Tinha,
à época da
sua publicação, em 2002, 25 anos. Hoje situo-me às vésperas dos 45 e ele se
confronta com duas décadas de aparição com vigor estelar e chance comovente desde 1993,
quando aos 16 anos a adolescência que vivia enganava a drible a escassez e
encontrava na literatura alguma duração!
Certo é
que não cheguei a esta inclinação por mero acaso:
alfabetizado pela minha irmã Elizabete, cuja grandeza da forma se iguala a de
muitos pensadores da educação, e tendo obtido a atinência das coisas afáveis
pela curiosidade – gostei da musicalidade da literatura de cordel chegada ao
sudeste paraense pelos nômades sertanejos, ora camponeses, ora gente
garimpeira que se metiam a região com
seus corpos e lucidez atravessados de enganos e devorados pela maledicência do poder. Recordo
do ato contínuo de ler, ou melhor, de ler cantando (à luz de lamparina na pequena sala
do casebre), exigência que cumprimos sem enfado algum aos muitos que se
juntavam a esta liturgia apropriada de arrepio. Depois veio a amizade do menino
com o adulto, eu com minha caixa de engraxate de sapatos e ele filósofo de raciocínios
fascinantes e muitos palavrões! Fora os palavrões essa influência implacável me levou a
arte das ideias e nada perjuro se ando duplicado por elas!
Há uma
sequência de experimentos que me fazem ser alcançado pela escola literária em
que o MST se transformou na minha vida há 30 anos, quando tinha 15 e nossa
família entrou nas fileiras da luta pela terra — era 1992. Fui requeiro de
garimpo, vendedor de verduras e picolé, tirador de areia, engraxate, marceneiro,
cobrador de ônibus e vendedor de revistas e discos usados, antes e depois da
pequena "Vila do Rio Verde" se transformar na cidade de Parauapebas,
pelo plebiscito que separaria várias
cidadelas existentes do município de
Marabá em maio de 1988.
Fui à escola pela única vez
em 1986. A Escola Carlos Drummond de
Andrade e dele nada soube até sermos irmãos em letras e desperdício de imaginação pelas transgressões de um país
caduco. Como em Itabira, cidade natal de Drummond, Parauapebas serpenteia a
muitos vagões e logo se transformará em mera "fotografia de parede"
pela rolagem incontrolável, se não contida, do capital!
Daqueles
dias a lembrança que emociona é a do primeiro tênis que calcei na vida, comprado para ir à escola no
dia seguinte. O tênis verde se uniria a inúmeras euforias, a de calçá-lo e a de ir à escola da rotina logo interrompida. Aquele
"repente agalopado" não cabia nos meus espantos de miserável!
Outras duas mulheres marcariam novamente minha vida naquela pequena incursão
escolar: a professora Ana Guida e a diretora Eunice Moreira. Olhando pelo que
desatina é como se tivesse ouvido delas pela inquietação o verso de Drummond: vai, Charles, “ser guache na vida.”
E fui desatando nó e calçando outros sapatos!
1992 e
1993 foram anos em que vivi literalmente com um short e uma camisa. Levava
ainda a fronha de travesseiro cinza, florada, bolsa que recebi da minha mãe
quando fui ao curso de formação de militantes. A mim, tudo se transformou, tenho até hoje na memória os livros que li e
que fizeram minha cabeça, aquela biblioteca enorme e aquele método pedagógico para ensinar teoria
politica a pessoas que malmente sabiam ler e escrever, o esforço para criar o
hábito da leitura, o gosto pela descoberta. 1993 é o ano que não acaba em minha vida. É nele que
tomo as decisões que, com zelo e coerência, são regências até os dias de hoje: a de ser poeta, sim, foi decisão depois de ler muitos
outros (entre os de primeira ordem, o Russo Vladimir Maiakovski, Pablo Neruda,
Chileno e o Uruguaio Mario Benedetti) e a de tomar a militância política “como profissão de fé” para ser gente como desejava a Lurdes, minha mãe
que adorava a inteligência dos “meninos do MST” e
decidira tornar-me um deles!
O que
escrevi naqueles idos, refletindo leituras e aconselhamentos nas bifurcações
entre a arte e a política — para mim já eram
compressivas
as anotações de
Sartre no seu livro "O que é literatura”, do seu
esforço de contrabalancear a ordem regida da literatura canônica. O engajamento
(ou a condição do escritor numa sociedade de classes), que descobri, pressupõe
não só escrever, mais o que escrever, sem demagogia, ao passo que também significa lutar dentro
das atribuições da escrita e da literatura. Como diria Bakhtin: a palavra
que circunda os falantes, valor de troca, produto social!
De lá para cá escrevi muitas
outras vezes e me intrometi sem apego rotulante a enxergar pela poesia o palmo
diante do nariz. E guiando-me por entre frestas e resinas, associar a estética da fronteira que o
poeta Ademir Braz cativou em sua obra maiúscula. A fronteira não como linha
retilínea ou endereço citadino mais como farol do que fazer em fogo cruzado.
Pela mesma densidade da formulação, sem a ultrajante forma dominante, obter a
lírica do mapa em ferrugem e cheio de estrondos fatídicos.
