domingo, 28 de abril de 2013

Territorialização do campesinato no sudeste do PA - Dra. Rosa Acevedo analisa a obra

 
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
 
 
Os discursos sobre a Reforma Agrária no Brasil dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) insistem sobre os resultados da política de assentamentos. Na visão burocrática o assentamento, categoria de intervenção, representa a extensão de vários imóveis rurais ou um número estimado de estabelecimentos para os assentados “clientes da política”. Os dados de criação de Projetos de Assentamentos (PA’s) muitas vezes apontados como manipulados nos relatórios, entram na corrida para revelar a eficiência das ações de reforma agrária localizada.
Outro foco discursivo convergente é elaborado por segmentos empresariais e do próprio Estado que exalta os êxitos do agronegócio e da agricultura familiar enquanto segmento subordinado ao modelo de mercado e de desenvolvimento capitalista no campo. Ao mesmo tempo, seus pronunciamentos apontam os acampamentos, as organizações que os apóiam, como ações descabidas, protagonizadas por sujeitos de fora da ordem das instituições.  O que está em jogo são os projetos, as ações e as estratégias dos agentes sociais que entram na disputa pela terra e recursos naturais evidenciando os paradoxos da política de desenvolvimento do Brasil, das estruturas de apropriação e de dominação centradas na terra e nos recursos.
No Brasil, o Estado e os grupos políticos de forma articulada opõem-se aos projetos de reforma agrária – proposta em termos radicais nos anos 50/60 e de forma maciça na década de 80. Em vez de atender a essa demanda social, o Estado propõe políticas de colonização, de assentamentos, que não passam de reformas agrárias localizadas, de reduzida capacidade para solucionar os problemas fundiários e agrários.  
Na história mais recente do campo brasileiro as políticas governamentais e as instituições executoras apresentam como resultados de suas ações o monopólio da terra, a concentração fundiária e o acirramento dos conflitos sociais no campo. Na região amazônica, estes são componentes da modernização da agricultura autoritária. No Sudeste do Pará desenvolvem-se processos econômicos e políticos que caracterizam o fechamento artificial da “fronteira” por conglomerados econômicos, pela concentração de pequenos produtores rurais de base familiar e pelo desenvolvimento espontâneo de um novo campesinato.
Sob a tensão permanente de atos de violência, os conflitos sociais no sudeste do Pará desenvolveram-se até se tornar obstáculos à implantação de projetos agropecuários, madeireiros e de mineração. Índios e posseiros lutavam pelas terras. Na década de oitenta órgãos oficiais  utilizaram a expressão “invasão de terras públicas e particulares” na Amazônia com o propósito de impedir que o produtor realizasse ocupações em terras devolutas, que aparentemente não eram o domínio das grandes empresas. Assim, ele encontrava uma alternativa que não o trabalho assalariado na cidade ou no campo, resultado inevitável do capitalismo. O camponês não é passivo na sociedade e tratava de sobreviver onde o capitalismo não havia chegado. Portanto, o avanço de trabalhadores sobre as terras devolutas ou a denominada colonização espontânea é um termo insuficiente para explicar o fenômeno. Comumente, o modelo espontâneo é oposto à colonização dirigida, que imporia uma racionalidade à ocupação, via construção de rodovias de integração e montagem de projetos de colonização. Mas esse modelo dirigido resulta de motivos geopolíticos e ideológicos, como a segurança nacional, via preservação das fronteiras.
Em 1980, os ocupantes no Maranhão, Goiás e Pará chegavam a 898.164, segundo o IBGE. Entendia o corpo militar que esses conflitos deviam ser reprimidos energicamente, posicionamento caracterizado como militarização do controle sobre os conflitos, realizada entre 1980 e 1985, como analisa Alfredo W. Berno de Almeida. O ritmo de desapropriações mostrava grave lentidão e os assentamentos até 1987 tiveram capacidade para assentar menos de 10% das famílias. A pressão das mobilizações camponesas na área de atuação do GETAT conseguiu desapropriar 15 latifúndios (área de 77.673 ha), beneficiando 1.208 famílias camponesas[1].
Na década de setenta, o Projeto Grande Carajás iniciava com as prerrogativas do governo que lhe permitiram o controle de grandes áreas para usufruto direito, como reservas ambientais e ainda ingerência em Áreas de Proteção Ambiental e Florestas Nacionais, controle de trabalhadores.  Essa situação foi modificada com o entorno formado por assentamentos.  Com a instalação da empresa Companhia Vale do Rio Doce (privatizada em 1997 e, hoje, Companhia VALE) esta procede a produzir sua própria territorialização, orientada para evitar tensões com os povos indígenas e o movimento camponês observa o autor deste trabalho, contudo,  as denúncias de suas ações desdiz  dos conflitos que continua a provocar.  Neste livro, o mapa da territorialização camponesa é também ilustrativo das superposições, fronteira e confrontos  com a empresa Vale.  Nele há menor possibilidade de identificar os latifúndios que persistem no sudeste do Estado.
