A sanha do latifúndio trajetória do ativista comunista, lavrador e poeta no ano de 1991. No mesmo ano, um pequeno grupo de intelectuais editou um livro póstuma de poemas de Ribeiro. Coube a Lúcio Flávio Pinto a seleção dos versos e a apresentação. Aqui republicada.
No
ano passado Expedito Ribeiro de Souza selecionou poesias no vasto acervo de
literatura de cordel que havia produzido e inscreveu-se num concurso promovido
pela Fundação Cultural Tancredo Neves, em Belém. Conseguiu um terceiro lugar.
Se fosse o primeiro colocado, e se a Fundação agisse rápido, Expedito teria
tido a alegria de ver um livro seU publicado. Mas o prêmio não veio, o livro
não saiu, e Expedito foi morto com três tiros, perto de sua casa, em Rio Maria,
no dia 02 de fevereiro.
Este,
portanto, é um livro póstumo. Nada a reclamar da comissão que não deu o
primeiro lugar ao alegre Expedito. As poesias dele não são obra prima, nem
mesmo se circunscritas ao âmbito do cordel nacional. Com todo poeta popular, ao
contrário da flamula e dândis das avenidas formais do verso, Expedito sabia
muito bem de suas limitações e as expunha ao público. Versejar, porém, era a
maneira de projetar sua esperança, realimentando-a. Maravilhosa é essa condição
humana, que não prescinde da poesia como forma de conhecimento, emoção, prazer,
mistério, surpresa e alegria – no sangrento sertão, ou na sangrenta cidade.
Em
meio à violência e aridez que o campo cobra dos que nele sobrevivem, Expedito
era a confirmação da inesgotável capacidade humana. Imigrante, lavrador, preto,
pobre, religioso, líder, comunista e poeta. É muito título para uma pessoa tão
humilde. Um título não é nada, um título é apenas uma etiqueta que se afixa
numa pessoa para classifica-la., quando necessário. A pessoa Expedito Ribeiro
de Souza transcende a etiqueta colocada em seu corpo inerte para o inevitável
assento necrológico. Ele foi como aquela flor que nasce no meio do asfalto,
amarela que fosse, mas flor, um produto do milagre humano percebido pelo grande
poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro como Expedito, mineiro como o mago do
sertão Guimarães Rosa, ciranda de mineiros que não se passaram ao passarem pela
vida deixando sua marca.
Quanto
capital humano penosamente fabricado é desperdiçado em fração de instantes pela
estupidez dos homens, pela convivência dos homens, pela insensibilidade dos
homens por trás de um gatilho de revolver de pistoleiro. Expedito foi
assassinado porque pensava pelos seus, brigava por eles, queria que fossem
menos desiguais do que os mais iguais da sociedade. Porque há uma liturgia
dessa palavra e uma confraria desse rito. Expedito tornou-se militante do
Partido Comunista do Brasil, que, em Rio Maria, tenta manter sua mística do
Araguaia (mais mito que mística, aliás). Na sala da pobre casa em que morava,
deixada para mulher, nove filhos, mãe e agregados dividirem. Expedito mantinha
um cartaz do PC do B e imagens bíblicas, além do retrato das chagas de Cristo.
Isto é Brasil. Quem entende de sertão sabe, aprende, respeita. Quem de sertão
tenta fazer mares nuca dantes navegados, em papel ou celuloide, naufraga – e
arrasta consigo aquele forte que só em cabeças grandiosas rebrota por inteiro
(nas de Rosa e Euclides, por exemplo).
Os
poetas costumam ser doces, mas é de sua natureza ir ao fundo dos homens,
trazendo-lhes as raízes. Não espanta que os violentos tomam os poetas como
alvos preferenciais. Garcia Lorca, um sertanejo andaluz, sucumbiu à aurora
fascista na Espanha. A Maiakovski não coube outra alternativa senão
o suicídio, que Eisentein – poeta da imagem – bebeu em goles lentos, inodores,
imorais (na imoralidade de escapar ao fatalismo planejador de Papá Stálin).
No
sertão amazônico, nem mesmo o poeta pode reinar pacifica e docemente. Mesmo
divino, ele que se arme e se acautele, como está escrito nos versículos do
“Grande Sertão Veredas”. Pessoa do povo, como Expedito, se tornam poetas porque
os grandes temas filosóficos da vida os levam a transcender a prosaica
comunicação de todos os dias. Nenhum tema é mais filosófico do que a morte.
Nenhuma agenda de Rio Maria é fechada a cada dia sem considerar uma morte, ou
um anúncio premonitório da morte, como a de Expedito, ou a dos Canuto. Neste
livro, que abriga apenas alguns das poesias que ele produziu, o tema é quase
profético. Infeliz do país em que poetas são infalivelmente proféticos, e as
autoridades incompetentes, cúmplices. Não podendo preservar a vida de Expedito,
de muito listada para ser consumida, salvamos seus versos, na tentativa, talvez
vã, mas necessária, de que permaneçam no ar, como o perfume a que aspirava ser
outro poeta do povo, o maranhense João do Vale, de mais sorte por não ter
“mexido” aos mortíferos assuntos da terra, razão da vida de milhões de
desterrados brasileiros, razão também de suas mortes.
Além
das poesias, este livro divulga a última entrevista de Expedito, concedida a
Marcionila Fernandes. Aluna do curso de mestrado do Plades, no Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, Marcionila conversou várias
vezes com Expedito, em função de sua dissertação de mestrado, sobre a atuação
de fazendeiros no Pará, tornando-se amiga do lavrado. Ela também é autora do
breve perfil de Expedito. Foi ainda quem
recolheu as poesias que selecionei para este livro, com o qual se espera,
também, ajudar na difícil sobrevivência da família do líder sindical
assassinado.
Aqui
está o registro da voz do poeta que fala pelo povo, e, como fiz o povo:
empresta a voz de Deus. Que outros poetas do povo não inaugurem sua literatura
postumamente, é o que esperamos, e pelo que continuaremos a lutar.
Belém,
fevereiro de 1991, Lúcio Flávio Pinto
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