ISMAEL MACHADO
O psiquiatra José Ângelo Gayarsa, que se notabilizou por
fazer ‘sessões e consultas’ na televisão, costumava dizer que a família- pelo
menos a nossa família tradicional ocidental- era fonte das nossas maiores
mazelas e traumas psíquicos ao longo da vida. Creio que Nelson Rodrigues
assinaria embaixo dessa afirmação com um largo sorriso no rosto.
É difícil olhar ao lado ou mesmo internamente e não ter uma
sensação de que nossas fissuras emocionais não são causadas por esses anos de
convivência familiar, negociando emoções, suprimindo dores, alimentando
fantasmas de rancores, invejas e solidões. Há saída? Difícil dizer.
Alberto Silva Neto encontrou uma. Ou não, vá se saber, numa
filosofia caetânica, de resto um ícone na vida de Alberto. Expor as fraturas e
as feridas de um relacionamento com o pai e, por tabela, com um avô não
conhecido (e que personagem fascinante) foi um modo de o ator Alberto exorcizar
o pai, o avô, a família. Prestar homenagem ainda que às vezes sombria, foi uma
solução para alguns demônios, anjos noturnos que podem atravessá-lo em noites
perdidas, deitado na rede e olhando a cidade do alto.
Momo, o espetáculo exorcismo, o monólogo das entranhas, a
peça divanesca, o teatro testemunho, ou qualquer outra definição que queiramos
ou possamos dar é, antes de tudo, um atravessar por um terreno pedregoso. Sim,
estamos vendo as águas do mar, a praia lá adiante, mas para chegar até ela, é
necessário talvez cortar os pés nas pedras afiadas que nos separam dessa
suposta recompensa. Não, não nos iludamos. Como o personagem em determinado
momento, precisaremos arrancar fora os calçados e encarar os passos nus.
Alberto Silva Neto é um monstro. É um artista-ator que chegou
a um momento de plenitude dramatúrgica onde a palavra assombro talvez seja a
melhor a nos definir quando o assistimos em cena. Sou testemunha disso. Alberto
fez parte de meu primeiro longa de ficção, Flashdance TF e eu, que sempre o
cogitei para o papel desde a escrita do roteiro, admito não estar preparado
para o que presenciei de forma tão íntima e tão intensa. Cláudio Barros, outro
gigante amado, não me deixaria mentir.
Em Momo, Alberto se despe e se veste. Se traveste de
armaduras e as joga longe. Ao encarar a vida e a morte do pai, entre cartas,
recortes, missivas que mais parecem uma garrafa jogada ao mar, ele nos amarra
ao pé da mesa da escuta. Só que essa escuta não é isenta de dor. Ela nos leva
aos nossos próprios assombros, nossos escuros, ali onde algo nos escava
feridas, nos atropela memórias. É dor feito gozo, como cantariam Gonzaguinha ou
Djavan, que já abordaram essas funduras em letras musicais. Ou aquilo que Caio
Fernando Abreu sempre dizia, sobre a dor de criar algo que é verdadeiro, no
sentido não da palavra verdade, mas aquela coisa que não nos deixa mentir
quando o espelho nos mira de volta nos sombrios momentos de solidão urbana.
O que Alberto busca e ele costuma enfatizar isso, é
ultrapassar a barreira do mero ser-estar ator e ir um pouco além. Ou muito
além. Alberto grita e chora e ri e sussurra e se cala. E entre os olhos
umedecidos ele sorri e confessa ser teatro o que faz. Mas é uma armadilha
também, pois nunca é só teatro. A vida pulsa. No efêmero e no eterno.
Há vícios e virtudes no caminho de qualquer artista. Egos
impelidos a criar e dizer e mostrar algo que são como portas entreabertas,
janelas que iluminam porões empoeirados, onde o fogo que queima gera uma cinza
pouco acessível. Não é uma tarefa fácil sacudir os esqueletos de cada armário.
Em Momo há as compreensões e incompreensões sobre os papéis
de cada um numa história masculina. Paternar. O pai, o filho, o desamparo
materno, o pai que somos, os filhos que fomos, o futuro e o passado que se
embolam. Onde o abraço? Onde o encontro? A voz tonitruante imperativa. A voz do
pai. A voz do medo. Da distância, do afeto suprimido. Pai. Descasquemos as
peles, arrancando as cascas de ferida. O que nos sobra?
Alberto entrega e pede de volta. Reclama compreensão e
aceitação. Esse sou o eu descarnado. Talvez não seja. Talvez seja apenas
teatro. Mas se teatro é vida, é a vida que está sendo jogada em nós?
Ou é simplesmente mais uma folia de momo num carnaval de ruas
desertas?
O palhaço chora. E eu o observo de meu próprio picadeiro.
Alberto? Esse quer se equilibrar na
corda lá em cima. A pergunta que me faço é: há rede para amparar a queda, se
houver?
Ave, Alberto. Te saúdo.
ISMAEL MACHADO