segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Benedicto Monteiro - doutor honoris - solenidade ocorre hoje, a parir das 18h, na Ufopa

Discurso a ser proferido pela escritora, poeta e advogada Wanda Monteiro 

Wanda Monteiro, escritora, poeta e advogada. Fonte: redes sociais 


A voz indomável

É inverno nesse meridiano. Estou ao pé da serra, à minha frente tenho o mar aberto, ao meu lado uma laguna. Estou bem longe de meu rio Amazonas. Estou em um outro rio que não é rio, mas guarda um nome de santo e chamam de São Sebastião do Rio de Janeiro. É uma madrugada fria e molhada. Vou dormir com a música da chuva. Eu adoro essa cantilena da chuva. Ela caindo no barro da telha, caindo sinuosa, batendo na minha janela.

Não consigo dormir, escuto a voz de Miguel dos Santos Prazeres falando de seu pai:

... Eu sei, eu sei que ele amava a chuva, porque eu via nos seus olhos a alegria de ver a água escor­rendo, banhando as árvores, caindo sobre a mata, crivando o rio de pingos e respingos, descendo as ribanceiras. Ele gostava da chuva, porque ele entendia o barulho da conversa que ela fazia nas barracas de palha. A chuva tem uma cantiga antiga de enganar o sol, de misturar o dia com a noite e de ensinar o pobre adormecer com fome, A chuva tem uma conversa-fiada-tecida-na-palha que até é doce de se escutar.

 

Com a voz de Miguel no pensamento, agora mesmo é que não conseguirei dormir. É tão difícil dormir. Sempre que vou dormir, ocupo muito de mim com esse desassossego de olhar pra vida e dela saber o seu deslimite. Quando a madrugada chega, tenho em mim essa inquietude de escutar a ressonância do tempo, suas claridades, seus escuros, seu grito e seu silêncio.

Preciso muito dormir, soltar o fio do pensamento e descansar pra escrever sobre Benedicto, o Bené como eu gosto de chama-lo. Escrever sobre ele é sempre um desafio.

Acordei ao meio dia com a cantilena da chuva.

Sim. Ainda chove nesse início da tarde. É uma chuva amiúde.

Não resisti. Fui ter com a chuva. Sempre tenho esse gesto atávico de olhar pra chuva, de correr pra dentro da chuva, de olhar de dentro dela, de chover com ela. Bené meu pai, dizia que nisso, eu parecia muito com sua mãe, minha avó Eriberta. Minha avó Berta, assim eu a chamava, gostava de ficar sob a chuva, de olhar pra ela caindo sobre o rio. Em sua casa, na beira do rio, ela sentava na cadeira balanço e fincava seus pés na terra molhada, olhando a chuva fazer seus caminhos para o rio.

Para nós, de vida ribeira, a chuva é o rio suspenso no ar.

A chuva é um talento da natureza.

Nesse quando de chuva, de um inverno ao pé serra, me vejo diante da janela, olhando pra chuva. Pareço escutar a voz de meu pai, a voz de minha avó Berta e a voz de Maria. Sim. Escuto a voz de Maria de todos os rios, ela falando de sua mãe e seu encantamento pela chuva.

... Nas horas que chovia, minha mãe saía pra fora de casa e tomava banho na chuva. Deixava que a água lavasse o seu rosto, virado pro céu, num gesto parado e de súplica.

... Nunca compreendi essa inquietação de minha mãe. Eu pensava que era uma doença. Nem tive capacidade de in­terpretar os seus gestos, como esse de se entregar todinha pras águas da chuva...

      Penso que ao escrever sobre a mãe de Maria, Bené lembrava de sua mãe e de seu estado de maravilhamento ao ver a chuva cair. Minha avó fazia assim como dizia Maria de sua mãe:

... Com olhos fechados ou fitando entre os respingos, nunca imaginei que ela podia estar procurando, muito longe, o firmamento. Era paresque a procura de uma brecha, pra olhar mais longe. Uma janela pro rio, com lei­to largo e águas correntes...

Com essa escuta, me veio um sentimento antigo e só nesse agora, tomo consciência: o de que Miguel e Maria são meus irmãos. Meus irmãos metafísicos, é certo. Mas. São meus irmãos.

Miguel e eu nascemos no mesmo ano. No ano de 1958. Eu nasci à margem esquerda do rio Amazonas, num de seus braços líquidos, o igarapé chamado Surubiú, numa cidade ribeira chamada Aldeia de Alenquer. Miguel, nasceu no anverso de um papel, hoje, um manuscrito amarelado pela travessia do tempo, perdido nos escaninhos de  memórias. O fato é que Miguel dos Santos Prazeres, o Minossauro, foi concebido no campo das ideias. Foi pensado, sonhado e gestado sobre as águas, quando Bené fazia suas viagens rios adentro, em cima de uma canoa gita como ele dizia, ou em cima de suas voadeiras, como eram chamados os barcos movidos a motor. A semente de Miguel foi plantada pela palavra, no Conto O Precipício, escrito 1958 e publicado no mesmo ano, na revista Norte, editada por um outro bendito Benedito, nosso genial Benedito Nunes.

