Faz dois meses que Arigó luta
com uma ferida no pé esquerdo, na altura do tornozelo. Esporão de arraia o
feriu ao afrontar o rio Tapajós. Em tempo de seca do rio é necessário cuidado. É
comum as arraias nas beiras.
Os antigos ensinam que é
necessário zelo no caminhar, e, é aconselhado arrastar os pés nos beirais dos
rios. Desta forma, ao se deparar com o animal, ele segue em fuga e não ataca o
estranho visitante de sua morada. A tática reside em não pisar o bicho.
A dor é insuportável, contam
os agraciados com o esporão. Falam que dura mais de 24h. Arigó lembra que um
colega faz um mês que não consegue se locomover. Pelo fato do amigo não poder
se deslocar, o cabra sente-se feliz em poder andar, mas, tá aperreado com a
demora na cura da ferida.
O machucado resulta de
uma pescaria em praia de Belterra, no Baixo Amazonas. O negro atarracado, de
uns sessenta verões é uma espécie de “faz-tudo” de um prédio recém erguido nas
proximidades do Mercadão 2000, em Santarém.
Arigó acompanhou um estranho
em praia de Belterra, quebrada que ele, apesar de nativo, filho de um cearense
com uma caboca do Pará, desconhecia.
Em Belterra, lá no comezinho
do século passado, o multimilionário Ford intentou o monocultivo de
seringueira. Neste período abundava a migração de nordestinos para a Amazônia.
Processo animado pelo governo Vargas.
Ainda hoje é possível
notar resquícios do monocultivo e do maquinário da época. E muita gente a
lembrar a história. Prosa para muitas garrafas de café.
No prédio do patrão Arigó
faz tudo. Mostra os apartamentos vazios a pretensos futuros inquilinos. São
quatro andares. Tudo sem elevador. O homem
zela pela limpeza, carrega pacotes e malas de moradores/as.
No dia em que fomos conhecer
um apartamento de vista para o rio, uma senhora parecia se deslocar em férias
rumo às praias da região. A senhora
branca, portadora de vitiligo, trajava bermuda, chapéu para se proteger de um sol
inclemente e óculos escuros.
O negro a ajudou na
empreita em descer as malas e sacolas até o portão. No calor do momento não
havia reparado para a distinção de classe. Ao papel em condição de
subalternização do senhor.
Somente depois, ao
retomar a leitura do premiado livro Torto Arado, do geógrafo baiano Itamar
Vieira Junior, bem como as lembranças de obras de Dalcídio Jurandir, a situação
clareou.
Soma-se ao quadro, o episódio
ocorrido em Minas Gerais, aquele em que um professor manteve por longos anos
uma senhora negra em condição análoga à escravidão. Recordei ainda casos de trabalho escravidão na
cadeia da produção do açaí no Marajó e em fazendas e carvoarias do sul e
sudeste do Pará.
Não sei exatamente ser
esse o caso de Arigó. Ele porta boné, chinelos, camisa e bermudas simples. Tudo
desprovido de grife. Tudo adquirido ali mesmo pelos arredores do Mercadão. Tem
a fala mansa e pausada. Faz as coisas sem a agonia das horas dos grandes
centros. Tem a pressa do balanço das redes ribeirinhas, do navegar de antigas
embarcações da região.
Arigó é uma demonização pejorativa
dada aos migrantes nordestinos por estas paragens, em particular o cearense. O termo
invoca pouca sabença, leseira, matutice, bocó, etc.
Ao contrário do termo
desqualificador, na orla da cidade, eles hegemonizam o comercio de varejo. Aquele
que vende de tudo: tralha de pesca, panos, roupas, redes, eletrônicos importados
da China. E, alguns, militam ainda na agiotagem. A pratica por aqui mata. Mata quem deve, e
também o “emprestador”. Por estas paragens morre o bravo, morre o manso.
Na cidade os arigós são
respeitados pelo apego ao trabalho. Sempre abrem os comércios independentes de
feriados pátrios ou religiosos. Mesmo agora, quando do nascimento do filho do
Deus, ou do primeiro dia do ano.
Assim como o restante da
cidade, a orla passa por profundas modificações. A cidade se verticaliza a
olhos vistos. A especulação imobiliária desfila com a desenvoltura de um
rinoceronte.
E, em terra de arraias,
botos e cuias, até delegado grila e especula, favorece garimpo, e prende quem da
floresta intenta cuidar.
Ao largo do rio, o barco
segue....Amazonas....Tapajós...Arapiuns....
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