domingo, 16 de janeiro de 2022

Chacina no Xingu: a morte e a morte tantas vezes anunciada nas terras do Pará

Ao longo de 40 anos o Pará registra  29 massacres, que envolveram 152 pessoas. 

           Família de Zé do Lago assassinada no 09 de janeiro. Fonte: redes sociais. 

Um riomar de sangue transborda por todos os quadrantes da História da “conquista” da Amazônia, onde o saque, a pilhagem, as violências representam elementos estruturantes. Execuções, assassinatos, chacinas constam por todo o território, a exemplo do recente caso ocorrido no município de São Félix do Xingu, sudoeste do Pará, onde a família do senhor José Gomes, “Zé do Lago” (61), a esposa Márcia Nunes Lisboa, (39) e a filha de 17 anos, Joane Nunes Lisboa foram executados a tiros, no dia 09 de janeiro.  Até o momento os órgãos de segurança do estado não possuem maiores informações sobre a motivação do crime.

Conforme a nota expedida pelo Comissão Pastoral da Terra (CPT), a família dedicava-se ao repovoamento de quelônios no rio Xingu há mais de duas décadas, em uma Área de Preservação Ambiental, a APA Triunfo do Xingu, sob a responsabilidade do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), instituição do estado responsável pela questão agrária e gestão do Instituto do Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio). 

Trata-se de um território carcomido por ações ilegais que perpassam pela exploração ilegal de madeira, grilagem, garimpo e pecuária. Estima-se que pelo menos 40% do território da APA já tenham sido detonados por tais atividades. A APA ocupa uma área total de 1.679.280,52ha, localizada na fronteira com os igualmente conflituosos municípios de Altamira e Anapu. Vale onde a missionária e agente da CPT Dorothy Stang foi assassinada em fevereiro de 2005. Uma execução precedida pelas mortes dos dirigentes sindicais Ademir Federicci (Dema) e Bartolomeu Morais da Silva (Brasília).

Informações da mesma CPT advertem que o município e toda a região do Xingu não fogem à regra de foco de tensões do que ocorre por todo o Pará. No vale do Xingu madeireiros ilegais, garimpeiros, grileiros protagonizam situações de tensões junto a camponeses, pescadores, indígenas e extrativistas. Situações que têm desembocado em assassinatos, chacinas e trabalho escravo.

MORTES SEM FIM - 62 trabalhadores rurais foram assassinados em situações de conflito na luta pela terra no município, e em nenhum caso ocorreu de algum réu ir a julgamento. 29 massacres com o total de 152 vítimas transcorreram no Pará ao longo dos últimos 40 anos, sinalizam dados da CPT. A maioria sob o manto da impunidade, o principal indutor para a permanência de execuções e chacinas, bem como a parcialidade no Judiciário na mediação das situações de conflito, e inquéritos e investigações precários, quando os mesmos chegam a ser instaurados.

O episódio soma-se ao vasto inventário de casos de assassinatos de mortes na Amazônia, onde o estado do Pará tem se consagrado como líder absoluto em casos de situações de conflitos na luta pela terra. Situações onde via de regra tombam camponeses e camponesas, defensores e defensoras dos direitos humanos e do meio ambiente, e seus aliados, a exemplo de advogados e religiosos.

Neste cenário de luta pela terra a década de 1980 é considerada a mais letal. Tempos do apogeu da União Democrática Ruralista (UDR), de uma pujante e desinibida pistolagem por todo o Bico do Papagaio. Uma região que congrega o sudeste do Pará, o Norte do Tocantins e o Oeste do Maranhão.  Chacina da Fazenda Ubá, Chacina da Fazenda Princesa, assassinatos na família Canuto, dos advogados Paulo Fonteles, Gabriel Pimenta e João Batista, dos religiosos Padre Jósimo e da irmã Adelaide Molinati constam como alguns dos casos do período. Sem falar na coerção pública e privada, prisões arbitrárias, torturas, destruição de casas e roças.

SANGUE SEM CERCAS - A História da “conquista” da fronteira é uma história de expropriação de suas populações e assassinatos. Situações amalgamada por precárias investigações, processos morosos e inconclusos no Judiciário – quando os mesmos chegam a ser instaurados -, este celebre por sua parcialidade em situações de conflitos que envolvem grandes corporações, grileiros de terras e fazendeiros e a sociodiversidade local da região.

No início dos anos 2000, quando do recrudescimento da violência no campo nas paragens do sudeste do Pará, O sindicalista José Pinheiro Lima, conhecido como Dedezinho, a esposa Cleonice Campos Lima e o filho deles, Samuel Campos Lima, de 15 anos foram assassinados dentro da própria casa, no distrito de Morada Nova, em Marabá.

O dirigente sindical estava em uma rede acometido por malária quando da execução. O adolescente foi alvejado por tiro de escopeta pelas costas quando tentava fugir da sanha dos petroleiros. Os fazendeiros acusados pela chacina, João Davi de Melo e o ex-presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Marabá, Evandro Marcolino Caixeta foram absolvidos pela acusação em julgamento ocorrido no ano de 2016.

Em 2011 o casal de extrativistas do município Nova Ipixuna, sudeste do estado, José Cláudio e Maria do Espirito Santo, do Projeto Agroextrativista Praia Alta Piranheira teve o mesmo desfecho, vítima de tocaia encomendada por grileiros de terra. Em 2019 a dirigente do Movimento pelos Atingidos por Barragens (MAB) Dilma Ferreira da Silva (45) foi assassinada no município de Baião. Na mesma chacina tombaram ainda o esposo da dirigente, o senhor Claudionor Costa da Silva (43) e um conhecido da família, o senhor Hilton Lopes (38).