Miguel e eu nascemos sob o signo da liberdade. Nascemos antes do golpe que tomou de assalto a liberdade de Bené. Maria é fruto do exílio. É fruto deste sempre verbo conjugado por Benedicto Monteiro: o verbo resistir. Maria de todos os rios, foi concebida por Bené, em seu longo e doloroso tempo de exílio, cumprido em sua casa, sua ilha dentro da ilha, sua ilha avenida. Foi na solidão das matas, no cárcere e na sua própria ilha que Bené encontrou se encontrou com o espaço, com o tempo, com o homem amazônida. Foi na solidão, que Bené, meu pai, encontrou consigo mesmo e constatou que só poderia exercer sua mais íntima liberdade no ato de escrever. Posso ouvir sua voz dizendo:

Pois foi nas matas de Alenquer e nesse cárcere de quartel que me encontrei comigo mesmo. E também com o tem­po, com o espaço e o homem amazônico. A partir daí, a mi­nha vida íntima se confundia com esse tempo, com esse espaço e com a vida dessa gente que mais tarde se transformariam nas personagens de meus livros. Confirmei, naquele período, que escrever, para mim, era também o único exercício da minha mais íntima liberdade, e de tal forma, que quando me deparei com a liberdade propriamente dita, que tive que enfrentar a sociedade na condição de mar­ginal, proscrito ou vivente do ostracismo, quase não perce­bi que não tinha voltado para a minha mesma cidade. Para a minha mesma casa. Mesmo no convívio com a minha família, ao lado de minha mulher e meus filhos, eu tinha brus­camente caído numa ilha, numa ilha do mundo, numa ilha social, numa ilha da avenida.

Nessa dobra tempo, em que mergulho nesse rio de palavras pra escrever sobre Bené, me vejo em busca de seu gesto inicial, de suas primeiras visões, de sua primeira pulsão pela escrita e na escrita. Mas a memória quando é escavada em suas fundas camadas, corre esse risco de reinvenção. Assim acontece com Bené na escritura de seu transtempo, quando ele tenta falar de sua identidade em suas memórias:

É muito difícil, ainda hoje, separar os meus sentimen­tos religiosos, políticos e sociais neste meu processo per­manente de dúvida e conhecimento. É muito difícil classificar-me, codificar-me, identificar-me.

           Sou escritora, dizem que também sei escrever poemas. Sobre escrever poemas, não tenho muita certeza disso. Mas, sobre meu amor e devoção pelas palavras e pela literatura, sobretudo como leitora voraz que fui. Disso eu não tenho dúvidas. Acho que herdei de meu pai esse amor e devoção pelas palavras. Estou escrevendo um livro de poemas sobre meu encontro com o mar. Nesse momento em que escrevo sobre Bené, tento me depreender das paisagens que componho em meu livro. Não consigo.

 Ouço o barulho do mar. Posso ouvir e sentir o átimo do instante em que a crista da onda quebra e cai com toda força sobre a areia. O mar está em ressaca e sua ressonância pode ser sentida ao compasso de minha respiração. Moro ao pé de um afloramento rochoso. E nessa noite, essa coluna rochosa está à espreita de Urano em fúria. Já é noite. Esse dorso, feito de sal e espuma, inclina-se para ouvir o rumor do tempo.

O mar. Se signo fosse, seria um deus a repetir-se na estranha força de ondular infindo, em e por si, sob pétrea regência suspensa no abismo das equidistâncias. Fosse deus, seria o mar, esse corpo erguido ao vento, a forma viva de uma nave-mãe, nave líquida, mãe movente, face oculta do deserto.

Vou dormir com o mar.

Hoje acordei com essa lembrança. Que um dia, ao ser provocado por mim sobre o começo de sua paixão pela literatura, Bené disse-me que embora essa pulsão pela escrita literária tenha sido deflagrada quando ele ainda era um jovem adolescente de 16 anos, quando arrebatado pela leitura de Chove Nos Campos Da Cachoeira do escritor Dalcídio Jurandir, ela só se consolidou com a escrita de seu Verdevagomundo. Esse livro foi seu primeiro romance e mais tarde, faria parte de sua trilogia amazônica.

Essa conversa aconteceu em plena ditadura militar, portanto, embora o recrudescimento da ditadura militar e de suas forças opressoras tenham sido, de alguma forma, estancados por movimentos políticos de resistência que abririam pra o caminho da redemocratização, meu pai ainda vivia em sua/nossa ilha e sempre afirmava que o ato da escrita, pra ele, era um ato de resistência.

