*Ed Wilson Araujo
Nas noites de insônia, quando a angústia entala na garganta, abro a janela para tragar o vento morno das madrugadas de dezembro. Levanto aquecido, calço os chinelos, atravesso o corredor estreito e espio na fresta a rua lá fora.
A cidade mórbida aguarda a manhã úmida chegar. Cruzo os dois lances de pista da rua 15 de Novembro, desço a ladeira da fábrica de gelo e alcanço o cais.
Subo a mais alta barranca e salto. O farfulhar da água nas encostas do rio convida a um mergulho. Para a morte? Não.
Deslizo sobre a lâmina d’água escura. Com a ponta do dedo indicador escrevo em letras fosforescentes esta crônica.
Cada palavra salta em relevo da folha lisa e fria, como uma teia envolvendo a madrugada. Sapos-cururus soltam suas onomatopéicas canções, fazendo os efeitos sonoros do texto.
Os bichos da noite, esses seres estranhos que fingem assustar a gente, participam da construção do enredo.
O motor da balsa, ao longe, ruge vagarosamente. Todos regem o manifesto escrito na teia d’água.
As corujas rasgam a escuridão com suas rajadas sonoras. Sinal de morte? Tudo vive e morre a cada momento. O agora não era. Passa a ser e já não é mais daqui a um milésimo de segundo.
No cair de um meteoro o rio é outro em sua própria filosofia.
Uma letra, um acento, um ponto, uma pausa... meu dedo vai tecendo as frases na folha d’água.
Ratos remexem o lixo no monturo. O esgoto escorre pelas bocas de lobo. Mucuras, lagartos, peixes... todos atentam ao manifesto feito na madrugada. O que querem? Por que falam? Só a manhã dirá.
Quando o sol nascer e as turbinas do avião anunciarem os primeiros passageiros cruzando o céu nevoento, o rio fará sua prece, em letras gigantes, dizendo:
Eu nasci a quilômetros daqui. Percorri várias cidades, desci barrancos, contornei montes, descansei nos remansos, desci nas cachoeiras, ultrapassei as corredeiras, moldei as pedras e agora corro livre o meu caminho.
Mas aqui e acolá, sinto as barreiras de concreto tentando represar-me. Jogam esgotos em mim, derrubam as matas ciliares, atiram sacos de lixo, resíduos tóxicos; enfim, tudo que não presta.
É como se eu fosse a cloaca do mundo. Querem fazer do meu leito um leito de morte, mas eu resisto. Cresço nas cheias, recolho-me no verão e acolho você nas minhas praias.
Ofereço os peixes para o seu alimento e a água que sacia sua sede. Só quero seguir meu rumo em paz.
Ao concluir seu manifesto, uma tromba d’água entrou em cena. De manhã bem cedo, o rio cresceu rapidamente, invadindo as ruas da cidade, lambendo as beiradas das calçadas, batendo às portas para que todos lessem sua súplica.
Do avião, os passageiros liam o manifesto em letras gigantes na superfície da água. Os peixes pulavam, os sapos em cântaros, as canoas dispersas amontoaram-se com a maresia, enfileiradas para apontar o caminho das letras dispostas de margem a margem.
Tambaquis, acarás, caranhas, piaus, tucunarés, piranhas, pintados, filhotes e outros bichos d’água vieram à tona convidar o povo para o ato público.
Procissões desceram a caminho do Porto da Balsa. Católicos, evangélicos, umbandistas... toda gente foi para a beira do rio assistir ao espetáculo dos peixes dançantes, sapos falantes, grilos, tracajás performáticos e canoeiros ligeiros.
Pintassilgos, rouxinóis, beija-flores e bem-te-vis formavam a sinfônica com vôos bailantes.
A cidade toda parou para assistir o dia em que o rio falou e disse.
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Jornalista, mestre em Educação, professor da Universiade Federal do Maranhão (UFMA), no campus de Imperatriz. Militante do Movimento de Rádios Comunitárias e do PT http://blogdoedwilson.blogspot.com/