Tornou-se a Feira mero oba-oba de vitrine???
Repercuto aqui a bela entrevista realizada pelo cronista Leal Kostav. Grato pela gentileza em autorizar a publicação neste modesto espaço.
Na tarde úmida de Belém, entre o rumor das mangueiras e um
vento que parece antigo, encontro-me com Paulo Nunes. Professor doutor, poeta,
ensaísta: três modos de olhar o mesmo rio. A Pan-Amazônia corre nele como
memória e urgência. Não se trata de polêmica, mas de nitidez. À mesa, uma
xícara que já esfriou e um caderno com anotações atravessadas por setas — como
se o pensamento precisasse de flechas para abrir passagem. O que segue é uma
conversa que tenta ouvir o que o livro sussurra quando a feira faz barulho
demais.
ENTREVISTA
Leal Kostav: Quando o senhor diz que a Feira Pan-Amazônica
do Livro e das Multivozes “perdeu o foco”, o que exatamente se desfocou: o
olhar de quem organiza, o espelho que a feira oferece ao público, ou a luz que
deveria incidir sobre a literatura?
Paulo Nunes: Desfocou-se o conjunto. Uma feira não é só
vitrine, é instrumento de formação. Quando o espetáculo toma o lugar do debate,
a luz vira holofote e cega. O foco deveria estar no livro como experiência
estética e crítica, nas multivozes como pluralidade real, não como adereço. Sem
eixo curatorial firme, vira oba-oba — e o leitor, que é sujeito, passa a ser
tratado como plateia.
Leal Kostav: O senhor reverencia Wanda Monteiro e Mestre
Damasceno, “o vigor do não canônico”. O que o não canônico tem que a feira
esqueceu? E por que assusta tanto?
aulo Nunes: O não canônico desarruma prateleiras. Ele traz
oralidade, fricção, contradição. É a floresta falando no entremeio da página.
Assusta porque exige escuta e risco; não se mede em cifras fáceis. Homenagear
esses nomes é sinal de vida, mas a homenagem precisa irradiar para a
programação: mesas que confrontem paradigmas, editores independentes com espaço
real, um público provocando e sendo provocado.
Leal Kostav: “Cadê o intercâmbio Pan-Amazônico e
internacional?” Como seria, para o senhor, um intercâmbio que não vire apenas
turismo literário?
Paulo Nunes: Troca de método e de imaginário. Convidar
autoras indígenas do Peru e da Colômbia não para exotarizar, mas para discutir
política linguística, direitos autorais em territórios tradicionais, circulação
transfronteiriça. Oficinas bilíngues, traduções em processo abertas ao público,
coedições entre pequenas editoras da região, residências de crítico e tradutor.
Intercâmbio é ponte por onde passam livros, sim, mas também passam políticas,
protocolos, afetos.
Leal Kostav: O senhor cita autoras e autores do Pará —
Mônica Malcher, Rosângela Darwich, Airton Souza, Isadora Salazar, Roberta
Tavares, Antônio Moura, Giselle Ribeiro, Vasco Cavalcante. Em que medida a
curadoria falha com essa casa de força? E como reparar sem cair no “localismo
obrigatoriamente ufanista”?
Paulo Nunes: Falha quando transforma a presença local em
cota. Esses nomes não pedem concessão, pedem leitura. Reparar é dar
centralidade crítica, não apenas estande. É colocar essas obras na mesa mais
nobre, em diálogo com outras cenas, e convocar mediação qualificada. O local
não é um cercado, é um portal. Ufanismo se desfaz quando a exigência estética é
critério — e ela o é.
Leal Kostav: “Literatura não é produto fru-fru.” Porém há
planilhas, patrocinadores, metas. O que fazer com o número quando ele fica com
ciúmes do sentido?
Paulo Nunes: Ensinar o número a ler. Métrica não precisa ser
inimiga do mérito. Avaliar impacto por bibliodiversidade, formação de leitores,
permanência de acervos nas escolas, número de traduções iniciadas, contratos
assinados por editoras pequenas. O show traz gente? Ótimo. Mas que essa gente
encontre pensamento. Caso contrário, a feira vira shopping de brochuras.
Leal Kostav: O senhor fala em “pedir consultoria” quando
falta equipe com escuta e projeto. Que consultoria, de quem, e para quê?
Paulo Nunes: Curadores com experiência em feiras de
formação, bibliotecárias públicas, professoras da rede, lideranças indígenas,
quilombolas, editoras independentes, livreiros de sebo — como o do Gueto —,
tradutoras, pesquisadoras de políticas do livro. Um conselho curatorial plural,
com mandatos e transparência. Para quê? Para montar eixos temáticos, rever
critérios de convite, mapear lacunas, medir efeitos. Humildade institucional
não diminui ninguém: amplia.
Leal Kostav: Homenagear, em 2026, um autor de “qualidade
duvidosa”, como o senhor disse, é um gesto simbólico. O símbolo pode ser
corrigido? Ou será sempre uma mancha?
Paulo Nunes: Símbolo é escolha de linguagem. Dá para
corrigir mudando a gramática: estabelecer critérios públicos de homenagem, com
pareceres técnicos, consulta à comunidade literária, leitura crítica
documentada. Se insistirem no atalho, vira mancha pedagógica: ensina o pior às
novas gerações — que prestígio é ruído, não obra.
Leal Kostav: O senhor saúda PakaTatu, sebo do Gueto,
editoras universitárias, IHGP, o estande democrático de autores paraenses, a
ousadia da IOEPA reeditando Dalcídio, Benedicto, Haroldo. Nessa constelação, o
que falta acender?
Paulo Nunes: Falta o circuito. Reedição sem circulação é
vela ao vento. Precisamos de clubes de leitura nas periferias com mediação
paga, compras públicas inteligentes para bibliotecas, formação continuada de
professores, políticas de desconto para livrarias de bairro, laboratórios de
leitura em praças, logística para o interior. Dalcídio vivo é Dalcídio lido.
Leal Kostav: Se a SECULT-PA aceitasse hoje o “tempo de
repensar”, qual seria seu plano de 100 dias?
Paulo Nunes: Três frentes. Curadoria: conselho plural
instituído, eixos temáticos definidos, edital público para mesas e oficinas.
Formação: calendário de mediações, parceria com redes de ensino, cota de
ingressos e transporte para escolas e bibliotecas, kit de acervo básico.
Circulação: convênios com editoras pequenas, política de preço justo, feira
satélite no interior. E, sobretudo, transparência radical: publicar orçamento,
critérios, avaliações.
Leal Kostav: Por fim, professor: o que é, para o senhor, o
silêncio de uma feira de livros depois do último dia?
Paulo Nunes: É um teste. Se o silêncio for vazio, a feira
foi ruído. Se o silêncio vibrar nas casas, nas escolas, nas leituras que
começam, então o livro ficou. Eu trabalho para esse vibrato — que não é
oba-oba, é permanência.







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