           Esse maravilhamento, experimentado por Bené ao ler o livro Chove Nos Campos Da Cachoeira, o despertou pra uma nova e inquietante visão sobre esse microcosmo chamado Amazônia e ainda, lhe acenou pra novas percepções sobre o viver dos ribeirinhos. Nesse momento, aos 18 anos de sua vida, nascia Bandeira Branca, seu primeiro livro de poesia e nele, o escritor que também nascia, dava os primeiros sinais de que sua escrita estava sendo fundada em uma consciência potencialmente política e de resistência.

          Seu poema Insatisfação dá claros sinais dessa inquietação:

 

Trago no corpo

o frio desfibrilador das endemias

a lama das terras alagadas

e o soturno roncar do Amazonas

quebrando e inundando

verdes matarias!

 

Trago nos olhos

o horizonte verde, sempre verde,

da terra imensa e misteriosa,

a realidade triste, sempre triste,

dos homens que vivem

nas lendas maravilhosas.

 

Desses homens que lutam

a guerra dos fortes;

brigando com a terra,

brigando com a água

e com a ferocidade

das foças desconhecidas.

 

Trago nos olhos

a monotonia das paisagens,

a poesia triste das paragens,

a triste poesia que brota da terra,

transformando em lenda a miséria da vida!

 

Trago na alma

os quadros trágicos e possantes

que guardam ainda a cor

e a impetuosidade

das criações remotas.

 

Trago na alma

a impressão marcada

da gente infeliz e desgraçada

que já enfrentou todas as derrotas!

 

Tudo isto eu trago

no meu coração

para escrever

a minha grande poesia

de insatisfação...

            Após a publicação de Bandeira Branca, Bené fez um longo interlúdio em sua caminhada literária. Continuou escrevendo, aqui e ali, poemas, contos, ensaios. Mas, não publicava. Foi viver uma vida de lutas onde conjugava, com vigor, o verbo resistir. Percorreu uma senda que lhe levou à carreira política, e essa se colocou à frente da carreira literária. Esse percurso político, de lutas por liberdade, igualdade e justiça social o levou pra um lugar potencialmente perigoso diante de um golpe militar que tomou de assalto sua liberdade por longos anos.

           No depois da senda de palavras, até aqui lidas, e escritas por mim e por meu pai Bené, me veio à escuta não de sua voz, mas sim de seu silêncio.

          Se ele estivesse entre nós, aqui e agora, ele me diria sobre o silêncio que sempre me acomete diante das mortes de cada dia. E eu lhe diria do vazio dessa estação chamada saudade.

A saudade de Bené será sempre um silêncio.

Cultivo em mim esse silêncio de revolver a memória deitada no leito mais fundo, sobre seixos de relvas afogada. Esse silêncio de escavar o fundo do tempo. O que me há sempre deságua nele: o rosto silente do pai a me olhar das distâncias, de viver e correr entre uma margem de lembrança e outra margem de espera. Essa espera densa de sílaba a sílaba, concentrada em cristal arenoso. Mas, há uma terceira margem de incontornável geografia: o agora e essa saudade a consumir o pensamento em amplidão de ausências. A saudade essa clareira no peito ancho de ecos. A saudade esse lembrar à exaustão. A saudade. Esse algo a pesar sobre o dorso do tempo partido por uma estação sem nome. E há outra margem. A margem onde busco a palavra: uma palavra que seja rio para assim ser palavra, uma palavra de ter começo, mas, de não ter fim, pois que não ter fim é seu destino.

No dorso desse tempo de guelras abertas, há a voz do pai dizendo das palavras que sustentam o mundo, que suspendem o céu, que inventam a vida e agasalham, na memória, o mistério de todo sentir.

Meu silêncio foi quebrado pela chegada de meus netos, em minha cabana ao pé serra. Os netos são pra mim esse amor em desmesura, um laço inquebrantável. Neles eu posso exercer minha afetuosidade e meu bem-querer livremente. Eles quebram em mim qualquer silêncio.

Só hoje nessa noite fria com ventos soprando à sudoeste. Sob à constelação do Cruzeiro do Sul, em agosto de 2024, eu me dei conta que Miguel dos Santos Prazeres, assim como eu, completou 66 anos de existência. A diferença é que Miguel não envelheceu como eu envelheci. Sobre Miguel não incide nem o peso nem os atravessamentos do tempo. Nas palavras, Miguel vive e revive com o mesmo vigor. 

Bené vive em Miguel.  Ele tem, nas palavras, sua cotidiana ressurreição. Nas palavras, sua voz indomável pode ouvida cotidianamente.

