sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Juruti - Diário de bordo de Ismael Machado


Uma viagem ao Brasil profundo pode ser uma excelente oportunidade de incrementar o repertório, em especial aos despidos de preconceito, como parece ser o caso de Machado. Aos que possuem olhos e ouvidos atentos o Brasil profundo pode ser uma baita faculdade sem parede

 
Rogério Uchoa é uma espécie de nome artístico. O nome, na verdade, é Rogério Pinheiro. Por que digo isso? Porque é esse o imbróglio que aparece à nossa frente no guichê da Gol. O funcionário não quer permitir o embarque do fotógrafo que me acompanha até a missão em Juruti. 

Ligamos para o jornal e somos orientados pelo editor Adaucto Couto a procurar o guichê da Vale Verde, responsável pela emissão dos bilhetes. Lá, uma atendente resolve a situação. Creio que de uma forma não muito ortodoxa, pois ela manda Rogério esperar afastado e depois volta com uma passagem na mão, dizendo para ele ir rápido e torcer para que o mesmo funcionário que quis barrá-lo não esteja no despacho dos passageiros.

Jeitinhos brasileiros.

Vamos a Santarém. Passa da meia noite. Assim que nos instalamos e levantamos voo, ligo mp4 e ficou ouvindo música. De REM a Marcelo Jeneci. Fecho os olhos, tranqüilo.

Em Santarém, taxi de transbordo é caro. Em conversa com o motorista decidimos ir direto ao porto de embarque. É que ele diz que uma lancha sairá Às 8h30. As passagens são vendidas a partir de sete horas. São quase 2h30.


No terminal, somos informados de que não haverá lancha. Só o barcão mesmo. E isso à tarde. O funcionário olha para nós e se penaliza. As bolsas pesam. Diz que podemos ficar por ali mesmo até o dia amanhecer. Bancos de madeira nos esperam pelo resto da noite. Dormimos do jeito que dá. 

Rogério até ronca.

De manhã saímos atrás de um café da manhã. O suco que peço vem com jeito de quase passado. Meio azedo. Vamos em direção ao barco. É cedo ainda. Compramos as passagens e atamos as redes. Na verdade, eu faço isso. Rogério não vem com rede e sai pra comprar uma. Quando retorna estou dormindo. É claro que ele não perde a oportunidade de me fotografar assim, estarrado na rede.

Depois é a minha vez de sair. Vou comprar sandálias. Passo num cyber pra ver se há novidades.
Esperar a saída do barco é um exercício de paciência. As redes começam a se entrelaçar para desespero de Rogério. Deito na minha e fico ouvindo música até acabar a bateria do primeiro MP4. 

Levei dois. o meu e o da Michelle. Depois levanto e vou comprar laranjas e água. Fico observando o vai e  vem dos carregadores. É uma visão sempre surpreendente. De tudo se leva na cabeça. Um cabocão passa carregando uma geladeira.

Passa das quatro horas da tarde quando o barco finalmente desatraca. Lotado de gente e mercadorias. Cidades ribeirinhas dependem dessas cargas. De cerveja a eletrodomésticos, tudo se transporta nessas embarcações.

É uma viagem longa e cansativa. Chegamos em juruti lá pelas sete da manhã, depois de uma noite de sono interrompido aqui e ali. E nem deu pra ficar muito na parte de cima do barco porque era uma sequencia de DVDs gospel que, sinceramente, me faz pensar que deus devia reclamar com esse povo por fazer tanta música ruim pra ele.

Chegamos no dia de finados. Ou seja, começar uma matéria num dia em que tudo ta fechado é complicado. O hotel que ficamos é uma piada. Sem café da manhã. Mas conseguimos um café decente numa panificadora bem legal. Na passagem vimos uma plaquinha numa casa anunciando comida caseira. 

Ainda não sabíamos, mas aquele seria nosso principal QG para almoço e jantar. Comida pra lá de deliciosa, com peixes como pirarucu, tambaqui, surubim e pacu na ordem do dia. E preço honesto, o que é importante.

Como a pauta é sobre impactos de uma mineradora, recorro à própria experiência e vou atrás de um sindicato de trabalhadores rurais. É sempre um bom caminho para se começar. Batata.
Juruti é uma cidade pequena e pacata. Fazemos tudo a pé. Mesmo que o calor mine resistências. No primeiro dia, algumas boas entrevistas. A noite sem muitas opções morremos em pizza.

