sexta-feira, 20 de agosto de 2021

O trecho, algumas transpirações

No trecho, possibilidades. Encruza, cruzada. Equilibrista de circo sem rede de proteção

Fonte: livro CAT Ano décimo - etnografia de uma utopia. Jean Hébette e Raul Navegantes. UFPA, 2000

É o trecho a plenitude da instabilidade? Trecho: mobilidade e cativeiro. Escravidão por dívida. Na canção Peão de Trecho, Zé Geraldo defende que o trecho seja: “ Uma parte do mundo é nossa morada/A outra parte é nosso quintal”. O sol não brota em todo quintal. Ao contrário, proliferam cercas. Farpado arame. Um menino da porteira por bala crucificado. Negócios. Nelore batizado por pastor neopentescostal.

O trecho é febre. Garimpos, barragens, matas de juquira, cercas, gado, castigo, estradas. Sol sem fim. Paixões, desilusões, canções de amor. Malárias cravadas nas paredes das memórias de puteiros. Abajur lilás. Baton vermelho. Vermelho sangue. Rupinol, Tetrex, Quinina, Engov. Desventuras, amizade, trairagem, capataz. Aposta. Mesa de bilhar. Peixe grande, peixe pequeno. Trago de pinga com tira gosto de poeira. Cigarro de terceira. Traje encharcado de suor. Aridez sem pouso.

No trecho, possibilidades. Encruza, cruzada. Equilibrista de circo sem rede de proteção. O trecho é o quintal de desencontros. Encontros de estranhos sob o guarda-chuva de infinidades de tempos. O tempo do capital, o tempo do peão, o tempo da puta, o tempo do funcionário público, o tempo do homem da roça, o tempo do sem terra e teto, o tempo do ancestral, o tempo do malandro, o tempo do pistoleiro, o tempo do “puliça”.  Tic-tac sobre todas as cabeças. O muque é a justiça no trecho. Rasteira, 38, peixeira. Bucho a sangrar.

O trecho, iniquidade.Filho bastardo de violências múltiplas: Estado, capital, oligarquias, empresas transnacionais, migrações....um fio de novelo sem fim. Labirinto, minotauro. Salve-se quem puder. Em algumas ocasiões, até solidariedade, como conta uma filha de garimpeiros: “quando o peão tá nos braços da morte, é comum a cotização para socorrer o moribundo. Rola até mandar de avião”.

O trecho tem a musculatura das gentes que saíram ou foram saídas de suas terras natais. As secas forçaram as andanças dos parentes do Nordeste. No Maranhão, o maior exportador de tensões sociais do país, conforme Alfredo Wagner, soma-se ao quadro o avanço da fronteira do grande capital. Contudo, os manos do Sul, - os campesinos -, igualmente foram desterrados sob a mesma violência. Revolução verde. Verde sangue. Transgênico universo. Acumulação primitiva.

O que é o peão do trecho?  À primeira vista, as gentes do trecho é composta em sua maioria por homens. Migram em busca do delírio dourado em bamburrar em algum garimpo. O fracasso o empurra para os braços da juquira em qualquer fazenda para defender um troco. Juquira e grileiro não são lá de muitos afetos. Não à toa o Pará é mister em trabalho escravo. O trecho não manda recado. É tiro, porrada, morte e impunidade.

A labuta na terra socorre muitos dos peões do trecho. Filhos e filhas. Trecho, faculdade sem parede. Alegria, desencantamento. Inúmeros dirigentes das organizações da luta pela terra possuem ou possuíram em seus quadros migrantes. Nas fileiras, muitos tombaram. No caso do Massacre de Eldorado, dos 19 executados pela PM do Pará em 1996, 11 eram oriundos do Maranhão. 

José Dutra da Costa, dirigente da Fetagri executado em Rondon do Pará, idos de 2000, era filho da terra de Gullar. Estima-se que pelo menos 40% da população do sul e sudeste do estado do Pará seja composta por estes errantes das lonjuras de seus locais de origem.