São Félix do Xingu – a cidade do boi -  O município de São Félix do Xingu é notório por concentrar o maior rebanho de gado do estado, 2,5 milhões de cabeças. Dados organizados pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto sinalizam que seriam 20 cabeças para cada um dos 140 mil habitantes da cidade.

Onde há gado, há grilagens de terras, crime organizado, e um pulsante desmatamento. Em 2019 o município desmatou 10% de seu território, o que equivale a 9,2 mil quilômetros quadrados, o que representa um terço de tudo que foi derrubado em toda a Amazônia naquele ano, analisa Pinto.

Por conta da alta presença da pecuária, o município também lidera a emissão CO2 na atmosfera. O Vale do Xingu, que um dia concentrou uma estonteante floresta do nobre mogno, foi palco de uma das maiores tentativas de grilagem de terra na Amazônia.

A ação foi protagonizada pelo paraense que fez fortuna no estado do Paraná, (eh Paraná), durante a ditadura civil militar com a construção de obras públicas, Cecílio de Rêgo Almeida, dono da empresa C.R Almeida. Tanta era a grana que o sujeito chegou a integrar a lista da Forbes. A tentativa de fraude envolvia uma área maior que o território do estado da Paraíba. Na Justiça do estado do Pará, Lúcio Flávio Pinto, por denunciar o crime foi condenado a pagar indenização ao grileiro, já falecido.

No município de São Félix até o prefeito grila. Reportagem de Phillippe Watanabe publicada pelo site UOL em dezembro do ano passado, alerta que o fazendeiro e prefeito da cidade, João Cleber pelo PMDB – partido do cacique político Jader Barbalho -, desmata a fazenda Bom Jardim desde pelo menos 2008. Uma área que faz parte de uma Unidade de Conservação (UC), consequentemente, terra grilada.  Iniciativas que por ironia, apesar de toda a cadeia de ilegalidade, ainda conseguem acessar financiamentos públicos.

A reportagem de Watanabe adverte que a fazenda, que também invade território Kaiapó, coleciona multas e embargos no Ibama. A fazenda usada para a criação de gado é um dos fornecedores do grupo JBS.

A Gestão das Unidades de Conservação (UC) no estado e a Política Estadual de Manejo Florestal Comunitário e Familiar (PEMFCF)

Em 2019, a contragosto do manifesto apresentado pelos funcionários do Ideflor-Bio, que desejavam um colega de carreira, o governador nomeou a pedagoga Karla Bengtson.  A educadora é nora do ex deputado federal e pastor da Igreja Quadrangular, Josué Bengtson.  O líder religioso perdeu o mandato em 2018 por envolvimento na “máfia das ambulâncias”. O filho, Marcos, é acusado de articular a morte do lavrador do MST Valmeristo Soares. Valmeristo – conhecido como Caribé.

Em sete de setembro de 2010 Marcos chegou a ser preso por conta do crime ocorrido no dia quatro do mesmo mês em Santa Luzia do Pará. Em 2014 Karla pleiteou sem sucesso uma cadeira no legislativo do estado. Na Câmara Federal, apesar da cassação do patriarca, o filho, igualmente pastor, Paulo, foi eleito e integra a Comissão de Ética.

Apesar do ambiente político adverso, é justo contra este ambiente de indicadores de desmatamento, exploração ilegal da madeira, concentração da terra,  monocultivo homogeneizadores, uso de agrotóxicos e  violências que um conjunto de organizações de vários campos defendem a institucionalização de uma Política Estadual de Manejo Florestal Comunitário e Familiar (PEMFCF), onde os diferentes sujeitos sociais historicamente marginalizados do estado possam ter assegurado o direito de sua reprodução econômica, política, social e cultural a partir de seus territórios, como legítimos guardadores da terra, da floresta e dos rio. Faz mais de uma década que um conjunto de sujeitos deseja a efetivação da PEMFCF.  Tentativa amiúde boicotada pelo Ideflor.

63% das florestas públicas do Pará encontram-se em territórios de comunidades tradicionais. A área equivale aproximadamente a 1,2 milhões de hectares, sob domínio de indígenas, extrativistas, remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, camponeses, e outras diversidades sociais, esclarece a minuta do documento da PEMFCF. Este é um dos principais argumentos de defesa da política, bem como os péssimos indicadores de desmatamento e violência contra as populações.  

Com relação à proposta da PEMFCF no âmbito do Pará, informações do site do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio), esclarecem que a proposta da política emerge como um instrumento de regulamentação dos preceitos do artigo 3 da lei estadual 6.462, de 4 de julho de 2002, a qual estabelece a Política Estadual de Florestas no Pará.  

Nos incisos XVI e XVIII do artigo terceiro, a lei prevê que deve ser estimulada “a implantação de formas associativas na exploração florestal e no aproveitamento de recursos naturais da flora” e ordenadas “as atividades de manejo florestal, criando mecanismos de exploração autossustentada dos recursos florestais”. O Ideflor-Bio é a autarquia responsável na condução do processo da PEMFCF.

Neste sentido a proposta para a política propõe o fortalecimento das cadeias produtivas; a regularização fundiária e ambiental para o manejo florestal comunitário e familiar; o desenvolvimento científico e tecnológico que respeite os conhecimentos tradicionais; e a proteção das comunidades e famílias nas relações comerciais.

Saiba mais sobre PEMFCF na série de reportagens publicada no Brasil de Fato/RS AQUI

Caetano, em sua poética, por conta da permanência de elementos das formas de acumulação dos passos iniciais do capitalismo nas terras do Pará, assim reflete:

Quem matou meu amor tem que pagar/
E ainda mais quem mandou matar/O império da lei há de chegar no coração no Pará. 

Interroga-se: quando?


0 comentários: