, toneladas de
tédios. Rareia no peito da vida bom
coração.