sábado, 15 de fevereiro de 2025

Anapu/PA: 20 anos após a execução da Irmã Dorothy, a violência persiste

Anapu (PA) mudou menos do que deveria 20 anos depois do assassinato, a mando de grileiros, de Dorothy Stang, em 12 de fevereiro de 2005. Desde então, apesar da atenção dada pelo governo federal e a intensa comoção internacional com a morte da missionária americana, outras 21 pessoas foram assassinadas no contexto de luta pela terra no município, localizado a 375 km em linha reta da capital Belém. Leia a íntegra da reportagem da Agência Pública


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Transamazônica: relatos sobre uma desventura entre a Ladeira da Véia e a Ladeira do Sabão

 

Proximidades da Ladeira do Sabão, entre Uruará e Placas/PA. 

 “Eu conheço cada palmo deste chão”, dispara Renato Teixeira, na canção Frete.  A música fez parte da trilha sonora da série de uma TV de amplitude nacional. Os atores Antônio Fagundes e Stênio Garcia encarnavam uma dupla de caminhoneiros. O mote era alumiar as aventuras e desventuras dos carreteiros país afora.  Tempos idos do século passado.

Ao contrário de Teixeira, embananando-me em metro quadrado. Perco-me em guia de meio fio. Meia vida. Meia morte. Ave Maria, Nossa Senhora de Nazaré. Silencio quando o tempo era de falar. Tagarelo, quando o prudente seria silenciar. Meto os pés pelas mãos. Misturo alhos com bugalhos. Arrisco a mão em cumbuca.  Confundo mulher com parafuso. Desconheço sotaques, e se, por acaso, deixei saudade pelos lugares por onde andei. Uma hecatombe bípede a pleitear vaga em Circo de Soleil, em resumo.

Ainda assim, um ás em driblar a escassez, escapar de malária, peixeira, febre amarela, olho grande, praga alheia, sarampo e bala.

Por estes dias, danei-me de saudades dos meus e cai no mundo. Um tombo. Um tonto. Com    numerário contato, meti o pé de Santarém a São Luís. Sertão amazônico para o litoral nordestino. Entre busão (Santarém-Marabá/PA) e trem (Marabá/PA-São Luís/MA), umas 40h de trecho. Sei lá quantos km enfrentei.  Boa parte percorrido pela Transamazônica, a entrecortar as bacias Amazonas/Tapajós/Xingu e Tocantins-Araguaia.

A rodovia foi coisa de milico, como saída para a integração física e subordinada da região. Entregação capital.  Riqueza de poucos, miséria de muitos, foi a equação. A opção virou a região pelo avesso. Reconfigurou feições econômicas, políticas, sociais, culturais e territoriais. Sobre os 50 anos da rodovia, o Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina produziu um belo caderno que busca debulhar a desgraceira.  

E por falar em desgraceira, a seguir, apresento um pequeno relato da minha via crucis sobre jornada de “revortê” para casa. Segue assim, como foi concebido dentro do busão e disparado em rede social.

09/02/2025. Ladeira da Véia. Bandas de Pacajá. Faz umas 3h e uns quebrados que estamos impedidos de circular. Crianças choram, cachorros latem. Adultos irritados, idosos exauridos. Alguns insultam os governos. Nenhuma birosca perto. Um morador relata que passaram a máquina ontem. Com a chuva, tudo virou lama. Puro barro. Impossível circular. Os letrados no assunto recomendam prudência. Faz-se necessário esperar secar um pouco mais a terra. Por enquanto, os veículos somente descem a ladeira. Somente os mais destemidos encaram a subida. Uma garoa se pronuncia. A internet e os carregadores de celular operam no busão.  O que permite a comunicação com parentes e a distração dos passageiros. Não fosse isso, espancariam o motora?

Ladeira da Véia, Pacajá/PA

09/02/2025. Via de regra, os motoras que encaram as estradas da Amazônia são craques. Passados na casca no alho. Todavia, no inverno, o bagulho fica mais complicado. Assim, estamos com o carro preso na lama entre Uruará e Rurópolis, a aguardar algum encantado para ajudar.  O carro quebrou por volta de 3h da manhã. Nenhuma birosca nas proximidades. Queria espiar o sinistro da Educação do Pará neste rolê. E, por falar nele, indígenas, quilombolas e trabalhadores da educação ocupam a Seduc em levante contra absurdos da pasta. Rossieli e Helder meteram goela abaixo um lei que fere de morte a modalidade de ensino modular. Tá bonito o movimento. Impossível não relacionar com a Cabanagem. Guardados contextos e proporções. "Nada sobre nós, sem nós", defende um tema de ordem. E, assim, a COP 30 começou....

10/02/2025. O carro atolado/danificado. Eu a pensar em banho, em uma bela farofa, um café quente, dengo da companheira e a euforia do cachorro e das plantas do quintal.

10/02/2025. Até os carrapatos dos bois das terras griladas/afanadas sabem que é sinistro esse período em vários trechos das estradas do Pará. Existe até mapa dos pontos mais delicados. Sabendo disso, o que impede o poder público, e mesmo as empresas em desenharem uma estratégia de socorro??? Interessante seria os executivos e governantes experimentarem o quão desumano é a jornada. 

10/02/2025. O motora é natural do Amazonas. Corria Manaus-Boa Vista. Tinha 14 anos de firma na carteira. Colecionava algumas experiências com assaltos. Já levou coronhadas de pistola e fora vítima de facada. Exibe-se para uma dama rechonchuda. Em um dos assaltos, policiais executaram três miliantes. Um deles mantinha a peixeira nos costados do condutor, até que o policial alvejou a cabeça do assaltante. "No Amazonas coleciono mais de 30 experiências com assaltos", conta sem muito entusiasmo. Ficou traumatizado.  Tomou remédio para ansiedade.  Por conta dos traumas, ficou a correr somente no perímetro de Manaus. Mesmo, assim, sempre que alguém com ares que ele considerava elemento suspeito adentrava a viatura, o motora parava o carro e corria a rumo ignorado.

Contudo, foi a praga de um amor que o feriu de morte, deixando o seu coração em migalhas. Morto de paixão por uma paraense, largou tudo e mudou para Pacajá. O amor já tinha um filho, resultado de outro enlace. Ela estava separada há dez anos quando consagrou matrimônio com o motorista. Ele narra que ao mudar para o Pará, não tardou alguns meses, a moça voltou para o ex-marido. O motora largou tudo. Mudou para Santarém. Na véspera de embarque de volta para Manaus, foi chamado pela empresa Ouro e Prata. Ele diz que odeia correr o trecho de Pacajá. O coração fica mofino de saudade da pessoa que o deixou com o coração em desgraça. O amor é de morrer. O amor é de matar. " O pior é que ela já viajou comigo algumas vezes. Pense num mundo sem graça", relembra. Novamente apartada do pai do primeiro rebento, ela pediu perdão ao motora, e rogou por reconciliação. Ele não topou. Ela voltou para Manaus. Ele espera em breve largar a nova firma e seguir o mesmo rumo. Não aguenta mais tanto risco.  Murro em ponta de faca.

10/02/2025. A logística da Ouro e Prata lembra a gestão do general "Pançuelo" na saúde durante a pandemia do desgoverno daquela praga nacional que recuso em registrar o nome: um desastre. O motora consultou a central do RS, que não autorizou a viagem por uma via alternativa, a Transuruara, recentemente asfaltada. Trata-se de tradicional trecho de saque de madeira e outros crimes. 

10/02/2025. A jovem do banco da frente mora na roça, em Altamira. O motora a mede com a gula de um retirante de crise climática.  É do Maranhão. Maranhense abunda em terras Paroaras. Eu mesmo sou da terra do poeta Ferreira Gullar. A jovem boleada, com as gordurinhas a escaparem das vestes, tem como destino final a cidade de Manaus. O senhor ao meu lado também vem da mesma cidade que a jovem da roça. Ele vai para Sinop/MT, onde deve ficar uns três meses. Assim como a realidade de outros municípios amazônicos, a cidade do Mato Grosso encarna um “case” do exercício de grilagem.  Tanto que o próprio nome do município remete à empresa de colonização dos tempos da ditadura civil-militar.

Voltando......O cabra já morou por lá. Por conta de envolvimento com drogas do rebento mais novo, voltou para Altamira. A mulher zangou com ele. Em Sinop considerava a vida menos aperreada. O casal tem três filhos. Ela desejava internar a cria em clínica de reabilitação. Ele ponderou que o melhor remédio seria o amor, o zelo. Ele conta que a cria já melhorou bastante. E sobre as birras e ciúme da “conge”, recomenda dose cavalar de paciência. " Não for assim, a gente aparta um do outro", acredita o viajante da poltrona ao lado.

11/02/2025. Nesta modalidade de corre de lonjuras hercúleas em terras Paroaras, o recomendado é andar armado. Tudo pode acontecer. Eu nunca viajo sem carregar em meu embornal pelo menos uns quatro livros. A depender do bus e da estrada é possível ler sem risco do descolamento da retina e dos óculos despencarem das ventas. Nesta desventura que experimento desde sexta-feira, carreguei duas obras de Benedicto Monteiro. Trata- se de releituras ambicionando um possível artigo. Minossauro e Transtempo são os livros. Para distração carrego dois livros de contos de Rubem Fonseca. Um craque no riscado. Foi “puliça”, entre outras ocupações.  Dele, trouxe Pequenas criaturas e Axilas e outras histórias indecorosas. Já li todos. Nestas andanças amazônicas que somam quase 30 anos, é a primeira vez que fico tanto tempo retido no meio do nada. Nenhuma birosca à vista. Bico seco. Só na água. Acho que vou reler o livro das Axilas. Há umas sacanagens bem legais. Inspiradoras.

11/02/2025. O motora informa: estamos na melhor parte da estrada. Lá na frente tem a Ladeira do Sabão!!!

11/02/2025. As senhoras do busão: a primeira, toda pávula fala para a segunda que o único problema que possui é a gula. 60 e tantas primaveras. Toda serelepe. A segunda com mais verões nas costas reclama de fibromialgia e algumas hérnias. A terceira parelha a segunda em primaveras. Tá indo para o Detrito Federal tratar um câncer. Há também crianças. Uma quase viajou sozinha. Em Altamira, o motora agoniado com o atraso, deixou a mãe que fora pegar o de comer para o bebê. Avisaram o condutor, mesmo assim ele seguiu, parando alguns metros adiante. 20 minutos depois a mãe alcança o bus, e arreia indignação contra o motora. Dispara que vai fazer B.O e meter processo na firma. Tomara que cumpra a promessa.

11/02/2025. 10h depois do bus atolar na estrada, chega o socorro, outro bus. Que capacidade.....!!! diria o cronista esportivo.

11/02/2025. Enquanto isso, na Ladeira do Sabão.... Momento de fé... mensagem na traseira de caminhão baú. Ainda sem nenhum vestígio de alguma birosca que possa socorrer a todos nós. “DEUS é tão generoso que te dá a liberdade de plantar o que você quiser. Mas, ele é tão justo, que você colhe somente o que PLANTOU”.   Pelas bandas de cá, o grilo predomina. Assim como as cercas e o gado. “A cerca que cerca o gado é a mesma que cerca a fome”, assim versou César Teixeira, poeta maranhense. A cerca, o gado, o grilo, conluio de grileiros e policias notabilizou o Pará como o estado onde mais se mata em pelejas na luta pela terra. Em fevereiro, soma 20 anos da execução da agente da CPT, Dorothy Stang. Crime ocorrido em Anapu. Mortes de dirigentes sindicais precederam o assassinato da missionária. A exemplo dos casos de Dema e Brasília. Oh Deus, onde estais...?

Mensagem de fé de caminhão baú. Ladeira da Véia, Pacajá/PA

11/02/2025. Ladeira do Sabão. Há um carro atravessado no meio do caminho. No meio do caminho há um carro atravessado. Um trator opera a remoção. Neste período do ano, por estas bandas do Norte, o trator é o rei.

11/02/2025. Em condições normais, eu já estaria em casa desde o café. Saudade do meu dengo, do abraço estimulador de ocitocina, farofa, café com pão e a alegria do Boroo, nosso cão. Não fosse a minha lesera e o cansaço, eu teria atentado para o aviso da moça da Ouro e Prata, em Altamira. A jovem, antes do bus partir, anunciou que daqui a mais três horas, um outro carro chegaria e iria pela Transuruara. A rodovia asfaltada recentemente.  Ninguém desceu. O receio era a demora. Mal sabíamos que ficaríamos por mais de 15 horas na Ladeira do Sabão.

11/02/2025. Diário de bordo da Ladeira do Sabão.  Passageiros buscam frutas na floresta. É possível avistar algumas mangueiras. Ao redor, castanheiras persistem. A questão é quebrar o ouriço. O ouriço é tão bruto quanto a vida. Há um busão quebrado obstruindo a passagem. Estamos a aguardar um trator que foi remover outro busão mais adiante. Estamos nesta situação desde às 3h da manhã. Soa que o motora vai encarar o desafio. Oremos ...não tá chovendo.

