terça-feira, 26 de novembro de 2024

SOBRE MOMO E ALBERTO SILVA NETO

 ISMAEL MACHADO

O psiquiatra José Ângelo Gayarsa, que se notabilizou por fazer ‘sessões e consultas’ na televisão, costumava dizer que a família- pelo menos a nossa família tradicional ocidental- era fonte das nossas maiores mazelas e traumas psíquicos ao longo da vida. Creio que Nelson Rodrigues assinaria embaixo dessa afirmação com um largo sorriso no rosto.

É difícil olhar ao lado ou mesmo internamente e não ter uma sensação de que nossas fissuras emocionais não são causadas por esses anos de convivência familiar, negociando emoções, suprimindo dores, alimentando fantasmas de rancores, invejas e solidões. Há saída? Difícil dizer.

Alberto Silva Neto encontrou uma. Ou não, vá se saber, numa filosofia caetânica, de resto um ícone na vida de Alberto. Expor as fraturas e as feridas de um relacionamento com o pai e, por tabela, com um avô não conhecido (e que personagem fascinante) foi um modo de o ator Alberto exorcizar o pai, o avô, a família. Prestar homenagem ainda que às vezes sombria, foi uma solução para alguns demônios, anjos noturnos que podem atravessá-lo em noites perdidas, deitado na rede e olhando a cidade do alto.

Momo, o espetáculo exorcismo, o monólogo das entranhas, a peça divanesca, o teatro testemunho, ou qualquer outra definição que queiramos ou possamos dar é, antes de tudo, um atravessar por um terreno pedregoso. Sim, estamos vendo as águas do mar, a praia lá adiante, mas para chegar até ela, é necessário talvez cortar os pés nas pedras afiadas que nos separam dessa suposta recompensa. Não, não nos iludamos. Como o personagem em determinado momento, precisaremos arrancar fora os calçados e encarar os passos nus.

Alberto Silva Neto é um monstro. É um artista-ator que chegou a um momento de plenitude dramatúrgica onde a palavra assombro talvez seja a melhor a nos definir quando o assistimos em cena. Sou testemunha disso. Alberto fez parte de meu primeiro longa de ficção, Flashdance TF e eu, que sempre o cogitei para o papel desde a escrita do roteiro, admito não estar preparado para o que presenciei de forma tão íntima e tão intensa. Cláudio Barros, outro gigante amado, não me deixaria mentir.

Em Momo, Alberto se despe e se veste. Se traveste de armaduras e as joga longe. Ao encarar a vida e a morte do pai, entre cartas, recortes, missivas que mais parecem uma garrafa jogada ao mar, ele nos amarra ao pé da mesa da escuta. Só que essa escuta não é isenta de dor. Ela nos leva aos nossos próprios assombros, nossos escuros, ali onde algo nos escava feridas, nos atropela memórias. É dor feito gozo, como cantariam Gonzaguinha ou Djavan, que já abordaram essas funduras em letras musicais. Ou aquilo que Caio Fernando Abreu sempre dizia, sobre a dor de criar algo que é verdadeiro, no sentido não da palavra verdade, mas aquela coisa que não nos deixa mentir quando o espelho nos mira de volta nos sombrios momentos de solidão urbana.

O que Alberto busca e ele costuma enfatizar isso, é ultrapassar a barreira do mero ser-estar ator e ir um pouco além. Ou muito além. Alberto grita e chora e ri e sussurra e se cala. E entre os olhos umedecidos ele sorri e confessa ser teatro o que faz. Mas é uma armadilha também, pois nunca é só teatro. A vida pulsa. No efêmero e no eterno.

Há vícios e virtudes no caminho de qualquer artista. Egos impelidos a criar e dizer e mostrar algo que são como portas entreabertas, janelas que iluminam porões empoeirados, onde o fogo que queima gera uma cinza pouco acessível. Não é uma tarefa fácil sacudir os esqueletos de cada armário.

Em Momo há as compreensões e incompreensões sobre os papéis de cada um numa história masculina. Paternar. O pai, o filho, o desamparo materno, o pai que somos, os filhos que fomos, o futuro e o passado que se embolam. Onde o abraço? Onde o encontro? A voz tonitruante imperativa. A voz do pai. A voz do medo. Da distância, do afeto suprimido. Pai. Descasquemos as peles, arrancando as cascas de ferida. O que nos sobra?

Alberto entrega e pede de volta. Reclama compreensão e aceitação. Esse sou o eu descarnado. Talvez não seja. Talvez seja apenas teatro. Mas se teatro é vida, é a vida que está sendo jogada em nós?

Ou é simplesmente mais uma folia de momo num carnaval de ruas desertas?

O palhaço chora. E eu o observo de meu próprio picadeiro. Alberto?  Esse quer se equilibrar na corda lá em cima. A pergunta que me faço é: há rede para amparar a queda, se houver?

Ave, Alberto. Te saúdo.

ISMAEL MACHADO

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

O camponês e a ditadura

Mané faleceu em agosto de 2021, aos 86 anos

Foto: Marcelo Cruz

Manoel da Conceição foi um dirigente camponês das bandas do Maranhão. Durante a ditadura civil-militar foi preso, torturado e teve uma perna amputada. Dono de rara inteligência e perspicácia, Mané militou no Bico do Papagaio, onde foi engajado na organização sindical, educação popular e economia solidaria.  Certa feita, em intervalo durante  encontro de formação, ele afirmara que a ditadura não havia acabado. Inocente, puro e besta, confesso que fiquei perplexo diante da afirmativa do líder camponês.  Não compreendi. Passado tanto tempo, somente agora, com os recentes eventos que abalam a reles pública, consigo compreender o que ele refletira nos idos da década de 1990.  Tratava ele do ethos da nossa conformação como país, estruturado na concentração da terra, patriarcado, judiciário parcial, patrimonialismo, nepotismo, racismo, privilégio,  ideário autoritário e uma burguesia entreguista e golpista.  

Saiba mais sobre Mané AQUI

A luta pela terra no Maranhão: universidades e movimentos sociais organizam simpósio sobre o tema

 Simpósio inicia no dia 25, em São Luís

Refletir sobre o incremento da violência no estado é posto como o horizonte do Simpósio A Luta pela terra no Maranhão, que inicia no dia 25, em São Luís, Maranhão.  As universidades federal e estadual serão os espaços de realização dos seminários.  Além de pesquisadores, representantes dos movimentos sociais relacionados com o  tema engrossam o caldo da organização  do evento e das reflexões.  Saiba mais AQUI

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Tapajós Vivo: 2ª edição do festival celebra a defesa dos territórios do Baixo Amazonas

 O festival é um ato político em oposição aos grandes projetos na região do Baixo Amazonas



Ocupar a cidade a partir da arte como ferramenta de sensibilização para os males que afetam e ameaçam a região do Baixo Amazonas é o objetivo da 2ª Edição do Festival Tapajós Vivo.  Organizado pelo coletivo Movimento Tapajós Vivo, o ato ocorrerá na Praça Tiradentes, sexta feira, dia 15, a parir das 18h30. 

Artesanato DJ, exposição de fotografia, poesia com intervenções de Luci Nascimento e Jonhson Portela, e música constam na programação. Marcelle Almeida, Priscila Castro, Mestre Chico Malta, Sambatuque e Dan Salassie são algumas das atrações musicais.

O comunicado do evento esclarece que o ato representa um manifesto contra a contaminação do rio Tapajós, as constantes secas e uma oposição clara aos grandes projetos agendados para a região, onde constam obras de infraestrutura, entre elas a Ferrovia Ferrogrão, hidroelétricas, hidrovia e vários portos.

Arrecadação de alimentos:  o evento receberá cestas básicas e alimentos não perecíveis para atender as comunidades ribeirinhas que têm padecido com as constantes secas que abalam a região. Trata-se dos verdadeiros guardiões da floresta e de toda cosmologia e encantados que ela representa.



Leia a íntegra do release AQUI

Maiores informações

Festival Tapajós Vivo 

Data: 15 de Novembro 

Horário: 18h30 

Local: Praça Tiradentes- Santarém/PA

Saiba mais do Festival nas redes:

Instagram: Movimento Tapajós Vivo (@tapajosvivo)

Facebook: Movimento Tapajós Vivo

Comunicação Movimento Tapajós Vivo: 93 99145-0364 (Kamila Sampaio)


domingo, 10 de novembro de 2024

Tio Walter

 

Cantou para subir o tio Walter.  Casa dos 80 verões pra diante. Caçula, era o bendito fruto de um matriarcado arretado.  Morava na zona rural de São Luís, em um sítio, onde mantinha um comércio.  Em Quebra Ponte, caso eu não esteja enganado.  

Dos resquícios da memória de uma rara visita à casa dele, emerge a beleza e o cheiro doce de um jenipapeiro. A frondosa árvore produzia uma bela sombra. Os frutos esparramados pelo chão perfumavam a entrada da casa. Compotas, doces, licores são produzidos a partir do jenipapo.

Fala-se que os galhos da árvore é o mais recomendado para a produção do arco do berimbau. Berimbau sim, berimbau não....berimba, berimba, berimbau...tio Walter cantou pra subir....foi fazer meia lua em outro arraial.

Ao contrário das meninas, que sempre organizavam reuniões, o tio era recluso. Era miúdo. Franzino. Pouquinho. Quando jovem foi atropelado por um caminhão. Ficou todo esbandalhado. Inúmeras vezes recordo de ir ao hospital levar refeições para ele. Quando lembro por quanto tempo ficou internado. Todavia, saiu com sequelas.

Em uma das recorrentes idas a São Luís para visitar Mainha, ele apareceu para um almoço. Divertido e falador. Queria saber como eu tinha ficado.  Conheceu Docinho, que morria de rir das potocas dele.

Na ocasião, contou um causo que teria ido de bicicleta até às proximidades do município de Rosário. Trata-se de uma espécie de região metropolitana de São Luís. Salve engano, a proeza foi por conta de algum rabo de saia. O esforço o fez sangrar. 

no dia do almoço, antes de partir, fez a "intera" para a breja. 

terça-feira, 5 de novembro de 2024

Pesquisadora Thiane Neves apresenta tese sobre apropriações de tecnologias por coletivos de mulheres negras do Baixo Amazonas



NEGUINHAS QUE ARMAM QUIZUMBA: debates sobre ações políticas e apropriações das tecnologias pelas herdeiras de Ananse da Amazônia Paraense nomeia a tese de autoria da pesquisadora paraense Thiane  Neves, apresentada em julho,  na Universidade Federal da Bahia, no Programa de Pós Graduação em Comunicação.  Ela será apresentada nesta quarta-feira, dia 06, na sala 208, no Prédio Laranjão, no campus da Ufopa Tapajós.

Em linhas gerais a investigação aborda o uso das tecnologias por coletivos de mulheres negras, na construção de ações e redes de políticas afirmativas. Analisa as múltiplas relações destes grupos com as tecnologias digitais, seus enredamentos, usos e as especificidades de seus processos de apropriações.

A banca examinadora considerou o trabalho como de excelência, e o recomendou para publicação. A iniciativa do evento faz parte do projeto de extensão Luta pela terra na Amazônia, vinculado ao curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional.   

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Expropriação e resistência camponesa na Amazônia é tema de seminário do Curso de Pós Graduação de Geografia da USP

 O debate terá contribuições de pesquisadores da Amazônia e de movimentos sociais. 

Entre os dias 7 e 8 de novembro de 2024, às 17h30, na Sala de Vídeo do Departamento de Geografia, ocorrerá o  Seminário Expropriação, (re) produção do capital e resistência camponesa na Amazônia nos anos 2020.  A iniciativa é do Laboratório de Geografia Agrária, o formato é híbrido.  

O Objetivo do evento é contribuir para uma reflexão sobre o momento atual das disputas territoriais na Amazônia e a centralidade da luta pela terra para os processos de acumulação no capitalismo contemporâneo.

Constam na agenda de debates pesquisadores da UEPA, UFOPA, UNESP, IFSP e USP, e representantes do MST, MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração ) e da  CPT (Comissão Pastoral da Terra).




sexta-feira, 1 de novembro de 2024

A campanha

2º turno. Nada de fila na zona. Nem santinhos nas ruas. Menos ainda na política.  Vale tudo no amor e na política? Em Santarém os dramas/tramas políticos promoveram a convergência de três oligarquias em um flanco. Noutro, um nem-nem com mais 40 anos,  ombreado por uma jovem oriunda da agricultura capitalista do MT. Arrearam grana no intento em levar no 1º round. Não rolou.  O embate mais parecia um cortejo de estupidez. 

O barulho imperou no Centro e nas periferias com motociatas e carreatas usadas como o principal instrumento de “comunicação”. Ganha quem mais ruído promove? Veículos de aplicativos, táxis convencionais e mototáxis dão corpo à ópera bufa. Fala-se em compensações com dinheiro e combustível. Na ruidosa marcha do grotesco passageiros sentam-se na janela de veículos, agitam bandeiras. Ora do candidato, ora do Brasil. 

Um desfile pelo engajamento ao recrudescimento do obscurantismo. Todos tocam as buzinas. Seja carro ou moto. O clímax  da marcha reside em tocar foguetes onde ocorre alguma concentração de gente.  Refletir sobre os males que afligem a população de forma séria e com algum estofo, mas, qual o quê....tudo rasteiro. Mais rasteiro que o cu da cobra, como versa o adágio popular. 

Independente de que vencer, perde a população de um município estratégico tanto como possibilidade em promover um horizonte para além das quatro linhas do grande capital, quanto para a agenda dos grandes projetos em pauta, que a tudo fagocita, até a alegria do guariba.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Cepasp, ONG de Marabá, soma 40 anos de pelejas

O Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp) nasce na década de 1980, no rebojo da chamada redemocratização do país.

