terça-feira, 17 de setembro de 2024

A Cristaleira

No roer das horas o asfalto a tudo devora. Matas, rios, jacarés, passarinhos e encantarias. Assim, por aqui sucedeu. Sucede. Um beijo de Judas, deus progresso. Um punhado de moedas e alguns montam na onça. A cidade a se reconfigurar ao dissabor do muque capital.

“A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe. O debaixo desce” é Science na veia do mangue. Por estas paragens, a Av. Fernando Guilhon (PA 453) subjugou matas e rios. Matar é a ordem do desenvolvimento. Rodovia, navalha é uma artéria da cidade de Santarém/PA. Ela faz convergência com a BR 163 (Cuiabá- Santarém) e com a PA 257 (Everaldo Martins). A avenida integra uma geografia de expansão do município polo do oeste paraense.

Nunca mais naquela estação encontrei meu coração. Samba triste traficando melancolias. Nesta quadradura, prédios, loteamentos, grilagens, ocupações vicejam com desenvoltura. O preço de imóveis é algo transcendental. Seja lote, terreno, casa, apartamento ou prédio.   A rodovia liga o Centro ao Aeroporto, e possibilita acesso ao território do povo Borari (Alter do Chão). O progresso a tudo fagocita. A todo momento reclama sangue, plasma, placenta, corações, rins, pâncreas e tristeza. O cabra é de morte! É de matar! Matas, rios, risos, jacarés, passarinhos e encantarias.  

O negócio seguinte. Cemitérios de vidro. Shoppings. Coral de cães desafinados no natal. Farmácias, laboratórios, padarias, pizzarias, petshop, botecos, pequenos comércios - que bravamente resistem aos atacarejos -, hotéis, hamburguerias, motéis, movelarias e afins espocam por todos os flancos. Um campo minado.  “A cidade não para. A cidade só cresce”. Muitos para o beleléu, alguns para o céu. Jogo de poder. Malícia. Carícia em criptomoeda.

Faz calor. A fuligem de queimadas precipita sobre solidões, políticos anões, depressivos e suicidas. Na ópera de sobrevivência, sob o ruído de automóveis, depois das 18h vendedores de churrasquinhos despontam ao pôr do sol. Avista-se de longe os fios de fumaça. Negociantes de frutas e peixes completam a aquarela. Territorialidades ao sabor do improviso. Outros mundos em universo de escassez. Comunhões de excluídos. Seios e culhões à mostra. Procissão de mortos vivos ruma em busca de algum templo.

Cisco nos olhos. Tudo embaçado, de cabo a rabo. Entre mesas, bancos, cadeiras, beliches e outros tipos de movelaria funcional, era possível avistar uma cristaleira na loja Pica Pau.  A peça destoava de tudo ao redor. Quase um mutante entre os convencionais. Era negra. Elegante. Faltava-lhe um vidro na composição da porta. Não era grande. Nem pequena.

A exibição sucedia de forma descuidada. A peça estava sempre empoeirada. Por mais de 12 meses a contemplamos. Checamos o preço. Fora da nossa realidade. Transbordava o precário orçamento de educador. Não havia espaço que a acomodasse no acanhado lar. Em meio à fumaça, não se avista a lua. Tenho a vista fraca. Um palmo diante do nariz nada enxergo. Tudo é brasa.

O realejo histórico explica que a cristaleira existe desde o século XVII. O mimo nasceu como distinção de classe. Louças, pratarias e talheres eram ali expostos.  Na casa, o móvel ocupava lugar privilegiado. Um empavulamento de poder. Uma carteirada.  Zero ternura, mermão.

“O cara tava me devendo um troco. Não tinha como pagar. O que possuía de valor era a cristaleira. Tomei!”, explicou o vendedor em uma das muitas incursões à mal ajambrada loja.  Segundo ele, para a venda fez uma redução radical do preço original com vistas a despachar o móvel com maior brevidade possível.

Existe amor em Santarém? Em recente visita à loja para verificar preço de uma banqueta, indagamos a outro vendedor o destino tomado pela cristaleira. Estávamos curiosos em saber quem a adquiriu. Com desenvoltura o senhor explicou que o dono original a resgatou. 

Deus duvidará de algo? O prestador de serviço conta com entusiasmo juvenil que o dono havia se enrabichado por uma enteada. Ganhou o mundo movido pelo mais pueril amor. A longevidade do romance durou menos que um algodão doce em quermesse de tarde modorrenta.  Música para televisão.  

Inúmeras vezes contemplado com chifres pela Lolita, drasticamente decidiu em retornar para o município, onde de imediato readquiriu o móvel.   Sabe-se que hoje vive em exílio amoroso em algum ramal na estrada que leva até Alter. E, que arrumou a cristaleira, que por mais de um ano tomou poeira e chuva à sua espera.

Em meio a tempestades de mágoas, encontros e desencontros, uma moça vasta em trajes mínimos, empacota diuturnamente em um mercantil, toneladas de tédios.  Rareia no peito da vida bom coração.

1 comentários:

Anônimo disse...

Belussimo texto!