A escola é a primeira estrutura que o movimento ergue quando da ocupação
da terra grilada. É sob a lona preta que crianças, jovens e adultas fazem o
letramento para além da junção de sílabas. É em ocupações, marchas e acampamentos
que Charles Trocate fez-se poeta, filosofo, pensador e escritor. Fez-se doutor
nos rincões do Pará, em terras dos Carajás, solo onde mais se mata nas pelejas
pela terra no Brasil.
Ainda gito Trocate engrossou as fileiras da marcha pela reforma
agrária que redundou no Massacre de Eldorado, há 29 anos, na Curva do S. morte
matada. Morte anunciada, ordem de governador. Em suas errâncias a praxe era
carregar livro em seu embornal. As fileiras do MST foi o seu açude de saber. A escola
desprovida de paredes e grade curricular. Escapou de veneno de cobra, escassez,
peixeira e bala. Correu o mundo, EUA, Europa e América Latina a refletir sobre
os descaminhos das amazônias.
É doutor mais que muito doutor. No derradeiro dia 10, a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), concedeu a ele e outros mestres o título
de doutor por notório saber em Geografia Humana. Mas, poderia ser em Política
ou Filosofia e arte de sobreviver em seara de escassez. Agora Trocate é doutor do mundo e do papel. Ainda
que já reconhecido por outros doutores de mundo e de academia, doutores de empates,
bares, feiras e currutelas. Não à toa assina uma penca de prefácios, orelhas e
apresentações de publicações mundo afora.
Quantos/as outros/as doutores do mundo e do papel foram tombados/as pela fome, moléstias, peixeira e bala???
A seguir, o discurso que realizou na UFBA quando do recebimento da
comenda. Sawe!!
Amigas, amigos, camaradas,
companheiras, companheiros, gente desta parte do coração.
Há uma marcha humana desde os
sertões e os seus interiores melódicos que já dura mais de 200 anos. Os
andrejos que daqui partiram chegaram a Amazônia parte setentrional do pais para
nos dizer como cantou Belchior “que o nordeste é uma ficção, nordeste nunca
houve”. Chegaram como sertanejos,
colonos, posseiros, garimpeiros, nômades cronicamente nômades. Chegaram sem o
estado e contra o estado. Artífices de si mesmos, cooperando com a floresta e
com as sociedades da floresta. Produziram empates, guerras camponesas e o homem
histórico – Chico Mendes para nos dizer que há uma dívida ecológica do norte
global com o sul global, bem antes da Amazonia transformar-se em refúgio do
antropoceno pelas dinâmicas da supressão. As mutações do capital.
Nesta marcha da qual sou parte
originada do Ceará se movimentando contra a cerca e contra a seca, saímos Tomé,
no Piauí fomos Torquato e na transição para a imensa floresta nos transformamos
em Trocate. A corruptela do sobrenome indica as adaptações ou as recriações num
sucedâneo de acontecimentos. Nesta marcha levaram o que tinham e tudo me
alcançou porque sou eles, e a primeira vez foi quando aprendi a ler pela
literatura de cordel. As sextilhas me avisaram da coragem. Aprendi a ler cantando a forma de ser e ter
alegria, a de ser gente e a de enfrentar a escassez por ela.
Descobrir Chico Mendes este homem
das múltiplas florestas e dos seringais contra a ideologia da floresta vazia em
1990. Era a primeira idade da vila de Parauapebas que havia se transformado em
cidade em 1988, depois de termos cruzado a rua do Arame, que separava a Vila do
Rio Verde dos primeiros habitantes. Construímos
o Bairro da Paz, e nossa casa ficou na esquina da rua Marabá com Chico Mendes e
está esquina se transformou no meu mundo de criança e adolescente.
Dois anos depois em 1992 passou
por lá um grupo de jovens em trabalho de base para ocupar uma terra. A
campesina Lourdes minha mãe se entusiasmou – nos transformamos em Sem Terra
porque sem terra já éramos, nos transformamos em classes perigosas porque a
miséria era nosso último limite. Foi a segunda vez que o Nordeste me alcançou,
a insurreição da terra!
Em 1993 tornei militante político
do MST e decidi fazer militância política como profissão de fé- mobilizado
pelas leituras e pelas descobertas decidi escrever (sem saber escrever). Tudo
que viera depois da virgula pela luta é
uma consequência desta forma de estar em embate, pelo que falta, para se
intelectualizar através de longos e demorados processos de formação. Porque o
conhecimento valido é para mim aquele que é dialógico e transformador, no MST
me encontrei com a filosofia, a arte de enxergar o palmo diante do nariz. E
sigo utilizando-a para isso!
Por essas exegeses de quererem
saber tudo- quando me perguntam como escritor qual é minha escola literária –
eu respondo, o MST e se dobram a pergunta de qual é meu estilo literário –
repito, a minha mãe.
Passei quase duas décadas como
militante do MST no Pará – e nos últimos treze anos dedico meus esforços na
construção do Movimento pela Soberania Popular na Mineração -MAM. Entendi pela
ação cultural da ocupação da terra a dinâmica da luta de classes no solo. Falei
e escrevi sobre tal e com os meus camaradas agir- e nos últimos anos, como se
virasse a terra de cabeça para baixo em circunstâncias adversas – o de entender
a função social do subsolo, e a luta de classes
pelo caráter da extração e uso dos minerais.
A experiência prática como
coletivo nos levou a classifica-lo como problema mineral cujas as preliminares estão
em sempre ser organizado de fora para
dentro, de ser antidemocrático nas suas decisões e de ser economicamente a
expressão do desenvolvimento do subdesenvolvimento. Nos levando a minério-dependência
em circuito fechado.
