Diário de bordo Xingu
É uma cena que a mim impressiona. O rapaz à minha frente, de 30
anos, começa a se paramentar. Põe uma máscara para os olhos e narizes, depois na
boca põe o que chama de chupeta, ligada a um compressor de ar que já viu dias
melhores, coloca dois vasilhames nos quadris, pega uma vareta pontiaguda e
tchibum...mergulha. Estamos, eu e Rogério Uchoa, num barco pequeno no meio do
rio Xingu. O rapaz a que me refiro, vive de coletar peixes ornamentais. Ele me
conta que chega a ficar duas horas submerso, com uma lanterna não profissional
que ilumina um metro, se tanto, à frente. Diz que vê peixes diversos, arraias,
cobras e outros habitantes do mais profundo.
Atividades como essa são antigas no Xingu. Passam de pai para
filho. Podem acabar. É o que me diz um biólogo horas mais tarde numa sala da
Universidade Federal do Pará, em Altamira. Há espécies únicas do Xingu. Algumas
nem foram catalogadas ainda...imaginou o que é isso?
Eu havia chegado de Marabá para cobrir o plebiscito. Cheguei numa
terça e fui informado de que na quinta iria para Altamira. Chegamos depois do
almoço. Um sufoco achar hospedagem. Todas lotadas e caras. O triplo do preço de
quando estive lá em fevereiro de 2010, com Tarso Sarraf, que por sinal
encontramos no aeroporto, esperando Marinor Brito.
Ficamos num hotel meio fuleiro, mas caro. O dono, um homem que
tinha um olho vazado, depois de dois dias desperta comentários de Uchoa, que
disse estar tão na seca que já estava olhando diferente praquele olho cego...era
a piada interna mais usada. Ficávamos cantando a música de abertura do
Fantástico e imaginando o caolho emergindo do rio, como uma Isadora
Ribeiro.
O primeiro dia foi complicado. Quase nada positivo em termos de
produção. À noite uma caldeirada de tucunaré levantou os ânimos. No dia
seguinte, cedo, fomos à luta. Fui atrás de Antonia Melo. Ela representa o
Movimento Xingu Vivo para Sempre e é uma ativista fervorosa contra a usina.
Informações preciosas. De lá conseguimos um táxi- caro, diga-se de passagem- que
nos leva a duas comunidades. A de Santo Antonio e a de Belo Monte. Ambas tendem
a desaparecer. Vimos o canteiro de obras. Rogério
registra.
É nessas comunidades que geralmente encontramos personagens ricos
em histórias. Como o velho Amadeu Fiok e sua dentadura de ouro. Resiste. É um
Davi contra Golias, para usar um termo bíblico. O tempo é abafado. Rogério e
Celso o taxista devoram metade de uma imensa melancia, enquanto entrevisto um
dos pioneiros da Transamazônica.
De lá fomos a Belo Monte. É uma comunidade poeirenta, que parece
ter domado o tempo. Ali tudo é tão parado que vai amortecendo as vontades. É
onde fica a travessia de balsa. Caminho para Anapu. Já estive ali antes.
Converso com uns poucos moradores e as respostas são tão demoradas a ser dadas
que vamos ficando cansados só de ouvi-las. Vai ser construída uma ponte ali.
Na volta, paramos para uma fotografia às margens da Transamazônica.
A foto é feita por Celso e postada por Rogério no Facebook. Celso é um figura. O
lance dele, como nos conta empolgado, é poder partir de carro de Altamira para
qualquer parte do Brasil. Está planejando uma viagem ao Nordeste. ‘Se me
disserem para ir a Belém amanhã, já topo na hora’, diz.
Na volta, vemos uma daquelas imagens clássicas. Em cima de uma
espécie de paredão, trabalhadores andando á contraluz. Chamo a atenção de
Rogério e ele faz belas fotos. Chegamos empoeirados. Só nos resta depois de um
banho, mandar o material do dia e depois molhar goela, comer peixe e ficar
falando bobagens na orla do rio. Tá, admito, ficar observando e comentando a
beleza das meninas também faz parte do programa.
Vez em quando penso na violência que está embutida nessas promessas
de melhoria de vida das obras faraônicas. É tudo sempre muito imposto.
Alternativas são rechaçadas, informações não são completas.
Vamos ao rio também. Dá vontade de navegar por todo o Xingu,
conhecê-lo intimamente. Penso no quanto ele será modificado em algum tempo.
Entrevisto o novo representante do Fort Xingu, o movimento de empresários e
comerciantes favoráveis a Belo Monte. Antipatizamos de cara um com o outro e a
entrevista é quase um confronto aberto de ideias. Observo o sotaque e os olhos
claros. Fico me perguntando sobre a origem dele e qual a relação que ele mantém
com o rio. Com as coisas locais.
De noite no quarto do hotel, a energia vai e volta. Ficamos sem luz
por mais de uma hora. Fico ouvindo MP4 até a bateria descarregar. O sono não
vem. Tem as histórias sendo repassadas por mensagens. Até que os créditos também
acabam. Só a insônia não acaba.
Há uma manifestação contra Belo Monte no sábado de manhã. Lá
reencontro Lucimar, um agricultor meio poeta cuja família foi personagem em
2010. Ele demora a me reconhecer, mas depois conta da tristeza do pai, o velho
Abrão, em ter de sair do local onde construiu um universo particular e que será
alagado pelo desvio do rio. É disso que se trata Belo
Monte.
Vejo na manhã de domingo o baile sapecado pelo Barcelona no Santos.
Já não há quase mais nada a fazer. Adianto material para a série de reportagens.
Decidimos ir a uma comunidade chamada Pedral, que tem possibilidade de banho de
rio e um peixe feito na hora. Passamos o dia por lá. Gravo imagens, andamos por
trilhas, entramos no rio.
De noite tem um grupo de balé infantil se apresentando na concha
acústica da orla. Penso na Esperança Bessa e lembro que nunca a vi dançando
balé. Será uma lenda urbana?
Comemos carne de sol com salada. E ficamos cada vez mais irritados
com um negão PM que domina a conversa na mesa ao lado. Fala alto demais e
monopoliza as falas. Rogério fica dizendo pra mim, provocando...’tu é chato, hem
negão?’. Rimos.
No dia seguinte, cedo, a volta a Belém. E um golpe de sorte.
encontro dom Erwin krautler no aeroporto. Não tinhamos conseguido falar com ele,
pois estava em Uruará. Faço a entrevista ali mesmo. Eis um dos meus poucos
herois que restam. No mais, sobram cansaço e uma sensação de que, apesar da
missão da reportagem ter sido cumprida, ela vai adiantar pouco diante da
engrenagem que se move. Mas que pelo menos fique o
registro.
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