A vida só é possível reinventada – Cecília Meirelles

Marcha de sem terra em Marabá/PA, anos de 1990, quando da realização de grandes acampamentos em frente ao INCRA. A ação reunia perto de 20 mil pessoas durante dias. Fonte: arquivo Cepasp. 

Havia uma pedra no meio do caminho. No trecho sempre há mais de uma pedra a obstruir o caminho para a construção de um mundo menos injusto. No caso brasileiro, uma burguesia tacanha e entreguista, ainda que publicize um falso discurso de pátrio amor. Mera potoca (mentira).

A potoca como método tem sido o potente instrumento usado pelos setores mais conservadores do Brasil. Lembremos, foi justo sob os pilares mais profundos do conservadorismo que a pátria foi erguida, tendo o privilégio como ordem. Raras são as rachaduras na estrutura.

Na frágil edificação da democracia liberal burguesa do país, ditaduras entrecortam períodos. A mais longeva durou mais de duas décadas (1964-1985). Um projeto de tirania contra a América Latina acionado pelos EUA. Imperialista cultura. Assim como hoje, vendia-se a ideia de ameaça comunista.

O blefe persiste. Nesta feita em um emaranhado de distorções onde predomina o medo. Este mobilizado a partir de vozes de vendilhões do templo.  Falsos profetas de todo quilate e tipo. Assim como prolifera uma ideia de abissal individualismo, onde possuem destaque coach (treinador/a), gurus de todo tipo de estampa. Um obscurantismo a projetar falsos messias de Norte a Sul a ocuparem o território da política.

As pedras nos caminhos são várias. Todavia, caminhar é necessário e urgente. Navegar em oposição ao estabelecido urge. Neste sentido, no ano de 1984, mesmo antes do “fim” formal da ditadura civil militar, nascia nos rincões da Amazônia, na cidade de Marabá, sudeste do Pará, o Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular (Cepasp). 

Entrada da sede do Cepasp, Rua Sororó, bairro do Novo Horizonte, Marabá/PA, anos de 1980. 

O delicado período de transição consagrou a região como a mais violenta do Brasil no que diz respeito à luta pela terra. O setor ruralista levantou ao cume mais elevado o combate à reforma agrária. Nesta direção forjou a milicia União Democrática Ruralista (UDR).

Ronaldo Caiado, eterno dirigente das forças obscurantistas do estado do Goiás, novamente governador, era o ponta de lança da organização. Matou-se aos borbotões: posseiros, garimpeiros, advogados, religiosos. Chacinas eram recorrentes. Agências de pistolagem proliferaram no Bico do Papagaio (Maranhão, Goiás e Pará). 

Raimundo Ferreira Lima (Gringo), Agente Pastoral e sindicalista foi o primeiro líder camponês a ser executado nos anos de 1980. Fonte: arquivo da família

Polícias e pistoleiros a defenderem a terra grilada diante de um judiciário parcial. Assim como nos dias de hoje. O Judiciário notório na ligeireza a expedir reintegração de posse, manifesta-se modorrento na apuração de crimes contra os trabalhadores/as rurais. A Justiça tem classe, e enxerga, mesmo no escuro, onde a ordem tem sido criminalizar a pobreza e os que se opõem a ela.

Ainda assim navegar é preciso! O Cepasp emerge no riomar de instalação de grandes projetos na região de Carajás. Pecuária, madeira, mineração e geração de energia foram os principais polos de desenvolvimento impostos pelos governos. Ditatoriais ou não.

Uma opção de entrega do patrimônio, onde grandes empresas do capital internacional, a exemplo da Volkswagem, mineradoras, frações de classe dos estados do sudeste, bancos tais como Bamerindus, Bradesco, Econômico apossaram-se de vastas extensões de terras. A floresta foi amansada na pata do boi. A floresta e suas gentes eram compreendidas e enquadradas como um impedimento ao “desenvolvimento”.

Desmatamento, violências contra a sociodiversidade local, com ênfase a execuções de camponeses e seus apoiadores e o trabalho escravo são alguns dos passivos socializados. A barbárie instala-se como ordem. Em oposição, faz-se necessário formar parelhas. Barricadas em defesa da vida.

Assim, o Cepasp forma par com as populações expropriada pela barragem de Tucuruí, erguida no rio Tocantins, em cidade homônima. A hidroelétrica foi construída para atender as grandes empresas da cadeia da produção de alumínio no Pará (Albras e Alunorte e no Maranhão (Alcoa). Além de Tucuruí, municípios vizinhos também foram afetados, a exemplo de Novo Repartimento, Jacundá, Breu Branco e Goianésia.

Coube à sociedade nacional pagar os subsídios astronômicos concedidos pelo Estado às empresas por longos anos. O saque, a pilhagem e a degradação do humano assim se impõem como padrão de ocupação da região.  Neste combate a ONG fortaleceu a comissão dos atingidos pela barragem (Comissão dos Expropriados), no processo de elaboração de demandas com vistas a pleitear reparação em Brasília.

As pedras no caminho são várias. Junto à Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) ombreia a luta das populações espoliadas pela construção da Estrada de Ferro de Carajás (EFC). A ferrovia ligou o sertão do Pará ao litoral do Maranhão. Uma dorsal do saque. 21 municípios atravessados pelo projeto. O saque segue a plenos pulmões. A ferrovia foi duplicada, e os problemas junto às populações multiplicados. Entre o sertão e o mar, a pobreza possui pujança em combates marcados por assimetrias.

No campo e na cidade o Cepasp somou em inúmeros combates. No campo, nos anos de 1980, tomar os sindicatos das mãos dos pelegos era a bandeira. Nesta direção colaborou com a formação política de dirigentes em Marabá, São João do Araguaia, São Domingos do Araguaia, Rondon do Pará, Itupiranga, Tucuruí, Novo Repartimento, Goianésia e Jacundá. E mais recentemente com Eldorado dos Carajás, Parauapebas e Canaã dos Carajás.

No combate em Marabá fez fileira junto à chapa do camarada Arnaldo Ferreira que veio a ser assassinado em1992, pela tomada do da direção do sindicato em 1988. Nesta conjuntura, equivocadamente, agentes da ONG Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) decidiram pelo apoio aos pelegos.  Nestes combates, cumpre realçar as valorosas contribuições do advogado Gabriel Pimenta.

Ao centro, Raimundo Gomes da Cruz Neto (Raimundinho), agrónomo, sociólogo, educador popular e migrante do PI, linha de frente do Cepasp. 

Um antigo e presente pensador já sinalizava para a necessidade da unificação da luta. No campo e na cidade. A foice e o martelo.  Assim o Cepasp fortaleceu os combates junto a sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos (Professores, Metalúrgicos), associação de moradores, cooperativas e caixas agrícolas de pequenos produtos rurais, instituições estudantis, clubes de mães, povos indígenas, extrativistas, pescadores e tantas outras categorias.