Pés de lama, após empurrar o busão. 

11/02/2025. Diário de bordo da Ladeira do Sabão. Faz 13h que estamos retidos. Transamazônica. Entre Uruará e Placas. Apareceu um carro do DNIT. Não se vale de alguma coisa. Ainda há um cadinho de água no busão. Tecnicamente, não é possível fazer nenhuma previsão de quando seguiremos viagem. De onde estamos, conseguimos enxergar outros veículos parados mais acima. Única notícia razoável é a ausência de chuva. Ao menos por enquanto. Uma trupe de três patetas não cessa em gravar o esforço dos motoras em encarar a péssima rodovia. Um tá fantasiado de patriota. O motora acaba de renovar o estoque de água. Pelo andar da carruagem, ou seria o contrário? Não conseguirei chegar em casa ainda hoje.

11/02/2025. Nestas lonjuras, sem única birosca para nos socorrer, um pequeno trator é o rei. Tenho sede/fome de boca, breja, priquito, café, comida quente......

11/02/2025. Diário da Ladeira do Sabão. Carretas, carros miúdos, caminhões baú entre outras modalidades estão reféns da lama. Nestas lonjuras, o trator reina. Alguém informa que os jovens da gravação são do canal: inverno amazônico ou algo parecido. Tomei uma decisão que parece razoável, embarcar em micro-ônibus e voltar para Uruará. E, em seguida, tomar outro transporte que vá por outra via. No caso, a Transuruara, reconhecida região de exploração ilegal de madeira. Nunca fiquei tão contente em rever a cidade. Já consegui assear os pés cheios de barro. E até peguei uma breja, ainda que não seja do meu agrado e uso rotineiro. Ao menos por cá há biroscas e equivalentes... após mais de 13h de martírio....

Ladeira do Sabão. Entre Uruará e Placas/PA

12/02/2025 Então, como findou a via crucis na Ladeira do Sabão, indagaram algumas pessoas. Lá vai... após umas 14/15h de martírio, decidi tomar – quase de assalto – o primeiro micro-ônibus da Bururé que metesse a cara no local, em direção à Uruará. Isso ocorreu por volta das 16h. Consegui acessar a cidade ainda durante a luz do dia.  Contudo, por conta de inúmeras variáveis, não controladas pelas empresas que fazem a linha para Santarém, só consegui embarcar por volta das 00h30, chegando em casa por volta das 4h.  A Ouro e Prata, que praticamente monopoliza várias linhas, informou pelo menos uns três horários diferentes, que variavam de 20h a 4h da manhã. Antes, porém, foi possível um asseio, a troca de vestes, refeição e umas brejas para aliviar a tensão.  Eu estava na estrada desde a noite de sexta-feira. Vinha de São Luís, onde fui visitar Mainha e demais entes da família, posto não ter conseguido ir na quadra natalina. Como a tarifa do transporte aéreo é algo impraticável, a saída foi o transporte multimodal: trem e busão. A merda toda foi que deixei todo mundo preocupado: o meu Dengo em Santarém e a família em São Luís. A boa, a colheita de relatos para compor uma crônica.  Repousar um cadinho, que daqui a pouco tem aula.

PS: Os restaurantes, lanchonetes e hospedarias encarnam um capítulo a parte nestas desventuras. Todavia, como ficamos presos entre o nada e lugar nenhum, não foi possível o registro. Já o fiz em outra ocasião. Tentar recuperar qualquer dia desses e socializar por aqui.

  

 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Dênis de Moraes, presente! José Paulo Neto celebra o amigo em artigo no site da Boitempo

Milton Temer, José Paulo Netto e Dênis de Moraes no final de 2024, último encontro dos três
Foto: Leila Escorsim.


Decerto que lerei hoje – sábado, 8 de fevereiro – vários necrológios de Dênis de Moraes, dando notícia de seu falecimento no passado dia 6 e de sua cremação na tarde seguinte, no Cemitério do Caju. Provavelmente serão todos elogiosos e verazes: resgatarão a sua carreira de jornalista de texto límpido, a sua impecável formação acadêmica, o seu profícuo magistério na Universidade Federal Fluminense e mencionarão suas principais obras (com destaque para o seu protagonismo no campo da teoria da comunicação e do biografismo). Em suma: com certeza quase absoluta, todos lamentarão a sua morte, com ele mal entrado nos 70 anos, e dirão da imensa perda sofrida pela inteligência brasileiro. Leia a íntegra AQUI