No dia seguinte conseguimos um taxi que nos leva a uma das comunidades afetadas pela ação da mineradora. É um percurso que inicia pela rodovia bem asfaltada, emenda por uma estrada de terra, contorna a ferrovia. Chegamos a Café Torrado e os dois que procuramos, Paulinho e Ercílio, não estão por lá. Estão em outra comunidade, chamada Piranha. Vamos lá.

O carro não entra a partir de um determinado trecho. É descer e ir a pé. Descer mesmo, pois é uma descida sem fim. Rogério diz que não quer nem pensar na volta. Um caminho estreito por entre a mata. 
E haja pernada.


Acabamos por encontrar a casa de dona Lili. Mãe de Ercílio, nos recebe perguntando o que queremos com o filho dela. Que por sinal já foi embora por outra picada. Mas Paulinho está logo ali, pescando num imenso lago. Dona Lili tem um rosto marcado por sulcos. Rogério faz um vídeo com ela. “Eu sou calminha, mas quando tenho de soltar uns caralhos, eu solto”, diz ela.

Vou em busca de Paulinho. A paisagem é bela, de campos. Ele vem remando na canoa. Explico o que quero e vamos sentar em um banquinho em frente a casa para a entrevista. Rogério colhe uns cajus. 

Paulinho é articulado e crítico.

Conversamos por quase uma hora. Depois vamos às fotos. A melhor é a que ele fica sentado num banco olhando para os campos À frente.

Passamos também numa comunidade cujo igarapé principal secou por conta da construção de uma estrada de ferro. Os moradores perdem um pouco da própria história quando isso acontece. Voltamos cansados para o almoço. O taxista cobra quarenta reais a mais que o combinado. Isso me irrita.

O almoço faz valer a pena.

De noite conseguimos acompanhar uma dupla de educadores ambientais que irão conversar com o povo de uma comunidade. Oportunidade para mais entrevistas e fotos. E repelente na pele que os bichos não dão descanso.

Fico com a impressão de que as relações das comunidades com grandes empresas é a de que os moradores afetados sequer sabem o que exigir dessas potencias. É uma luta desigual. Mas pelo menos há grupos se organizando.

Cerveja...

Meu reino por uma gelada.

No dia seguinte, mais e mais entrevistas. E no outro dia, a ida até Juruti Velho. O motivo é conhecer Gedenor, um líder comunitário considerado uma espécie de Chico Mendes de lá. Alugamos uma rabeta. Serão quase três horas de viagem.

Saímos cedo, sem tomar café.

O tempo nubla. Rogério pergunta se vai chover. Didi, o barqueiro, diz que não e nos aponta um jacaré às margens do braço de rio. Menos de dez minutos depois da previsão meteorológica começa a cair uma chuva intensa. Puta frio.

Nos encolhemos todo. Até que em determinado momento Rogério dispara essa: ‘acho que to até sem cu, de tanto frio’. Caímos na gargalhada. Mesmo ensopados.

No caminho vemos pirarucus, gaviões, tucanos, e um pássaro dar um rasante e apanhar um peixe. Do caralho!

Juruti Velha é bonita por ter várias prainhas perto. Visual absurdo.
Quando saímos do barco mal conseguimos andar, de tanta dor na base da coluna. Ando a passos lentos. Vamos atrás de Gedenor.

Desconfiado, manda chamar uma assessora de imprensa da associação. Ela diz que vai gravar. Ok. “É que veio um jornalista aqui e distorceu tudo o que eu disse”, justifica ele. Sei como é essa historia.

Gedenor é um dos 13 filhos de Madalena, uma evangélica que me sai com essa> fazer filho é bom, ruim é por pra fora depois.

É uma entrevista interessante. Gosto de encontrar esses personagens que fazem a história da resistência na Amazônia.

A volta é na lancha da associação. Alívio, porque é muito mais rápido. Carona boa, junto com duas freiras que lembram aquele visual de Dorothy Stang.

Depois teve lancha para Santarém. Cerveja e caldo de caranguejo em frente ao rio Tapajós, uma longa espera no aeroporto. E Belém, cedo da manhã. O fim de semana. Os bons momentos, a sensação de missão cumprida.

A segunda-feira vem logo ali. Dia de debruçar sobre as anotações e escrever a matéria.  

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