Em barricadas políticas e técnicas a organização sempre esteve junto aos/às trabalhadores/as. No campo e na cidade.  No caso do campo técnico, coordenou inúmeras equipes de assessoria voltadas para os assentamentos de reforma agrária, a partir do Projeto Lumiar.

A educação libertadora é o horizonte da instituição. Na cidade de Marabá somou forças pelo direito à cidade nos bairros integrados do núcleo Cidade Nova. Formação política, educação popular e emancipatória, produção de instrumentos da comunicação popular (jornais, cartilhas, rádios comunitárias, organização de arquivo da luta popular e biblioteca), organização de feiras agroecológicas, participação e organização de espaços formativos dentro e fora de universidades o credenciaram a fazer parte de fóruns nacionais e internacionais.

Constam neste rol: Seminário Consulta, depois renomeado e reorganizado como Fórum Carajás, Fórum da Amazônia Oriental (FAOR), GTA (Grupo de Trabalho Amazônico), FERA (Fórum pela Reforma Agrária), etc.

Navegar é preciso! Os combatem não findam. Em dias recentes junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT) colaborou no enfrentamento da expropriação de famílias camponesas afetadas pela expansão da mineração da empresa Vale. Fez isso nos municípios de Canaã, São Felix do Xingu, Ourilândia do Norte e vizinhança.

No debate ambiental, hoje em moda, já nos anos de 1980 a pauta fazia parte da agenda de ações da instituição. O hoje celebre indígena Airton Krenak, já dialogava na região de Marabá sobre os danos provocados pela CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) em Minas Gerais, participando do IV Encontro Marabaense em Defesa do Meio Ambiente, organizado pelo CEPASP.

Airton Krenak, indígena e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), em participação no IV Encontro Marabaense de Meio Ambiente, nos anos de 1980, Marabá/PA. Fonte: arquivo do Cepasp. 

À época, a mineradora ainda era uma empresa estatal, que veio a ser entregue aos abutres do capital em 1997. Um ano após o Massacre de Eldorado e dois anos depois da Chacina de Corumbiara. Avanços neoliberais. Originária acumulação. A tudo maximiza, em particular a morte.

No mesmo campo ambiental colaborou na criação do Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta/Piranheira, no município de Nova Ipixuna. Nele tombaram José Cláudio e Maria. Sanha de grileiros assassinou o casal.

Feira agroecológica realizada desde 2016 em frente à sede a instituição. Fonte: arquivo Cepasp

Meirelles já apontou: a vida só é possível reinventada. A partir desta invocação, a ONG metamorfoseou-se em Comuna Cepasp. A atuar sob a orientação de três círculos: Estudo e Formação, Cultura e Arte e Auto-sustentação. Com a participação de famílias camponesas do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Porto Seguro, desenvolve uma Feira Camponesa que funciona aos sábados no espaço da Comuna desde 2016.

Sobre a conjuntura da época da criação do Cepasp, Jean Pierre Leroy, francês naturalizado brasileiro, falecido em 2016, técnico da Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) analisa que tanto o Cepasp, quanto a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) emergiram a partir do PRC (Partido Revolucionário Comunista).

O artigo de Leroy consta na obra sobre os 10 anos do CAT (Centro Agro-Ambiental do Tocantins): etnografia de uma utopia/2000/UFPA. O CAT foi uma inciativa do pesquisador belga Jean Hébette, também já falecido em 2016. Hébette notabilizou-se com pesquisas sobre o campesinato amazônico.    

No texto Leroy realça divergências políticas e ideológicas na criação em particular da Comissão Pastoral da Terra (CPT), assim como na condução de algumas estratégias de luta sindical na região.

No percurso do texto Jean Pierre pondera que a Corrente Sindical, hegemônica na tomada do Sindical dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais (STTR) de Santarém da mão dos pelegos, no Baixo Amazonas, em determinado momento calculou em sentar praça na região de Carajás.

No ponto de vista de Leroy, foi por conta de divergências políticas e ideológicas, em particular com o bispo da época, Dom Alano, um religioso simpático à luta pela terra na região. Ainda na década de 1980, “O Cepasp passou a acompanhar e questionar o Projeto Carajás, a apoiar a luta pela terra, a se preocupar com a estabilização dos posseiros e com o meio ambiente”, palavras de Leroy.  

Por mais agitado que esteja o mar da História, está vivo quem sempre peleja, a reinventar a vida todos os dias em giras coletivas!!!

Entre os inúmeros/as colaboradores e militantes, registramos: em memória Ademir Martins, Beta, Deuzinho, Ednaldo, Loreto, Jamison e Evandro Torres. Ainda entre nós:   Alice Margarida, Marcos Leite, Deibsom, Adilson(Peba), Nilce, Wanderlei, Jorginho Neri, Raimundo Cabeludo, Ilan, Eliana, Gilberto Silva, Marlene, Ezerom, Genivaldo, Gicivaldo, Rogerio Almeida, Dvandro, Ivonete e Seu Osmar.  Grato a todxs!!! Aos nomes que a gente, traído pela memória não conseguiu lembrar, sintam-se inclusos na gira. 

Membros do CEPASP na ativa e afastados: Raimundinho, Angelina, Zequinha Ferreira, Fabinho, Pedro dos Santos, Bispo, Barbudinho, Moreira, Atanagildo Matos (Gatão), Jaide, Iara Ferraz,  Irmã Dijé, Emanuel Wambergue (Mano), Rafael, Kézia, Neide, Neirilene

A celebração pelos 40 anos ocorre entre os dias 04 a 09 de novembro. 



segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Enquanto a COP não vem, a polícia do Pará continuar a executar sem terra

 Nota coletiva manifesta indignação sobre a perpetuação da violência contra sem terra perpetrada pelas policias do estado

Fazenda Mutamba, Marabá/PA. Fonte: redes sociais

Por ironia, quem cometeu o crime foram policiais ligados à Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), em tese, criada para mediar situações de conflitos na luta pela terra no estado.   

Antônio Mororó, titular da delegacia, comandou uma operação em área ocupada na cidade de Marabá, sudeste do Pará, a fazenda Mutamba. 

O ato culminou com o assassinato de Adão Rodrigues de Sousa, 53 anos, casado, pai de 05 filhos e, Edson Silva e Silva, 44, na última sexta feira, dia 11, às vésperas do Círio de Nazaré. 

Além das mortes, os servidores da DECA são acusados de tortura.  A nota denuncia os laços viscerais do delegado com grileiros e latifundiários da região.  Leia a nota AQUI

Sobre as complexidades que envolvem parte das terras no sudeste do Pará, leia AQUI



terça-feira, 17 de setembro de 2024

A Cristaleira

No roer das horas o asfalto a tudo devora. Matas, rios, jacarés, passarinhos e encantarias. Assim, por aqui sucedeu. Sucede. Um beijo de Judas, deus progresso. Um punhado de moedas e alguns montam na onça. A cidade a se reconfigurar ao dissabor do muque capital.