A pesquisa de Rogério Almeida parte dessa complexa situação histórica suscitada pelas intervenções econômicas e fundiárias que ocorrem no sudeste do Pará, desde os anos setenta. A territorialização do campesinato no Sudeste do Pará é interpretada como “produto de pressão, negociações e acomodações de forças sociais e políticas”. Essa noção sintetiza diversas estratégias de agentes sociais de permanência na terra. Neste estudo são descritos diversos atos da vigorosa mobilização camponesa, mediada por setores religiosos, intelectuais, políticos e que produz territorialidades específicas.  
 O autor enfoca a política de assentamento no período 1997-2005 na perspectiva dos agentes sociais, de suas lutas e projetos. Mas, desde essa mesma perspectiva deduz que o projeto do Estado tem sido de “despolitizar os antagonismos sociais e neutralizar as reivindicações do movimento camponês”, assumindo a posição de priorizar a discussão sobre camponês e “política”. Hobsbawm[2] aponta a relação entre os dois conceitos: “A política em que os camponeses estão envolvidos com as sociedades mais amplas do que fazem parte. Ou seja,  as relações de camponeses com outros grupos sociais, tanto os que são seus “superiores”  ou exploradores econômicos,  sociais e políticos, quanto aqueles que não o são, os operários, por exemplo, ou outros setores do campesinato, e com as instituições ou unidades sociais mais abrangentes – o governo, o Estado nacional”.  Precisamente, o historiador aponta o fenômeno da invasão ou ocupação em massa de terras, enquanto forma de militância coletiva camponesa e procura conhecer como por meio dessas ações os camponeses, atingem os pressupostos sociais e políticos e o pensamento estratégico subjacente a elas.  No Sudeste do Pará as ocupações de terras, do INCRA foram uma estratégia de conquista de terra, de pressão para atendimento de reivindicações.  As desapropriações de castanhais que seguiram a chacinas e massacres foram precedidas pela criação de assentamentos.
Acontecimentos políticos importantes dos anos 80, com a redemocratização do país, até o presente marcam a questão da territorialização camponesa no Brasil. Primeiro, a Nova República que criou expectativas nos trabalhadores rurais discutidas no Congresso dos Trabalhadores Sem Terra e, em seguida, o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores, promovido pela CONTAG. O Movimento dos Sem Terra realiza seu congresso em janeiro de 1985, em Curitiba e elabora um conjunto de resoluções que envolviam a demanda de uma reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, a distribuição de todas as propriedades com áreas acima de 500 hectares, a expropriação das terras das multinacionais, a extinção do Estatuto da Terra e a criação de novas leis com a participação dos trabalhadores e a partir das suas práticas de luta. Os Sem Terra tinham poucas esperanças na Nova República e a descrença abriu um espaço para pressões acerca da realização da reforma agrária. O Movimento Sem Terra desencadeia no Sul do Brasil ocupações e acampamentos, que culminaria em março de 1985 quando estava prevista a aprovação da Proposta do Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborada como  resultado de ampla discussão entre especialistas, trabalhadores rurais e, inclusive, com as entidades patronais. Entre janeiro e outubro de 1985 registraram-se pressões contra a Reforma Agrária.  A ação de desapropriação por interesse social foi imediatamente rejeitada. O Conselho de Segurança Nacional propôs a substituição do PNRA pelo Plano de Política Agrícola (PONDERE).
A contra-reforma apoiada nos elementos de política agrícola pretendia inutilizar o principal instrumento de reforma agrária, que era a desapropriação por interesse social. A desapropriação imediata vinha ao encontro das reivindicações antigas do Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e de outros movimentos de apoio à Reforma Agrária. Sob essa pressão houve a redução das metas propostas, ocorreu a adulteração de parágrafos do documento oficial, inclusive o que se referia à negociação. A desapropriação imediata foi colocada em segundo plano. A pressão partia da União Democrática Ruralista, assim como da Tradição Família e Propriedade. Existia evidentemente um projeto intelectual que visava o fracasso do PNRA e essas influencias e pressões fizeram uma contra-reforma no campo.
