sexta-feira, 20 de maio de 2022

Travessões amazônicos

 

Travessão nos rincões amazônicos é muito mais que a haste superior da baliza do goleiro. Ele leva ao âmago do coração de lugar nenhum no meio do nada. No meio de tudo, quando em tempos remotos predominava uma frondosa e densa floresta. Lonjuras e distâncias onde um intrépido passeante ocasional duvidaria que alguém ali moraria. Um Verde Vagumundo, como diria Benedicto Monteiro. 

Manejo de gado na Transamazônica 

A denominação de Travessão predomina a sudoeste do estado do Pará. Noutras paragens, vicinal é o termo adotado. Uma imagem de satélite sobre a Transamazônica destes beirais, sugere uma espinha de peixe, onde a rodovia seria a coluna dorsal, e os travessões as espinhas.

Esse conjunto de travessões encarna vetor de povoamento e de saque da floresta. Legal e ilegal, com ênfase ao segundo.  Projeto de colonização do século passado. O slogan todos conhecem. O enquadramento do vazio demográfico. Aquela parada da terra sem homem.  

Uma parte expressiva da rodovia dos milicos ainda desconhece o asfalto. Em particular a fração a oeste, entre Rurópolis e Uruará, onde impera o saque ilegal de madeira, marcado pela presença de uma gambiarra batizada de Transuruará. Alguns a denominam de atalho para alcançar Santarém de forma mais ligeira. Vice-versa. A desventura não paga o risco.

Ali o bicho pega. O coro come. Todo mundo sabe da ilegalidade. Até os carrapatos dos bois, que aqui e ali, quando da passagem diurna pela rodovia, mais parecem bolinhas de algodão em meio ao pasto. Réstias de floresta, cercas, pasto, estrada de chão e inúmeras pinguelas sobre igarapés e riachos imperam entre Santarém à Marabá. Uns 1.200 km, aproximadamente.

Pinguela  na Transamazônica. A ponte improvisada é feita a partir da madeira da floresta

Aventura dura 24h de busão, com direito a restaurantes avaliados por cruzes, e não por estrelas.  A ordem é fazer o sinal de cruz e invocar uma proteção.                       

Esguia, alta e loira, uma jovem grávida, com um menino acomodado no dorso e puxando mais uns três barrigudin, pede ao motorista do busão que pare nas proximidades de uma bodega. Ali existe um Travessão. Muitos dos motoras já conhecem os moradores e as referências dadas. Surpreende a capacidade em identificarem, mesmo no escuro breu em noite de chuva, o Travessão onde residem.

A moça e a sua prole destoam dos traços, vocabulário usado e sotaque que marcam o povo originário das bandas de cá. A moça e sua trupe integram um exército de camponeses expropriados do Sul, quando a partir de lá, uma tal “revolução verde” os expulsou para estas latitudes. Expropriados de suas posses sentaram praça na “estranha” selva. Tempo de ditadura. 

Na página 18 do Jornal Bandeira 3, editado em 1975 pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto, esclarece que o projeto do governo era assentar nas proximidades de Altamira umas 2 mil famílias de camponeses do Sul do país.  

A meta era incrementar a produção mecanizada de ciclo curto e perene, com a utilização de adubo e corretivos químicos. Com a colaboração de cooperativa do Vale do Juí o projeto ambicionava comercializar além da madeira, os produtos da roça. A colonização oficial tinha denominação de Projeto de Integração e Colonização (PIC).

Tristes trópicos. Muitos tombaram de bala ou malária. A bala que tomba sem-terra não mata saudade. Travessões. Vicinais. Vicissitudes. Violência em Estado bruto e puro à paisana ou farda, com as benções da vossa excelência Justiça.

Ao contrário da terra de trabalho que almejava, o errante encontrou na cova rasa a terra que queria ver dividida. Ah, João, Ah, Cabral....Ah, Josué, nunca via tamanha desgraça...quanto mais sonho se tem, mais urubu ameaça...

 

 

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