“A cidade não para. A cidade só cresce. O de cima sobe. O debaixo desce” é Science na veia do mangue. Por estas paragens, a Av. Fernando Guilhon (PA 453) subjugou matas e rios. Matar é a ordem do desenvolvimento. Rodovia, navalha é uma artéria da cidade de Santarém/PA. Ela faz convergência com a BR 163 (Cuiabá- Santarém) e com a PA 257 (Everaldo Martins). A avenida integra uma geografia de expansão do município polo do oeste paraense.

Nunca mais naquela estação encontrei meu coração. Samba triste traficando melancolias. Nesta quadradura, prédios, loteamentos, grilagens, ocupações vicejam com desenvoltura. O preço de imóveis é algo transcendental. Seja lote, terreno, casa, apartamento ou prédio.   A rodovia liga o Centro ao Aeroporto, e possibilita acesso ao território do povo Borari (Alter do Chão). O progresso a tudo fagocita. A todo momento reclama sangue, plasma, placenta, corações, rins, pâncreas e tristeza. O cabra é de morte! É de matar! Matas, rios, risos, jacarés, passarinhos e encantarias.  

O negócio seguinte. Cemitérios de vidro. Shoppings. Coral de cães desafinados no natal. Farmácias, laboratórios, padarias, pizzarias, petshop, botecos, pequenos comércios - que bravamente resistem aos atacarejos -, hotéis, hamburguerias, motéis, movelarias e afins espocam por todos os flancos. Um campo minado.  “A cidade não para. A cidade só cresce”. Muitos para o beleléu, alguns para o céu. Jogo de poder. Malícia. Carícia em criptomoeda.

Faz calor. A fuligem de queimadas precipita sobre solidões, políticos anões, depressivos e suicidas. Na ópera de sobrevivência, sob o ruído de automóveis, depois das 18h vendedores de churrasquinhos despontam ao pôr do sol. Avista-se de longe os fios de fumaça. Negociantes de frutas e peixes completam a aquarela. Territorialidades ao sabor do improviso. Outros mundos em universo de escassez. Comunhões de excluídos. Seios e culhões à mostra. Procissão de mortos vivos ruma em busca de algum templo.

Cisco nos olhos. Tudo embaçado, de cabo a rabo. Entre mesas, bancos, cadeiras, beliches e outros tipos de movelaria funcional, era possível avistar uma cristaleira na loja Pica Pau.  A peça destoava de tudo ao redor. Quase um mutante entre os convencionais. Era negra. Elegante. Faltava-lhe um vidro na composição da porta. Não era grande. Nem pequena.

A exibição sucedia de forma descuidada. A peça estava sempre empoeirada. Por mais de 12 meses a contemplamos. Checamos o preço. Fora da nossa realidade. Transbordava o precário orçamento de educador. Não havia espaço que a acomodasse no acanhado lar. Em meio à fumaça, não se avista a lua. Tenho a vista fraca. Um palmo diante do nariz nada enxergo. Tudo é brasa.

O realejo histórico explica que a cristaleira existe desde o século XVII. O mimo nasceu como distinção de classe. Louças, pratarias e talheres eram ali expostos.  Na casa, o móvel ocupava lugar privilegiado. Um empavulamento de poder. Uma carteirada.  Zero ternura, mermão.

“O cara tava me devendo um troco. Não tinha como pagar. O que possuía de valor era a cristaleira. Tomei!”, explicou o vendedor em uma das muitas incursões à mal ajambrada loja.  Segundo ele, para a venda fez uma redução radical do preço original com vistas a despachar o móvel com maior brevidade possível.

Existe amor em Santarém? Em recente visita à loja para verificar preço de uma banqueta, indagamos a outro vendedor o destino tomado pela cristaleira. Estávamos curiosos em saber quem a adquiriu. Com desenvoltura o senhor explicou que o dono original a resgatou. 

Deus duvidará de algo? O prestador de serviço conta com entusiasmo juvenil que o dono havia se enrabichado por uma enteada. Ganhou o mundo movido pelo mais pueril amor. A longevidade do romance durou menos que um algodão doce em quermesse de tarde modorrenta.  Música para televisão.  

Inúmeras vezes contemplado com chifres pela Lolita, drasticamente decidiu em retornar para o município, onde de imediato readquiriu o móvel.   Sabe-se que hoje vive em exílio amoroso em algum ramal na estrada que leva até Alter. E, que arrumou a cristaleira, que por mais de um ano tomou poeira e chuva à sua espera.

Em meio a tempestades de mágoas, encontros e desencontros, uma moça vasta em trajes mínimos, empacota diuturnamente em um mercantil, toneladas de tédios.  Rareia no peito da vida bom coração.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Alenquer, pacata?

Mercado Municipal de Alenquer, 100 anos. 
 

Aparentemente pacata, a cidade de Alenquer, Baixo Amazonas, foi sacudida por uma chacina de três jovens no fim de semana. Em todo canto o assunto era a pauta. No grupo de executados um jovem somava 18 anos e o outro 21. Fala-se que foi acerto de contas. Parada do tráfico.

Os tiros foram desferidos na cabeça, o que caracteriza execução. Os moradores comentam que infelizmente o município faz parte da rota. Além do tráfico, desponta na cidade de Benedicto Monteiro a prática da agiotagem.  Na segunda passada o clima era de receio. 

Tanto uma atividade, quanto outra empenham recurso em candidatos para o Legislativo. Uma prática que parecia uma especificidade dos grandes centros urbanos.

Uma outra questão diz respeito ao uso indiscriminado do agrotóxico. Os ximangos refletiam sobre o incremento de câncer no município. No mercado municipal, que somou 100 anos, os moradores sinalizaram para a atividade da pecuária e de monocultivos. Reclamavam que além da ausência de habilidade no uso dos venenos, a situação piora com a questão do descarte.

O aumento de suicídio de jovens foi um outro tema. Na cidade onde ainda é possível encontrar carro de boi e gente andando a cavalo no perímetro urbano, o aspecto pacato parece eclipsado. Para além das fumaças de queimadas.

 

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Ovo gelado

O dia caiu. A noite não acudiu. Ruídos de animais. Sombras de palmeiras. Assobio de vento invoca curupira, matinta, boitatá. O mundo não tem solução. Temerária equação em carnaval de lama. Cozido, em um canto, logo cedo, o ovo foi resgatado.  Ele escapara de ter virado recheio de pastel em dias pretéritos. O ovo que sonhara em ser astronauta, navegava em  galáxias de solidão em geladeira sem luz. Alvo. Quase transparente, nunca tomou um fio de sol.  Não foi à praia. Nunca flertou em samba ou fez serenata, ofertou flores à musa. Aos pés da Santa Cruz jurou honrar os pais. Mal sabia que iria virar desjejum de faminto de amor. Um ovo só, é apenas um ovo só. Ovo gelado combina com doce, Docinho?  O que passou pela cabeça do ovo ao ser destroçado, untado por sal de segunda, e em seguida sufocado por um bom punhado de farinha? Farinha baguda. Bruta.  O ovo cozido, em breve, será adubo, coco, sem nunca ter tocado uma gaita ou flauta. Usado óculos escuros para as suas lágrimas esconder.

