quarta-feira, 5 de junho de 2024

Rua sem saída

Agosto amazônico. Calor causticante.  Sol inclemente. Uma leseira toma o corpo como se malária fosse. Como se cardume de puraquê acertasse o corpo em cheio num nocaute elétrico. Abrupto esporão de arraia cravado no pé bom de bola.

O suor da testa alcança o olho. Cega. Trópico. Úmido e quente. Quente pra burro. Tal uma buceta em anseio na festa da carne. Bingo de quermesse.  Catedral do amor. Abismo de rosas. O corpo reclama igarapé.  Banho de bubuia. O cio balbucia.

A rua do bairro distante é de terra batida. A rua é assim em todo bairro distante, onde o esgoto viceja como se furo encarnasse. Quando o sol derreia, bacurizinhos tomam as portas das casas de madeira. A sombra rareia. Os adultos disputam um punhado. É assim todas as tardes.  A rua sem saída avizinha um shopping e um condomínio fechado. 

As crianças soltam pipas, brincam de futebol, tocam campainhas de outras casas em estado menos precário, mães e pais fazem barricadas de fofoca. Tiram meleca do nariz. Cospem no chão. Coçam o saco, ajeitam as calcinhas, ao menos as que usam o apetrecho. Tomam um trago de café quente.

Na rua sem saída, as casas são de madeira e cobertas por telha Brasilit. Inferno de Dante.  É a casa que a fome possibilitou erguer. Casas de gente pobre. Humilde. Barracão de zinco, que a lua quando alumeia toma as frestas do teto; e quando em chuva, irriga a miséria.  Casa de gente de outros mundos. Casa de penca de filhos.

Os gitinhos se misturam com a terra. Capitães de areia e de terra. Um exército.  Celebram a vida em meio a cães, aves, urubus e a fome.  Mais urubus que cães.  A fome é robusta por estas bandas. A fome mata. A fome não dá trégua, enquanto uma mulher vasta em toalha mínima estende roupas no varal que fica à rua. Cães e aves convivem em harmonia.

As crianças das bandas de cá seriam anfíbios como os filhos do Arapiuns? Os bacurizinhos da rua sem saída estão longe do rio.  O rio não dista tanto assim da rua sem saída. Na rua sem saída, sem asfalto, o esgoto corre a céu aberto. Uma escola municipal homenageia uma família de Confederados.

Uma frutaria poderia ser montada em uma das casas. O quintal vasto abriga açaí, carambola, jambo, manga, jaca, coco, goiaba e outras árvores que não sei identificar. Em um canto da rua sem cercas, abundam pés de mamão, goiaba e banana. Qualquer um é livre para apanhar. Um monte de cheiros.

A dona do quintal de muitas frutas é uma mulher baixinha. Coleciona enlaces amorosos. Pelo menos uns três. É temente a Deus. Vez em quando entoa louvores. Os netos a seguem. Todos desafinados. Os galos fazem a segunda voz.