As desapropriações foram feitas em áreas de grandes conflitos que envolveram duas ou três centenas de famílias. Ações de desapropriação foram marcadas pelo confronto com as forças da contra-reforma, por obstáculos administrativos no encaminhamento dos processos. O novo Ministro desviou a atenção das desapropriações, priorizando os assentamentos. A partir de então, a desapropriação deixou de ser prioridade; passaram a prevalecer as práticas de desapropriação amigável, os processos de negociação em detrimento de uma solução para áreas fundamentais. Em consequência, houve um aumento extraordinário dos conflitos. Muitos trabalhadores rurais foram assassinados. No Polígono dos Castanhais, em 1985, registraram-se 93 mortes e 102 homicídios dolosos, mas nenhuma desapropriação por interesse social. O único processo assinado foi o do castanhal Araras, embora com erros grosseiros.
Entre 1994-2002 processaram-se reformas estruturais de peso, assinalando um ponto de inflexão da política agrária. As novas dinâmicas da economia mundial influenciam na reestruturação do papel do Estado.  Entre as medidas exigidas pelo Banco Mundial estava a desobstrução do mercado de terras e a intervenção do Estado para impedir novas chacinas e massacres, para evitar a ocupação de terras por trabalhadores e acelerar a criação de assentamentos rurais.  Na pesquisa realizada por Rogério Almeida apresenta-se o tripé da política de Reforma Agrária do período: as ocupações de terras,  as pressões dos movimentos sociais e as exigências do Banco Mundial. O Estado implementa, assim, a política de assentamentos de famílias como política social compensatória, mediante a “estadualização” dos projetos de assentamentos, repassando a responsabilidade pelo Estado e Municípios; a substituição do instrumento constitucional de desapropriação pela propaganda do “mercado de terras”.
As tentativas de mensurar a territorialização “física”  do campesinato no sul e sudeste do Pará levam  Rogério Almeida a “considerar uma significativa territorialização”, representada por 450 assentamentos,  localizados em 36 municípios, com 58.152 famílias,  sendo que a capacidade seria de 85.061,  de conformidade com dados acumulados de 1987-2005.  A pesquisa suscita interesse por conhecer esse universo, rapidamente apresentado nos seus avanços,  sem  deixar de questionar sobre os limites (assentamentos de mini-fundiários, sem sustentabilidade).  Os  agentes sociais são mais falados  por meio dos números, do que por suas identidades,  lacuna que poderá ser preenchida por novas pesquisas.
Em meio à crise econômico-financeira mundial e em parte por ela estimulada, teve início uma corrida de países importadores de alimentos em busca de terras agricultáveis de países produtores. Brasil é alvo da corrida com seus 200 milhões de hectares de terras cultiváveis. Desta forma, o assédio por terras para produção de alimentos soma-se à escalada de aquisições, feitas nos últimos anos por investidores e empresas estrangeiros, de áreas para produção de fontes de energia renovável, de expansão da pecuária transformando projetos de assentamento agrícola e reservas extrativistas em áreas de pastagem. No plano econômico o agricultor familiar dos assentamentos é levado a produzir cada vez mais para o mercado. No plano político, a territorialização desse heterogêneo segmento camponês revela rupturas com o modelo clientelista no campo (e nas cidades da Amazônia) como escreveu Alfredo Almeida [3](2005).
            O processo de territorialização conduzido pelos “camponeses” tem paralelo com outras mobilizações sociais e processos sociais de territorialização no Pará. Estas territorialidades específicas são reivindicadas por indígenas, quilombolas, extrativistas e encontram-se em permanente combate com as forças do agronegócio, com forte sustentação política que desenvolvem campanhas de desterritorialização, visando a negação de direitos territoriais reconhecidos na Constituição de 1988.
            Territorialização do Campesinato no Sudeste do Pará, apresentado pelo jornalista Rogério Almeida como dissertação de Mestrado no PDTU/NAEA persegue nas linhas teóricas e metodológicas dos autores que compartilham desse objeto de conhecimento:  Otávio Velho, Jean Hébette, Alfredo Wagner Berno de Almeida,  Octávio Ianni,  Maria Célia Nunes Coelho, Gutemberg  Guerra, entre outros.    A premiação e publicação é também uma contribuição a ser levada e aberta à critica por parte dos movimentos sociais,  desta forma, cumprira sua finalidade precípua. 
 
                                                                                                  [1] ALMEIDA, A. W.   O intransitivo da transição.  O Estado, os conflitos agrários e a violência na Amazônia. 1965-1989.  In.  LENA, P.  e OLIVEIRA, A.   Amazônia,  a fronteira  agrícola:  20 anos depois.  Belém, Museu Paraense Emilio Goeldi, 1991,   (p. 259-290)  P. 283.
[2]  HOBSBAWM, Eric.  Pessoas Extraordinárias.  Resistência,  Rebelião e Jaz.  Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998.  Cap. XII   P. 241-276
 
[3] ALMEIDA,  A. W. B.  Processos de territorialização e movimentos sociais na Amazônia.  In.  Campesinato no século XXI:  Possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campensinato no Brasil.   In.  CARVALHO, H. M. (Org.)  Editora Vozes,  Rio de Janeiro,  2005.   P. 84-92.

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