Doutor Honoris: Ufopa concede título ao alenquerense Benedicto Monteiro


O Conselho Superior da UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em reunião no dia 21, ontem, decidiu em conceder o título de doutor honoris a Benedicto Monteiro. Ele foi advogado, político, gestor público, jornalista, professor, abnegado defensor de democracia e dos direitos humanos. 

Vivo fosse, Bené, com era tratado pelos mais próximos, somaria 100 anos. Ao longo do ano, o defensor de posseiro tem sido pauta de homenagens, republicação de parte de sua obra, palestras e webinários em diferentes partes do país. A exemplo da agenda na Feira Panamazônica do Livro, em Belém, no dia 24, a partir das 19h. Wanda Monteiro, poeta e filha de Benedicto será a palestrante.

A iniciativa da chancela partiu do curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional (Santarém e Alenquer), graduação vinculada ao Instituto de Ciências da Sociedade (ICS), que também endossou a comenda em reunião de seu conselho.

A turma do curso de Alenquer, cidade natal do escritor, vem realizando inúmeros eventos em favor da publicização sobre a obra do autor. A Câmara de vereadores fez uma moção de aplausos sob a iniciativa do vereador e aluno do curso de Gestão, Luiz Alberto Freire. 

Obra

A Terceira Margem integra o que ficou consagrado como a tetralogia (Verde Vagomundo, Minossauro e Aquele Um) do autor ximango (alenquerense), Benedicto Wilfred Monteiro, nascido no dia 29 de fevereiro de 1924 nas paragens de Alenquer, no Baixo Amazonas, ou oeste paraense.

Por se tratar de um ano bissexto o registro de nascimento consta como  nascido no dia 01 de março. Decisão tomada pelos pais Ludgero Burlamaqui Monteiro e Heribertina Batista Monteiro.

Bené foi um homem múltiplo. Colheu na oralidade/sabença do universo da várzea de sua terra natal, por entre furos, paranás, igapós e rios, a seiva que servirá de nutriente de sua obra. Como salienta o professor Darci Ribeiro, Monteiro apresenta ao mundo a civilização da várzea, as suas tramas, dramas, contradições e possibilidades.

Abílio Pacheco, professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em Marabá, assina uma tese sobre a obra de Benedicto. O trabalho foi realizado na Universidade de Campinas (Unicamp).  O professor tem feito par com Wanda Monteiro em palestras e seminários.  A tese pode ser acessada AQUI.

Acesse o documento que serviu de base para o título de doutor honoris AQUI

domingo, 4 de agosto de 2024

Frashdance TF: Terra Firme ambienta longa-metragem do jornalista e diretor Ismael Machado.

A atriz e diretora de teatro Vlad Cunha assina roteiro em parceria com Machado. Frashdance  foi o único projeto paraense aprovado no edital de 2022 da Ancine. 


Foto: divukgação

Único projeto paraense aprovado no Edital Ancine 2022 Novos Realizadores, o longa-metragem de ficção Flashdance TF iniciou as filmagens no fim do mês passado, em Belém. O filme é uma realização da produtora paraense Floresta Urbana e tem filmagens previstas por todo o mês de agosto, com locações no bairro da Terra Firme e centro da capital.

Com direção de Ismael Machado e roteiro dele em parceria com Vlad Cunha, o filme tem uma peculiaridade. Praticamente todos os atores e atrizes são oriundos do bairro da Terra Firme. A preparação do elenco ficou a cargo de Cláudio Barros. Um número significativo da equipe técnica também é do mesmo bairro.

A história do filme se passa um ano depois de uma noite de chacina que dizimou 15 pessoas no bairro da Terra Firme. Uma das vítimas foi o pai dos personagens Greyce e JP. O casal de irmãos forma um minigrupo de dança, ‘agenciado’ informalmente por um amigo chamado Pato. O trio se divide entre ensaios e a luta pela sobrevivência no cenário de pobreza que é o cotidiano de cada um.

A dupla irmã costuma se apresentar no bairro fazendo ‘street dance’. Sem jeito para dança, Pato atua como um empresário informal da dupla. É um jovem que vive de pequenos ‘expedientes’, malandro, que se dá bem com todo mundo, mas é enrolado e vive no limite entre a legalidade e a marginalidade.

 No dia do ato em protesto pela impunidade da chacina, o grupo fica sabendo que foi selecionado num concurso de dança contemporânea no imponente Teatro da Paz. No mesmo dia, Pato testemunha uma espécie de ‘sequestro’ de um amigo seu, Colorau. Pato filma a cena com seu celular, e depois que o corpo do amigo é encontrado num matagal, sem pensar nas consequências, compartilha o vídeo da última vez em que Colorau foi visto, colocando a própria vida em risco.

O edital Ancine Novos Realizadores 2022 foi um certame nacional, envolvendo produtoras audiovisuais de todos os quadrantes. Apenas seis projetos da Região Norte foram selecionados. Flashdance TF foi o único paraense incluído na lista.

 


Búfalo antigo, livro de Charles Trocate encarna um contrato em favor da utopia

Lançado pela Mezanino Editorial, Búfalo antigo é a oitava cria da lavra de errâncias do pensador do front amazônico. Em primeira mão o poeta apresenta as suas armas e acende a fogueira de indignações e furor diante  da encruza civilizatória


Charles Trocate é caboclo Amazônida, nascido e criado nas transitoriedades do Pará, e nosso intelectual corre-mundo como escreveu o professor Paulo Nunes em texto de orelha do livro em questão. Em poesia é sua oitava aparição desde que decidiu escrever para driblar a miséria que confrontava sua adolescência. Nas últimas duas décadas transformou-se em militante político e escritor, e escritor e militante político, pelo último livro que agora vem a público é fácil perceber que não se rendeu em nenhuma das frentes, alterando de maneira permanente estes lugares que escolheu para viver e imaginar.. A seguir, um dedo de prosa com o autor. 

Blog furo: Em que consiste Búfalo Antigo – ou Gabriel e outras orquídeas no bolso?

CT: : É um livro que levei alguns dias para escrevê-lo, e foi a demora necessária sem a qual, não teria êxito algum. Pude com esta paciência captar as confrontações da linguagem, e no transmudo assumir estas escolhas rítmicas que me alegra pelo resultado. Diria que ele é o imitável do que se move na floresta sonora – não tem compromisso só com a palavra bem escrita, mas com a extinção que ela provoca quando se externaliza na mercadoria, ‘sobretudo mercadorias privadas’, dos efeitos subjetivos que cria – ou mesmo quando se personifica no sujeito oculto, mas do que socializa a circunstância. Ainda posso afirmar que é o livro de como percebo a lâmina da faca e a carne que ela corta tentando me opor ao esmeril em sono sonâmbulo.