A dor de cotovelo é a trilha sonora no trecho. Filme triste que faz chorar. Nesta seara, poetas e cancioneiros, muitas das vezes, são filhos do trecho. O garimpo, o amor distante ou o impossível amor, por conta da ausência de condições da reprodução econômica e social, a “traição” são elementos motivadores/transpiradores das canções. Sofrência em elevado grau de concentração. Atômica bomba. No trecho, quem espera nunca alcança. Não se ouve conselho.

Rememorar é preciso. Viver não é preciso. Numa das afamadas  canções, que invoca a lua para saber onde o grande amor se esconde, o autor (que escapa à memória) dispara à queima roupa: “eu vou pedir a lua/para iluminar a rua/saber onde você se esconde/eu vou te procurar. Oh lua, oh lua cor de prata/me diga por favor/aonde anda aquela ingrata. ” Borba de Paula entoa a canção. 

Nas andanças pelo trecho, por entre risos,rios, afagos, tragos, amassos e errâncias, uma arrebatou o meu pobre coração, Cofrinhode Amor. Uma canção exaltação que relaciona a pessoa amada ao sonho da riqueza no garimpo, o versejador assim alumeia a sua musa, “Você é meu céu/É minha vida/O meu peso/A minha medida/ Meu cofrinho de amor. ” 

Noutra frase invoca a presença da pessoa querida, “Volta meu bem/Meu amor/Minha vida/Estou lhe esperando/Volta depressa que o meu coração está quase parando”. A canção é interpretada por Elino Julião. Um dos hits dos anos de 1970/1980, quando a “conquista” da fronteira amazônica se consolida em definitivo

Nestes tempos Bartô Galeno reinava nas emissoras de rádio AM, era o cara em nove de cada dez casas de tolerância. O hit “No toca fita do meu carro” tomava todos os cantos. Tal piolho em cabeça de menino. Logo na primeira estrofe, ele manda o recado sobre a ausência do grande amor, onde, consta, “No toca fita do meu carro/Uma canção me faz lembrar você/Acendo mais um cigarro/E procuro lhe esquecer/Do meu lado está vazio/Você, tanta falta me faz. ”....

A ausência ou as lonjuras da pessoa amada são combustíveis para a criação das canções. Os bares desprovidos de grandes atrativos, os puteiros em geral, a exemplo da Rua do Escorre Água em Tucuruí, o bem afamado puteiro denominado de Canela Fina, em Marabá, os inúmeros em Santarém, estrategicamente localizados à beira do belo Tapajós,  glorificados durante o boom da extração do ouro na década de 1980 são alguns elementos da aquarela do trecho. 

O trecho é um fio sem fim....muitas das inquietações aqui buriladas tiveram como palco bares de Marabá e da vida,  exemplo do Bar da dona Dida, na Feira da 28, Carecão, na Cidade Nova, no Bar da Ana, no Cabelo Seco....ao lado de manas, manos e monas de primeira linha...muitos e muitas, filhos e filhas do trecho, das errâncias...

O trecho, beijo na boca...unzin...aperreio de solitários,  andanças pelo Bico do Papagaio, onde o filho chora e a mãe nem faz ideia das dores, não sabe, desconhece....

“Minha vida é andar por este país/Pra ver se um dia descanso feliz.....” No trecho, fumaça...amores, dissabores, sabenças...gente que vem, gente que vai...Trecho, roçado de ventos, jardim de tempestades...

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Manoel Conceição, presente!!!

O dirigente devotou toda a sua existência pela classe trabalhadora. Ser plural, ajudou a forjar o PT, a CUT, centros de educação camponesa, a luta sindical, a defesa pelo Cerrado. Tinha lema, "Minha perna é minha classe". 

                                 Foto: Marcelo Cruz

Manoel Conceição passarinhou nesta manhã, na cidade de Imperatriz, oeste do Maranhão, região do Cerrado, encruza onde os rios afloram. Tocantins, Araguaia. Nascido numa vila da cidade de Coroatá, filho e neto de família camponesa, Mané, como é tratado pelas pessoas mais próximas, possui reconhecimento mundial como um dos ativistas mais expressivos na defesa da reforma agrária no Brasil. 