Quando decidimos nacionalizar o
conflito Carajás – o tirando da Amazonia demos o apelido de MAM, o seu exercício
chegou e continua a chegar em outros lugares- a maldição da abundância é o
imperativo do moinho satânico – e agora chega para amedrontar na sua forma de
realizar capitais, nas expressões de emergência climática e transição
energética – o capital é eletrointensivo, digamos então expansão energética.
O parlamento empresarial
brasileiro fustiga o nosso papel nos negócios da transição energética – chegar
a 10% do Produto Interno Bruto pela mineração. Desde que vendemos o modelo
mineral brasileiro em 1997, alteramos os ciclos e agora ele está incontrolável,
a economia, a natureza e a sociedade, obstinadamente pagamos por esta rotina
que nos consome por inteiro.
Para ser exato e com as
perturbações da dialética escrevi para o livro da Baiana Juliana Barros – A política
da mão de ferro da mineração nas terras de Carajás – o que é o arquétipo dessa
dinâmica que nos interroga a toda hora como agentes do presente seja onde for:
‘O Programa Grande Carajás (PGC)
é ainda indecifrável – enigma que cada vez mais se ideologiza em seu modelo
proposto e na decisão de implementá-lo. E, quando se conclui que parece não
haver mais nada a ser interrogado, soam descabidos, para muitos, os tons do
debate e da crítica política. Desse sentimento, sobressai com precisão o livro
A mão de ferro da mineração nas terras de Carajás de Juliana Barros. Em sua
pesquisa, o PGC, aos poucos, decifra-se em aspectos até então incomunicáveis:
produzir o progresso pela ruína.
Ao fim e ao cabo, não se trata de
quanta ruína é assimilada ou a quantos ela atingirá, afinal, trata-se de uma
construção política. Carajás tornou-se um princípio que arrasta consigo uma
totalidade de relações e de mutações empresariais. E se transmuta de acordo com
interesses dos que manuseiam esse projeto, burguesias institucionais que o
criaram e o determinam numa variação de associações e jogos de poder. Ao mesmo
tempo, é a mais radical ação econômica, para dentro e para fora, a fagocitar
tudo, com enorme custo para a economia nacional.
A invenção de Carajás – como
escreve Juliana Barros – é o não reconhecimento pelo Estado monocultor das
diferenças, da alteridade e se legitima na objetificação e precificação da
natureza. Esse sistema de poder inferioriza o outro, seja pela subalternização
na exortação da acumulação, seja pelo tecnicismo da linguagem jurídica.
Em A mão de ferro da mineração
nas terras de Carajás, a tomada de terra constitui o fundamento máximo das
commodities minerais e a lei da propriedade torna-se arbítrio no modus operandi
da empresa mineradora em detrimento do direito do outro subjugado e da
destruição da natureza. Sobre essa imperiosa face do modelo mineral, Juliana
Barros foi incisiva e nos ajuda a reordenar pensamentos e, ao mesmo tempo,
refazer perguntas acerca das relações de poder na tomada de terra.
Carajás é funcional ao
sistema-mundo de produção de mercadorias, isto é, legitima o papel das
burguesias dadivosas e amplifica retrocessos sociais. No caso do Programa
Grande Carajás, o projeto foi delineado como extração infindável sem repartição
da riqueza produzida e acoberta o fundamental da trama: ruína na periferia e
acumulação econômica no centro do capital – o que origina cálculos e equívocos
de interpretação, pela força que coloca na ideia de que estamos presos à
inevitabilidade do capitalismo e à governança da despossessão.
Portanto, enfatizo a
originalidade deste livro e o compromisso intelectual da autora. O enfoque dado
não esmorece o entendimento dos fundamentos do problema, ao contrário,
ressalvados limites de tempo e de espaço, é possível consagrar o ineditismo da
provocação que a pesquisa realizada por Juliana nos traz: uma conjuntura em que
o aprisionamento da terra, em mecanismos de poder, retroalimenta o sistema de
acumulação pela mineração, assim como cristaliza suas artimanhas e seus
impactos na vida de excluídos da repartição das riquezas’.
E porque o problema mineral não
foi interrogado antes – porque é difícil percebe-lo dentro das suas forças de
desenvolvimento e progresso? Agora pouco importa saber porque não antes, mais
se juntam a nossa inquietude o de somar a função social da terra com a função
social do subsolo este é o ecossistema da questão – porque esta forma de vender
natureza e ganhar dinheiro continua a nos empobrecer, desde os efeitos
geofísicos das minas que ficam aqui – ao invés de um país minerador somos é
minerado numa crescente desestabilização do território nacional.
Dizer e enxergar isso nos custa
muito caro, no entanto há compensações, por exemplo chego ao nordeste “esta
região que nunca houve que é uma ficção” pela terceira vez, (das muitas vezes
que cheguei) para receber o título de notório saber em geografia humana- chego
trazido pelas mãos do Geografar e por muitos e muitas que vibraram com esse
processo e pelo consentimento acadêmico de que este acontecimento tem sua boa
hora. Não chego sozinho, tenho comigo uma espantosa multidão, chego sem
adereços, sem penduricalhos ou mesmo caprichos. Passei a vida entre
universidades, a universidade nos cabe também!
Por fim, reconhecer que a
construção do MAM na região é a forma de percorrer em turno contrário – a
marcha contínua dos que um dia saídos daqui chegaram lá, e é a forma de
introduzir nos nossos dilemas outras conjurações – a bem dizer de Chico Mendes
este inconfundível revolucionário, precisamos em circunstâncias como essa ao
menos empatar, provocar empates ao capital mineral.
Salão Nobre da Reitoria da UFBA, Salvador, Bahia, 11 de abril de 2025
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