domingo, 13 de abril de 2025

Pássaro, um mundiador manauara

 Orla de Alenquer

Pássaro é manauara. É afro-indígena. Altura mediana, deve carregar uns 40 verões nos costados. Defende-se como ambulante. É do trecho. Já correu meio mundo entre o Pará e o Amazonas.

Qual um ás de time de várzea, enfileira cidades em que andou. Manaus, Belém, Itacoatiara, Presidente Figueiredo e outras com nomes que não consegui memorizar. Cidades à beira de rodovias. Cidades à beira de rios. Cidades....

Fez o ensino fundamental e ginásio em puteiros na Zona Franca de Manaus, conta ele, com certo orgulho. “A rua foi minha escola”, comenta à mesa de um posto de gasolina à beira do rio Surubiú em Alenquer, na Av. Benedicto Monteiro. Um escriba de estatura mundial nascido na cidade.

Aonde o capital senta praça sobre a fronteira amazônica germinam puteiros. Um espaço-tempo de trocas materiais, simbólicas, fluídos, ilusões, desilusões, xodós, rasteiras, peixeiras, choros e lonjuras.  Um tempo sem agonia sob sol ou chuva. Um redemoinho de malandros, “puliça”, putas, funcionários públicos, liberais e desgarrados do mundo.

Atividade ganha em proporção em qualquer cidade portuária ou que abriga algum grande projeto. O espaço fulorou em Belém e em Manaus no boom da economia gomífera.  Para além dos palácios, teatros e catedrais a arvorar-se a ares de França celebrados por uma “classe média” com certo estudo, que insiste em eclipsar os rendez vous que germinavam ao centro da cidade ou nas periferias.

Lá Hoje, Rosa de Maio, Sangri-la, Verônica, Saramandaia, Ângelus, Bataclan são algumas das casas por onde desfilavam polacas, russas e francesas, recupera a dissertação de Raimundo Alves Pereira Filho, apresentada na Ufam (Universidade Federal do Amazonas), apresentada em 2014.

Nem só de gringas respiravam as casas, moças do interior e migrantes davam musculatura aos espaços. Algumas agraciadas com casamento, tamanho o encantamento promovido. “Vou tirar você desse lugar/Vou levar você para morar comigo/Não me interessa o que os outros vão pensar”, poetizou Odair José.

Pássaro fez o corre na Zona Franca, em outro contexto histórico, onde o comum eram clubes de strip-tease. O negócio residia em levar mimos que seriam adquiridos pelos frequentadores das casas e ofertados às meninas.

Na negociata, cabia às moças reclamarem aos seus clientes algum bicho de pelúcia ou algo equivalente. Em seguida elas devolviam o brinquedo ao Pássaro, que retribuía a elas, 50% do valor do produto. Como se diz por estas paragens: “é um olho no gato, um no peixe e outro na garça”.  

Em Belém, em certa época, na ilharga do Ver o Peso, recordo de um denominado de DVD e do Chuá. Salve engano o Chuá fazia vizinhança com os fundos de Fórum de Justiça. Na geografia veropesiana existiam outros que não recordo, bem como em outras latitudes da cidade. Havia uma territorialidade, que hoje passa por ressignificação por conta das tecnologias. Novas faces do mundo do trabalho.  

Assim como em São Luís, outra cidade igualmente portuária, onde um dos mais notórios do Centro da cidade ladeava o Mercado Central, o Xirizal, que na verdade era um complexo de mais ou menos seis casas/bares. O espaço reclamava atenção ao habitue, posto ser recorrente o expediente do “boa noite cinderela”. Assim como os localizados nas proximidades da rodoviária de Belém. Mundiar é preciso! Viver é arriscoso!

O Pássaro é bicho que avoa. O “empreendedor” das errâncias negocia cordões, relógios e capas de celular.  A empresa é acomodada em pequeno equipamento que lembra um carro de pipoca ou picolé (pop corn, ice cream). Tá sempre risonho. Quando o encontrei já havia vencido algumas latinhas de cerveja. À beira do rio soa ser o melhor espaço de negócios.

À beira do rio Pássaro fica à espreita dos passageiros das embarcações, outros negociantes de bairros mais distantes e de comunidades rurais. A beira do rio abriga vários hotéis.  Uma senhora faz par com ele. Não é conge, nem rolo ou equivalente.

Tal o Pássaro, é uma peã do trecho. Pareia a mesma idade do manauara. Fuma sem parar. Parece tensa. Na engrenagem dos ambulantes existe um aviador/agiota. A turma confessa que foi atendida por um da cidade.

Assim que aportou em Alenquer Pássaro pegou mil conto para montar a “firma”. Todos os dias paga uma taxa de juros. Tanto ele, quanto a moça abrigam-se um quartinho de pensão. Cada um no seu.

A mãe do ambulante tá enferma em Manaus. Ele repassa um troco para mim, e pede que eu faça uma gentileza em encaminhar para a mãe dele via pix. A amiga reclama a mesma operação, neste caso, a grana é para ela mesma. A moça não sabe onde colocou a chave do quarto. Tá agoniada. Apanha um mototáxi e vai à caça dela, antes fuma mais um cigarro.

 

2 comentários:

Alexandre Salles disse...

Maravilha de ler e projetar um sonido de fala. Os fatos se sucedem atropelados pela vida largada da vida do povo.

rogerio almeida disse...

Salve Alexandre, grato pela deferência....o espaço tem um livro de crônicas de acesso livre sobres estas errâncias....