quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Carajás – Marabá debate drama de crianças que embarcam clandestinamente no trem da Vale

O problema de embarque de crianças e adolescentes no trem da Vale já soma mais de duas décadas. Após três anos de audiência pública realizada na Assembleia do Maranhão, a Câmara de Vereadores de Marabá discute o tema provocada pelo MP

 
Dia e noite é possível ouvir o apito do trem da Vale em qualquer um dos núcleos urbanos do município de Marabá, sudeste do Pará. Os rios Itacaiúnas e Tocantins serpenteiam a cidade que desejava ser a capital do estado de Carajás. É tempo de cheia. As baixadas sofrem com a subida dos rios.

No bairro Coca Cola, localizado no km07 da cidade, por ficar mais próximo da Estrada de Ferro de Carajás (EFC) é um dos mais impactados. Paredes de casas estão rachadas, a poeira e fuligem de minério não cessam, e o ruído provoca estresse entre os moradores.

Até alcançar o porto do Itaqui, em São Luís, Maranhão, o maior trem do mundo percorre perto 892 quilômetros desde Parauapebas, no Pará. O trem que possui 330 vagões, mede perto de 3.500 metros, e tem a capacidade de transportar 40 mil toneladas. Faz três décadas que os estados do Maranhão e Pará socializam todos os tipos de passivos provocados pelo extrativismo de minérios das terras dos Carajás, em particular o do ferro.

Trata-se de uma economia baseado em enclave, explicam especialistas no assunto, onde cabe ao Pará o papel de mero exportador de commodities. Em resumo, não gera riqueza onde opera. Os péssimos indicadores sociais em todos os gêneros servem como um espelho do processo de saque das riquezas locais.

Os números sobre saneamento, educação, saúde, desmatamento, violência de todas as ordens- física e simbólica – contra as populações locais, com ênfase aos camponeses e condição de vulnerabilidade de crianças e adolescentes não dialogam com a riqueza gerada.

A cada balanço apresentado, apesar da oscilação do mercado internacional há seis anos, a empresa registra novo recorde. Em 2014 encerrou com 319,2 milhões de toneladas de produção de minério de ferro.

O aumento foi da ordem de 6,5 por cento em relação ao ano de 2103.A meta era crescer 4 por cento, conforme relatório da empresa. O mercado asiático tem sido o destino do minério de ferro de excelente teor das terras dos Carajás, em particular a China e o Japão. E tudo pode aumentar com o incremento que ocorre em Carajás.

Até 2016 a mina de ferro da Serra Sul, ou S11D, deve iniciar a produção em Canaã dos Carajás fronteira com o município de Parauapebas. O mesmo equivale ou possui proporção maior a exploração do minério de ferro iniciada na década de 1980, na Serra Norte. Com o projeto a mineradora irá aumentar a produção de ferro em 90 milhões de toneladas por ano, mas com capacidade de dobrar a produção.

A iniciativa que inclui mina, duplicação da Estrada de Ferro de Carajás (EFC), ramal ferroviário de 100km e porto está orçada em US$ 19,5 bilhões. Projetos desta envergadura tendem a reorganizar todo o território em sua área de abrangência, desde a mina até o porto, e provoca tensões em áreas de projetos de assentamentos da reforma agrária, áreas de remanescentes de quilombos, reservas indígenas, além de unidades de conservação ambiental.

Economia extrativa

Dados compilados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá indicam que o extrativismo mineral no Pará é o principal item da balança comercial do estado, e contribui com 90% do Produto Interno Bruto (PIB). O mesmo minério que pesa no PIB é responsável por uma renúncia fiscal de R$ 9 bilhões por ano por conta da Lei Kandir (lei complementar federal n.º 87, de 13 de setembro de 1996), que desonera as empresas em recolher o Imposto de Circulação de Mercadoria e Serviço (ICMS) dos produtos primários e semielaborados.

A desoneração em R$9 bilhões se aproxima do orçamento total do estado para o ano de 2013, estimado em R$ 13 bilhões, assim explica a dissertação de mestrado em Direito de Victor Souza. Análises de Lúcio Flávio Pinto sinalizam que entre 1997 a 2001, a Vale contribuiu para o erário com menos de R$ 6 milhões em impostos sobre minério de ferro exportado, o principal item da pauta de exportação do Pará e do Brasil.

A Lei Kandir começa a valer no mesmo ano em que a CVRD é privatizada, crava o relatório da CPT. É neste cenário que ocorreu na tarde de hoje mais um capítulo sobre a vulnerabilidade de crianças e adolescentes.

Menino do trem de Marabá

Fazia calor na tarde de hoje,25, quando do início dos trabalhos da audiência pública na nova sede do legislativo marabaense, localizado na rodovia federal Transamazônica. O emblema da agenda da integração econômica foi fomentada pelo regime militar no século passado. Trata-se de um marco da intervenção estatal na Amazônia, que ganhou musculatura com a implantação do Programa Grande Carajás, na década de 1980.  

A Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Marabá, ligado ao Ministério Público do Pará (MPE) promoveu a oitiva para se refletir sobre o fenômeno Meninos do trem. A ação pública contra a companhia é da responsabilidade da 1ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Luís. O assunto é tema de um processo administrativo (PA 116/2005 – 1ª PIJ) em tramitação na promotoria, cujo titular é o promotor de Justiça Márcio Thadeu Silva Marques.

O assunto não é novo e não se constitui como problema isolado relacionado à infância e à adolescência no empreendimento da mineradora. É comum nas estações em que os trens de passageiros param encontrar crianças comercializando água, comida, frutas e outros produtos para os passageiros da classe econômica. Tem-se registro ainda de prostituição nos trechos de ampliação da EFC desde 2011.  

Avaliação do plano de segurança da Vale com relação ao tema foi a questão central da reunião que contou com representantes dos MPEs dos estados do Maranhão e Pará, Defensoria Federal do Maranhão e conselheiros tutelares dos dois estados dos municípios impactados pela ferrovia, e edis de Marabá.  

O engenheiro canadense James Bertrand, perito contratado pelo Ministério Público do Maranhão apresentou relatório sobre o assunto na EFC, sublinhando os pontos mais delicados de vulnerabilidade, ou hotpoint, como reza o vocabulário técnico. Lilian Freire, promotora de Marabá presidiu a audiência.  

A Vale, que já foi denunciada por manter serviço de espionagem contra defensores de direitos humanos e ambientalistas tentou impedir a realização da oitiva a partir de  liminar.

Apesar da estratégia jurídica em abortar a audiência, parte do staff da mineradora relacionada com o assunto compareceu, entre eles, representantes do setor de direitos humanos, da Fundação Vale e consultores que apresentaram diagnóstico e ações do plano de segurança para evitar a viagem clandestina de crianças e adolescente nos trens. A medida resulta de uma indicação da audiência ocorrida em São Luís, em 2012.

O doutor Antônio Brasiliano, representante da consultoria que leva o seu sobrenome, contratado pela Vale, em tom cheio de empáfia antes de apresentar dados, desfilou um rosário sobre o próprio currículo. Em mais de um slide carregou em logomarcas de empresas públicas e privadas para quem presta serviços. Pegou mal.  

Em diagnostico sobre a situação, socializou com a família, evasão escolar, a limitação das ações de políticas públicas a responsabilidade do fenômeno. Ele alega que a partir de 2007 tem ocorrido o declínio da presença clandestina de crianças, que equivocadamente tratou como menor.

Conforme ele, a média que chegava à casa de 200 crianças e adolescentes em 2007 despencou para 20. Aumentar a vigilância eletrônica em pontos considerados críticos foi um dos indicativos do técnico. A diretora da Fundação Vale apresentou algumas ações sociais desenvolvidas na região. Medidas consideradas mera perfumaria pelo defensor público da União, Yuri Pereira Costa.

Uma tradutora colaborou para a apresentação do perito Bertrand, que ironizou a soberba de Brasiliano. O canadense iniciou a apresentação ressaltando a má vontade da Vale em não facilitar o acesso a documentos e relatórios que pudessem embasar a sua investigação. A maioria dos textos em português foi outro limitador.

Sobre o relatório da Vale, Bertrand sublinha que existem mais pontos sobre os riscos que correm as máquinas que passagens que ressaltem a dimensão humana do problema. Em alguns trechos do documento da Vale ele não encontra indicadores sobre acidentes e atropelamentos na EFC. Enfatiza ainda que a empresa não menciona que a mineradora se desobriga em financiar o deslocamento das crianças e adolescentes para os locais de origem.

Ao ressaltar elementos técnicos da rotina de operação da EFC pontuou sobre a baixa velocidade dos trens e o elevado números de pontos de paralisação\paradas, além de pontes de mão de única. Melhorar a monitoração eletrônica e edificar torres de observação em pontos críticos foram algumas medidas aventadas na tentativa de se equacionar o fenômeno, que ele não acredita que terá solução por conta da  agenda de expansão e da ausência de vontade política do empreendedor.

Sobraram críticas contra a Vale quando da abertura para a manifestação da plenária. De edis a conselheiros tutelares ocorreu manifestação contra o autoritarismo e indiferença da empresa com relação à região onde ela opera.

Os vereadores Toinha e Ronaldo Iara sublinharam a qualidade do debate, e alfinetaram que a empresa apenas engana a população local.  Trocar informações sobre a mesma situação nos estados de Minas Gerais e Espirito Santo, onde a Vale opera foi uma das medidas encaminhadas pela mesa da audiência.

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