Blog Furo: “Me opor ao esmeril em sono sonambulo” como metáfora, isso se traduz em que?

 CT:  É a minha compreensão de que o mais singelo ato da vida cotidiana está hegemonizado ou mediado pela distopia, se dissecarmos a literatura e sua busca por frivolidades, por exemplo, iremos constatar que estamos presos há algo que não muda, de que tudo está limitado a rotina da frase perfeita. No entanto, se opor a isso é consumir o tempo por outras abstrações, é se livrar da epígrafe canônica – do belo e do herói à bancarrota, e acreditar que se, humanamente chegamos a esta realidade, só nos resta humanamente sairmos dela sem outro alarde na liturgia, ou seja, o sono sonâmbulo como antítese do que fazer experênciando a poesia que protagonize.

 Blog Furo:  Mas precisamente, o que pode fazer a poesia rente a distopia?

CT: Vamos lá, “Búfalo- Antigo” é um poema só, assinado em lugares e datas diferentes e sem cabeçalhos, quer dizer, sem títulos, começa com a seguinte construção – “em todo caso sei espantar a mosca, torcer a roupa que o corpo inventa”... e conclui, “e o charque repõe divisas nas preciosas pedras de amolar canivetes”. Isto para mim é o que pode fazer a poesia sobre este fatídico indivíduo que assimilamos e deve estar no centro das linguagens para libertar os entreatos da cooperação, ou ainda, renomear as coisas em equilíbro com a economia, a natureza e a sociedade, não pode ser texto para prazeres extra questões, só assim se tencionará para não ser escrita acessório à cata ventos.    

Blog Furo: Pensando aqui o livro que nos apresenta como “floresta sonora”, pode precisar este movimento da floresta?

Ao centro, Charles Trocate, ladeado dos editores da Mezanino. Foto: arquivo do poeta

CT: Este é um livro também “animista”, parte desta compreensão de que minha vida se sofistica com a dos outros animais nunca ao contrário, e é arte também a forma de percebê-la, nas outras vidas que tornamos moribunda e a expressão disso é a floresta, úmida, cultural, diversa. De certa forma, o livro se sobressai como protesto por esta “forma de matar, e por este jeito de morrer”, por este equívoco imperativo, de que podemos, mas que as outras vidas, no fundo, estamos eletrificados por esta perspectiva, e subverter isso pressupõem alterarmos o currículo da nossa forma de ser. Quando escrevo “eu beijei um a um membro efetivo da canga mineral, são os animais que bestializamos e tornamos sal e estrume esquecidos dentro do objeto industrial”, não é só a adesão solitária do indivíduo mimico, ou a comoção do eu lírico, é a forma de dizer que esta modernidade que nos dedicamos tanto a ter, a possuir sem pudor, se retroalimenta de algo finito, inclusive, nos arremessa à fábula da inevitabilidade, de que esta transgressão ecológica é o nosso ponto final.

Blog Furo: O livro ainda será lançado, mas já recebi em primeira mão, por isto, te indago, é um livro contra ordem, sobretudo pela poesia de densidade mineral que há nele?

CT: Diria que sim, e que também é um livro dialético, no entanto, sua mecânica não é para apascentar a ordem, torná-la aprazível, é contra sua forma de ser, arbitrária do moinho satânico e o seu tilintar cotidiano, seja pelas extremidades que provocam no sumiço repentino de geologias e os aforismos que há neles, como também pela cegueira política que abona tudo isso. Por exemplo, tem bienais de arte, as mais famosas delas, grandiosas festas literárias financiadas pelo dinheiro da commodity mineral, um sem fim de artistas que não quero aqui julgá-los, mas que, conscientes ou inconscientes, são envolvidos sem se perguntar – o que continua a ocorrer, no país, em Mariana e Brumadinho (MG), Barcarena (PA), quanto custa a natureza exaurida por esta forma de minerar e de lucrar, e financiar a arte? O que sei é que quando a arte e o artista se alienam da natureza, e as corporações da mineração constroem suas próprias subjetividades, estamos não só no limite ético, como estético também! Creio que não há mais espaço para esta acepção de que estamos bem, vivendo bem, neste modelo empresarial “que ergue e destrói coisas belas.”

Blog Furo: Qual tarefa tem o artista e a arte nessa fase de crise ecológica e transição energética?

CT: Há um pensamento em Umberto Eco – que “a arte só faz sentido para aqueles que não estão prisioneiros dos meios de comunicação de massas”. Eis aí uma questão para os movimentos políticos, contestatórios, de como fazer e comunicar a arte por outros meios? E isso quer dizer muito, de como estamos interpretando a crise climática e sobretudo – o que significa no fundamental a transição enérgica para as nossas vidas e qual o sentido ela trará para a arte? Por exemplo, até quando a técnica coordenará a política produzindo esse avesso das necessidades humanas, ainda que seja produto da sua criação? Parece decisivo que ocorra o contrário! No entanto, sei que a arte é a imitação da realidade, se ela estará prisioneira das corporações a nos assombrar pelo volume de capital que se realiza nela – nos grandes eventos de galeria como refinada maquiagem de que tudo está mudando para não mudar, ou seguirá autônoma, porém, limitada pela barbárie que assola o artista.

Blog Furo: Que fé depositar no artista?

CT: O que imagino sobre estas tensões é que o artista não pode fazer tudo, mas não pode se conformar, deve seguir com seu farol e agir sem parcimônia e habilitar-se, deve não só sentir, mas sem pedir licença, apresentar-se para evitar a queda do céu, como nos alertou Davi Kopenawa!

 

Blog Furo: Há uma fascistização da palavra em curso?  

CT:  Este é um dos assuntos que tenho pensado demais, mas se consideramos que há um movimento social de ‘extrema direita’ na sociedade, é quase que natural que isso ocorra, e é deliberadamente sentido na repetição “da metafísica dos costumes”, o retorno ao passado, em tudo, a família era melhor no passado e etc... – minha impressão é que o neoliberalismo, se antes havia triunfado na economia e na desregulamentação no uso da natureza, por fim, transgrediu o indivíduo e a linguagem, e isto operacionaliza léxicos sociais do poder onde o consumo é a linguagem dos sentidos, claro que isto representa uma crise política estética onde tudo vira caricatura em estado degradante, onde o supérfluo se reconfigura pela padronização do gosto, seja nas amplificações de si para si  e do dinheiro que se ganha com isso – como também, se expressa no esvaziamento de que a literatura e a cultura são direitos sociais e devem, ao meu ver, serem reconduzidos ao centro dos nossos dilemas...

 

Blog Furo: Queres comentar, mas alguma questão...