Nunca
fui desleal com as influências que recebi nessa trajetória e as mantenho de pé. Os meus camaradas do
tempo presente continuam e são os que escolhi quando ouço vozes da labuta — hoje
ou amanhã — para seguir dispensando o furgão oficial que ao medíocre convoca
sua prece. Quem se alheia ao seu tempo não se importa com tempo algum e este
tem sido o terreno em que perturbo a palavra, em seu aspecto mais íntimo!
Andam
comigo, valsando este mundo em bem querer de uma legião
de gentes, vítimas da exceção e da beligerância,
suprimidos da língua e da linguagem, absolutizados pela pobreza, onde a
fronteira liberalizante e tecnificada produz a rotina das línguas mortas. A
mim, são os elos da primazia — a poesia é antes de tudo tenaz possibilidade —, recordo a esta altura o que decidi
escrever. Sim, a decisão que nos últimos vinte anos, e antes deles, atormenta o ser e o trabalho na
literatura. E dirigi-la aos viventes na ausência recorrente da inteligência
coletiva se avulta nos que ainda podem enxergar os morcegos no barro do tempo e
sentir o frio auspicioso da viagem, ressentidos apenas da intolerância!
Para
isto me servi da filosofia e suas atribuições, porque é demasiado redundante o fardo de
apascentar o verbo e resolver o mundo do outro sem o outro por qualquer
adulação da política ou caricatura da estética. Não sei se estou longe ou se estou perto da deflagração do que significa
ser escritor, no entanto, do que fiz até aqui impõem-se certas lições e cuidados
analíticos. E no mesmo compasso permito-me a alegria de que este feito mereça
festas no coração (com todas as reticências possíveis), porque escrever virou
tensão a me absorver por inteiro tanto na
candura do intempestivo como no estilo da vida que não cabe comodismo e
fé cega nas
atribuições do indivíduo sistêmico, o que em definitivo ignoro.
Nem
sei o que seria sem esse encontro, no tempo certo, com escritura da palavra tal
como compreendo seu fato e a língua em seus fenômenos plurilinguísticos, desde
a semântica institucional, o prestígio
ou a demasia popular, por assim dizer. Em ambos os casos somos criadores de léxicos que se limitam ou
se expandem entre o lá e cá da realidade. Ou noutra, sujeita a interlocução nas formas de comunicação
as vezes francas, autônomas e/ou relativizando costumes, que encarnam impasses das demandas mais amplas da
sociedade.
Em
nosso caso particular, tanto na fala
para dentro como na fala para fora, encontra-se restrita e verbalmente chula
impeditiva de novas imaginações, por nomear objetos supérfluos se põe supérflua
também,
duplamente sentida na facistização da linguagem e na barbárie estrutural.
A
crise de destino e o aleatório pudor do riso, também aprisiona a linguagem (de
saber o que ela é nas conjugações sociais) e o que comunica soberanamente por qualquer sujeito
de ação. Incontornável até certo ponto porque é aspecto da desigualdade
social, incompleta porque como o direito à palavra é parte fundante da
cidadania, se põe na dianteira, a ser mecanismo de poucos contra a maioria, subproduto
das escolhas culturais.
Por
isso, nada de ambivalência ou dúvida experimental — é o crânio dos mortos
calcinando o cérebro dos vivos — diria Marx. Esta metáfora de força das
circunstâncias me contagia porque é
o viés de estar nesta
travessia, mantido o compromisso de convence-los um a um a inventariar o tempo como rapsódia sobre os dias
passados e no rumo dos dias infindos. Continuar a escrever outras promessas da
temperança. Irromper do estribilho o ruído entre “a maldição da
abundância e o moinho satânico” do fortuito plano. E na redenção, salgar a palavra para a estiagem — o prefácio da ação!
Cumpre-se
outros dizeres. Nos 20 anos de "Poemas de Barricada” (que retorna numa segunda
edição), também se transformará em livro a dissertação de mestrado do professor
Aurismar Lopes Queiroz: "A Amazônia e a poética da beira da estrada na poesia de Charles
Trocate: um projeto de intervenção
didática”.
Por
fim, estendo aqui o maior prazer que tive de receber esse comentário de um dos
maiores intelectuais da Amazônia, o professor Paulo Nunes, sobre o texto da Geógrafa e fotógrafa Flora Pidner no projeto "Búfalo Antigo - a poesia de Charles
Trocate em abril de 2021”:
"Charles,
camarada, Poesia-fronteira: já é um clássico e deve estar em qualquer boa Antologia de
contemporâneos amazônidas. Ela sintetiza a beleza de tua escrita telúrica,
"tão nós
e tão mundo", ao mesmo tempo. A colega de Alagoas (fugiu-se seu nome, e
porque a escrita se impôs a autoria), olha como ela escreve bem, límpida, poética, foi feliz
em enfatizar a ideia de uma geografização da tua poética, Charles. Há muito que este país que namora
com o fascismo, de estrutura fundiária violenta e injusta, tem a aprender com
os poetas. E estás, camarada, na linha de frente de uma poesia que politiza,
porque justamente nos humaniza. Literatura em perigo, como apontariam alguns teóricos?, não. O poeta pode
estar em perigo, mas sua palavra é
sabre e sai incólume de todo massacre.
Nosso desafio maior é, agora, fazer a literatura chegar nas mãos certas: os leitores. Que
privilégio
ser teu contemporâneo, mano velho”.
Charles Trocate
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