Sobre o tempo, sua travessia, seus efeitos, posso dizer que sinto o seu peso sobre o corpo e sobre a maturidade nos ossos das palavras. No entanto, o tempo me trouxe o que considero uma virtude: já não tenho pressa. No começo desse meu anoitecer, cultivo a contemplação.

Antes de partir, meu pai Benedicto Wilfredo Monteiro anoiteceu. Estive ao seu lado nos últimos meses de sua noite. Ele, adoecido, sem chances de cura, muitas vezes, acordou, olhou sorrindo pra mim, dizendo: Filha! Estou partindo.

Vendo-me revisar seu último romance, dizia: Filha, antes de partir, preciso lançar meu Homem Rio, preciso libertar Miguel.

Hoje, digo pra mim que esse foi mais um de seus atos de resistência.

Ele partiu.

Posso ouvir sua voz:

Tantos anos andei pelo. Sempre transitoriamente. Aprendi que porto, mesmo, é só a maturidade. E chegada, mesmo, é o só ultimo regresso.

 

           Bené, em seus últimos dias, nesse quando e onde vivemos, raramente dizia a palavra morte. Falava sempre em partir. E nesse exato ato de escrevê-lo, lembro de seu sentimento sobre a morte, e sobretudo, lembro de quão era importante ele reafirmar a vida, conjugando o verbo resistir. Esse sentimento é traduzido na voz de seu alter ego Miguel:

Nego as mortes! Nego e renego as mortes, todas as mortes. As mortes de ficar calado, as mortes de ver a água correr, as mortes de ver o rio sempre passar, as mortes gerais dos homens que envelhecem. Eu nego e renego as mortes. Eu só afirmo a vida. Minhas afirmativas, só são de bem-querer, de bem-viver e de bem-lutar.

Sinto que sempre vou lembrar desse dia. O dia em que eu e meu irmão Ben levamos as cinzas de Bené pra se misturar às águas de seu rio Amazonas.

 Saímos de Santarém, numa lancha de um amigo da família, atravessamos as águas azuis do rio Tapajós e cruzamos o encontro das águas. Após cruzar o encontro, a lancha deu defeito. Ficamos à deriva, por várias horas. Eu disse pra meu irmão: Bené está querendo nos dar algum recado. Ele riu. Era um dia de sol inclemente. A situação era bem perigosa. Estávamos com pouca água doce a bordo e sob um céu nu de nuvens, portanto sem sombra alguma que pudesse nos proteger da luz espelhada no ouro das águas barrentas do gigante Amazonas. Pra todo lado que firmávamos a visão, só víamos água. Era um mundão de águas. Todos os horizontes pareciam dar em abismos. Nossos olhos não alcançavam terra firme e nenhuma ilha. Estávamos no topo do mundo. Só havia a água. Ao longe, podíamos ver as ilhas de ninfeias chamadas mururés flutuando sobre as águas. Havia o espaço contido no tempo e o tempo contido no espaço. Havia mil tons de verdes e de azui, mil tons de ouro e de prata.   Nesse momento, eu e meu irmão nos abraçamos, e eu lhe disse: Mano! Estamos dentro do verdevagomundo de Bené.  

O piloto, finalmente consertou a lancha. Mas, perdemos o furo do rio que nos levaria ao igarapé Surubiú. Esse era o recado de Bené. Ele queria ficar no topo do mundo, no alto do rio, em sua correnteza mais revolta, em suas águas mais fundas.

Deixamos nosso pai misturado às águas de seu rio Amazonas.

Naquele exato instante, das cinzas se misturando ao rio, parecia ouvir a voz do meu pai:

Guardo-me em tuas águas. Peço-te! Guardes, na eternidade, os sonhos que sonhoi e os sonhos que não me deixaram sonhar.

Era uma oração. Sua última oração.

Nossa oração, foi a voz do pai, na voz de Miguel:

 

Tudo era espaço e tempo vago. Verde e vago. Verde vagomundo. Foi aí que me perdi na pura claridade. Era paresque claridade do verde, da água, da noite e do silêncio. Pensei que era a morte, que eu estava morto. Pensei que eu estava bem no fundo. Mas nesse mesmo instante, nesse justo e exato momento, foi que a água e o céu se abriram e surgiu uma praia branca. Muito branca. Todos os verdes e todas as cores se resumiram naquela praia. E não tinha princípio nem fim: era uma distância. Era paresque também uma margem. Mas, uma outra margem.

 

Wanda Monteiro

 Nota: os excertos em itálico, foram extraídos (respectivamente) dos livros de Benedicto Monteiro : O Precipício, o Conto; Maria de Todos os Rios; Transtempo; Bandeira Branca: Verdevagomundo e Aquele Um;

 

 

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