CT: Paro por aqui, com o que diz o poeta Mexicano, Octavio Paz, fiquemos com “as perturbadoras propriedades das palavras”.

 

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Incra do Oeste do Pará negligencia reforma agrária, denunciam entidades

A exclusão de várias entidades do processo de planejamento estratégico da instituição faz parte do rol das reclamações contra a direção do INCRA

 

Na data de 18 de junho de 2024, a Superintendência do Incra Oeste do Pará realizou o que se chamou de “Reunião de Monitoramento do Planejamento Estratégico Participativo do Incra”. Ocorre que,entidades representativas de moradores/as de assentamentos, trabalhadores e trabalhadoras rurais e comunidades não foram devidamente convidadas. Ainda que algumas pessoas e entidades tenham conseguido participar, considera-se como grave a ausência da maioria das lideranças interessadas, ausência esta ocasionada por falta de comunicação da superintendência. Tal atitude, contrária ao diálogo aberto e transparente, atenta contra a participação social como havia prometido o atual Superintendente José Maria Melo.

 Infelizmente não foi a primeira vez. Na data de 14 e 15 de março ocorreu o Planejamento Estratégico Participativo do Incra no auditório da UFOPA. Este planejamento foi avaliado como ruim pelas lideranças locais em razão de que não tinham sido convidadas com a devida antecedência. O que se conclui é que a gestão não tem sido participativa, e se for estratégica, não é para a agricultura familiar.

 

É importante destacar que desde 2022 o Incra vem reduzindo, cancelando e convertendo os assentamentos de Reforma Agrária no Oeste do Pará. Antes do Governo Lula, havia sido cancelado o PAC Bela Terra, cuja área hoje tem sua paisagem tomada por um imenso campo de soja. O PAC Araipacupu, no Médio Tapajós, foi convertido em PA convencional com redução de milhares de hectares. Tal como ocorreu com o PDS Esperança do Trairão (anteriormente chamado do PDS Presidente Lula). Em todos assentamentos falta o maior imbróglio para o Incra: a revisão ocupacional.

Em 2023, a Superintendência se justificou inúmeras vezes de que não poderia atuar, nem fazer revisão ocupacional de assentamento, por falta de orçamento. Neste ano, a situação mudou, mas pelo visto, os recursos disponíveis não estão com sua aplicação sendo planejada junto com as entidades representativas que se vêem deslegitimadas pelo atual superintendente. José Maria Melo, mesmo sendo filiado ao Partido dos Trabalhadores, o PT, parece não ter interesse na Reforma Agrária.

Em 2024, uma prioridade foi desconsiderada pelo Incra: as conclusões dos trabalhos de georreferenciamento no PAE Lago Grande. O maior assentamento da América Latina ainda não tem CCDRU, ou seja, o título coletivo que dá garantia do território a mais de 120 comunidades tradicionais da Amazônia. E sua priorização pelo Incra entra em xeque. Enquanto isso, ameaças às lideranças do PAE Lago Grande não cessam, e a pressão para abrir a terra para mineração de bauxita vem do município vizinho, Juruti, onde está implantada a ALCOA e de onde vem o atual superintendente do Incra Oeste do Pará.

O PAE Lago Grande, assim como os demais assentamentos, coletivos e convencionais, tem sido alvo de abertura da floresta nativa para pastagem, o que ocasiona o assoreamento das nascentes dos rios e igarapés tornando as comunidades rurais ainda mais vulneráveis. A Reforma Agrária no Oeste do Pará é bandeira que não pode ser esquecida pelos companheiros, pois significa território, bem viver, natureza protegida e garantia de soberania e segurança alimentar.

Por esses motivos, nós, entidades abaixo assinadas, repudiamos a falta de diálogo, a baixa transparência e a ausência de participação na gestão do Incra Oeste do Pará.

18 de junho de 2024

 STTR de Santarém

FEAGLE

CNS - Conselho Nacional de populações extrativistas

Grupo Mãe Terra Guardiões do Bem Viver

FASE

Amazônia Terra de Direitos

Coletivo Maparajuba

CPT Itaituba

Movimento Tapajós Vivo

Movimento de Atingidos/as por Barragens

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Rua sem saída

Agosto amazônico. Calor causticante.  Sol inclemente. Uma leseira toma o corpo como se malária fosse. Como se cardume de puraquê acertasse o corpo em cheio num nocaute elétrico. Abrupto esporão de arraia cravado no pé bom de bola.

O suor da testa alcança o olho. Cega. Trópico. Úmido e quente. Quente pra burro. Tal uma buceta em anseio na festa da carne. Bingo de quermesse.  Catedral do amor. Abismo de rosas. O corpo reclama igarapé.  Banho de bubuia. O cio balbucia.

A rua do bairro distante é de terra batida. A rua é assim em todo bairro distante, onde o esgoto viceja como se furo encarnasse. Quando o sol derreia, bacurizinhos tomam as portas das casas de madeira. A sombra rareia. Os adultos disputam um punhado. É assim todas as tardes.  A rua sem saída avizinha um shopping e um condomínio fechado. 

As crianças soltam pipas, brincam de futebol, tocam campainhas de outras casas em estado menos precário, mães e pais fazem barricadas de fofoca. Tiram meleca do nariz. Cospem no chão. Coçam o saco, ajeitam as calcinhas, ao menos as que usam o apetrecho. Tomam um trago de café quente.

Na rua sem saída, as casas são de madeira e cobertas por telha Brasilit. Inferno de Dante.  É a casa que a fome possibilitou erguer. Casas de gente pobre. Humilde. Barracão de zinco, que a lua quando alumeia toma as frestas do teto; e quando em chuva, irriga a miséria.  Casa de gente de outros mundos. Casa de penca de filhos.

Os gitinhos se misturam com a terra. Capitães de areia e de terra. Um exército.  Celebram a vida em meio a cães, aves, urubus e a fome.  Mais urubus que cães.  A fome é robusta por estas bandas. A fome mata. A fome não dá trégua, enquanto uma mulher vasta em toalha mínima estende roupas no varal que fica à rua. Cães e aves convivem em harmonia.

As crianças das bandas de cá seriam anfíbios como os filhos do Arapiuns? Os bacurizinhos da rua sem saída estão longe do rio.  O rio não dista tanto assim da rua sem saída. Na rua sem saída, sem asfalto, o esgoto corre a céu aberto. Uma escola municipal homenageia uma família de Confederados.

Uma frutaria poderia ser montada em uma das casas. O quintal vasto abriga açaí, carambola, jambo, manga, jaca, coco, goiaba e outras árvores que não sei identificar. Em um canto da rua sem cercas, abundam pés de mamão, goiaba e banana. Qualquer um é livre para apanhar. Um monte de cheiros.

A dona do quintal de muitas frutas é uma mulher baixinha. Coleciona enlaces amorosos. Pelo menos uns três. É temente a Deus. Vez em quando entoa louvores. Os netos a seguem. Todos desafinados. Os galos fazem a segunda voz.