Mané foi, é plural. Ativista partidário, sindicalista, educador, ambientalista, um craque em organizar barricas de resistências, um jardineiro de utopias. Um ser coletivo. O seu nome consta na memória das lutas populares em vários estados do país, entre eles Maranhão, Pernambuco e Minas Gerais.

Foi linha de frente em pelejas áridas no Vale do Pindaré e Buriticupu, no Maranhão, como celebra o igualmente dirigente camponês Luiz Vila Nova, em recente livro de memórias realizado com a jornalista Cláudia Santiago, do Núcleo Piratininga de Comunicação.

Manoel Conceição é uma pessoa rara. O negro com um pouco mais de metro e meio  teve a perna amputada por conta da opção pelos trabalhadores durante o regime militar. Viveu no exílio. Distante de sua terra natal, em suas andanças ganhou de Mao uma prótese.

Mané é um petista histórico. Foi o terceiro nome no livro de fundação do partido no Colégio Sion, no ano de 1980. Movido pela trajetória construída, realizou greve de fome por conta da aliança que o partido firmou com a família Sarney no Maranhão.

 O dirigente ajudou a organizar o partido em vários estados. Em Pernambuco, chegou a ser candidato ao governo. Em 2010 a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) relançou o livro relato, Essa terra é nossa, lançado em sua primeira edição durante o processo de redemocratização do país.

 

Em 2010, por conta de sua trajetória  em defesa da reforma agrária e do meio ambiente, a  Universidade Federal do Maranhão [UFMA] concedeu ao trabalhador rural o título de Doutor Honoris.

No mesmo ano a professora e jornalista Helciane de Fátima Abreu Araújo, lançou o livro “Memória, Mediação e Campesinato: as representações de uma liderança sobre as lutas camponesas da Pré-Amazônia maranhense”. Leia mais AQUI

Nos anos recentes a cineasta Marta Nhering tem empenhado esforços em viabilizar um documentário sobre o dirigente.

Quando Mané somou 40 anos de militância, a edição da revista Democracia Viva, editada pelo IBASE/RJ, de número 19, do ano de 2003, publicou longa reportagem sobre o ativista.  Veja AQUI

Em outra edição da mesma revista, consta uma entrevista. Leia AQUI

Já a revista Ecologia e Desenvolvimento, da extinta editora Cadernos do Terceiro Mundo, abordou a sua atividade em defesa do Cerrado do Maranhão, em edição de nº 107, quando a publicação somava 12 anos de atividade. Leia AQUI

MST e amigos, recentemente realizaram uma live em homenagem a Mané, que pode ser visualizada AQUI.

Manoel Conceição, presente!!!

  


Massacre de Corumbiara: 26 anos de impunidade

 

Fonte: site Nova Democracia

Há 26 anos Corumbiara, em Rondônia, perderia o anonimato por conta de um massacre de sem terra ligados à Liga dos Camponeses Pobres (LCP). A chacina precedeu o Massacre de Eldorado, ocorrido no sudeste do estado do Pará, em 1996.

Ambas as chacinas foram registradas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que buscava impor aos camponeses um modelo de reforma agrária sob a régua e o compasso do “deus” mercado, onde a criação do Banco da Terra representava um dos instrumentos sob os anseios das normas neoliberais, que entre outras ações viabilizou a entrega da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), assim como o governo atual ambiciona entregar boa parte do patrimônio nacional, a exemplo dos Correios. 

As chacinas registradas na Amazônia redefiniram a política de assentamentos da reforma agrária. Por conta dos crimes contra os camponeses e a grande pressão nacional e internacional, o Estado passa a reconhecer em massa inúmeras áreas ocupadas – alguma há mais de duas décadas -  como projetos de assentamento. 

A medida do Estado consagrou a Amazônia como a região de maior concentração de projetos de assentamento da reforma agrária no país, sendo o sudeste do Pará a região de destaque. Fato em certa medida explicado pelo vasto histórico de violentas disputas pela terra, que a consagraram como a mais violenta do Brasil.

Saiba mais sobre o Massacre de Corumbiara no site a Nova Democracia.