Rosa Elizabeth Acevedo Marin
Os discursos sobre a Reforma Agrária no Brasil dos governos do Partido
dos Trabalhadores (PT) e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) insistem
sobre os resultados da política de assentamentos. Na visão burocrática o assentamento, categoria de
intervenção, representa a extensão de vários
imóveis rurais ou um número estimado de estabelecimentos para os assentados “clientes
da política”. Os dados de criação de Projetos de Assentamentos (PA’s) muitas vezes
apontados como manipulados nos relatórios, entram na corrida para revelar a
eficiência das ações de reforma agrária localizada.
Outro foco discursivo convergente é elaborado por segmentos
empresariais e do próprio Estado que exalta os êxitos do agronegócio e da
agricultura familiar enquanto segmento subordinado ao modelo de mercado e de
desenvolvimento capitalista no campo. Ao mesmo tempo, seus pronunciamentos apontam
os acampamentos, as organizações que os apóiam, como ações descabidas,
protagonizadas por sujeitos de fora da ordem das instituições. O que está em jogo são os projetos, as ações e
as estratégias dos agentes sociais que entram na disputa pela terra e recursos
naturais evidenciando os paradoxos da política de desenvolvimento do Brasil,
das estruturas de apropriação e de dominação centradas na terra e nos recursos.
No Brasil, o Estado e os
grupos políticos de forma articulada opõem-se aos projetos de reforma agrária –
proposta em termos radicais nos anos 50/60 e de forma maciça na década de 80.
Em vez de atender a essa demanda social, o Estado propõe políticas de
colonização, de assentamentos, que não passam de reformas agrárias localizadas,
de reduzida capacidade para solucionar os problemas fundiários e agrários.
Na história mais recente do
campo brasileiro as políticas
governamentais e as instituições executoras apresentam como resultados de suas
ações o monopólio da terra, a concentração fundiária e o acirramento dos
conflitos sociais no campo. Na região amazônica, estes são componentes da
modernização da agricultura autoritária. No Sudeste do Pará desenvolvem-se
processos econômicos e políticos que caracterizam o fechamento artificial da
“fronteira” por conglomerados econômicos, pela concentração de pequenos
produtores rurais de base familiar e pelo desenvolvimento espontâneo de um novo
campesinato.
Sob a tensão permanente de atos de violência, os conflitos sociais no sudeste do Pará
desenvolveram-se até se tornar obstáculos à implantação de projetos
agropecuários, madeireiros e de mineração. Índios e posseiros lutavam pelas
terras. Na década de oitenta órgãos oficiais
utilizaram a expressão “invasão de terras públicas e particulares” na
Amazônia com o propósito de impedir que o produtor realizasse ocupações em
terras devolutas, que aparentemente não eram o domínio das grandes empresas.
Assim, ele encontrava uma alternativa que não o trabalho assalariado na cidade
ou no campo, resultado inevitável do capitalismo. O camponês não é passivo na
sociedade e tratava de sobreviver onde o capitalismo não havia chegado.
Portanto, o avanço de trabalhadores sobre as terras devolutas ou a denominada
colonização espontânea é um termo insuficiente para explicar o fenômeno.
Comumente, o modelo espontâneo é oposto à colonização dirigida, que imporia uma
racionalidade à ocupação, via construção de rodovias de integração e montagem
de projetos de colonização. Mas esse modelo dirigido resulta de motivos
geopolíticos e ideológicos, como a segurança nacional, via preservação das
fronteiras.
Em 1980, os ocupantes no Maranhão,
Goiás e Pará chegavam a 898.164, segundo o IBGE. Entendia o corpo militar que
esses conflitos deviam ser reprimidos energicamente, posicionamento caracterizado
como militarização do controle sobre os conflitos, realizada entre 1980 e 1985,
como analisa Alfredo W. Berno de Almeida. O
ritmo de desapropriações mostrava grave lentidão e os assentamentos até 1987
tiveram capacidade para assentar menos de 10% das famílias. A pressão das
mobilizações camponesas na área de atuação do GETAT conseguiu desapropriar 15
latifúndios (área de 77.673 ha), beneficiando 1.208 famílias camponesas[1].
Na década de setenta, o Projeto
Grande Carajás iniciava com as prerrogativas do governo que lhe permitiram o
controle de grandes áreas para usufruto direito, como reservas ambientais e
ainda ingerência em Áreas de Proteção Ambiental e Florestas Nacionais, controle
de trabalhadores. Essa situação foi
modificada com o entorno formado por assentamentos. Com a instalação da empresa Companhia Vale do
Rio Doce (privatizada em 1997 e, hoje, Companhia VALE) esta procede a produzir sua
própria territorialização, orientada para evitar tensões com os povos indígenas
e o movimento camponês observa o autor deste trabalho, contudo, as denúncias de suas ações desdiz dos conflitos que continua a provocar. Neste livro, o mapa da territorialização
camponesa é também ilustrativo das superposições, fronteira e confrontos com a empresa Vale. Nele há menor possibilidade de identificar os
latifúndios que persistem no sudeste do Estado.
A pesquisa de Rogério Almeida parte
dessa complexa situação histórica suscitada pelas intervenções econômicas e
fundiárias que ocorrem no sudeste do Pará, desde os anos setenta. A territorialização do campesinato no
Sudeste do Pará é interpretada como “produto de pressão, negociações e acomodações
de forças sociais e políticas”. Essa noção sintetiza diversas estratégias de
agentes sociais de permanência na terra. Neste estudo são descritos diversos atos
da vigorosa mobilização camponesa, mediada por setores religiosos,
intelectuais, políticos e que produz territorialidades específicas.
O autor enfoca a política de
assentamento no período 1997-2005 na perspectiva dos agentes sociais, de suas
lutas e projetos. Mas, desde essa mesma perspectiva deduz que o projeto do
Estado tem sido de “despolitizar os antagonismos sociais e neutralizar as
reivindicações do movimento camponês”, assumindo a posição de priorizar a discussão sobre camponês e
“política”. Hobsbawm[2]
aponta a relação entre os dois conceitos: “A política em que os camponeses
estão envolvidos com as sociedades mais amplas do que fazem parte. Ou seja, as relações de camponeses com outros grupos
sociais, tanto os que são seus “superiores”
ou exploradores econômicos,
sociais e políticos, quanto aqueles que não o são, os operários, por
exemplo, ou outros setores do campesinato, e com as instituições ou unidades
sociais mais abrangentes – o governo, o Estado nacional”. Precisamente, o historiador aponta o fenômeno
da invasão ou ocupação em massa de terras, enquanto forma de militância coletiva
camponesa e procura conhecer como por meio dessas ações os camponeses, atingem
os pressupostos sociais e políticos e o pensamento estratégico subjacente a
elas. No Sudeste do Pará as ocupações de
terras, do INCRA foram uma estratégia de conquista de terra, de pressão para
atendimento de reivindicações. As
desapropriações de castanhais que seguiram a chacinas e massacres foram
precedidas pela criação de assentamentos.
Acontecimentos políticos importantes
dos anos 80, com a redemocratização do país, até o presente marcam a questão da
territorialização camponesa no Brasil. Primeiro, a Nova República que criou
expectativas nos trabalhadores rurais discutidas no Congresso dos Trabalhadores
Sem Terra e, em seguida, o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores, promovido
pela CONTAG. O Movimento dos Sem Terra realiza seu congresso em janeiro de
1985, em Curitiba e elabora um conjunto de resoluções que envolviam a demanda
de uma reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, a distribuição de
todas as propriedades com áreas acima de 500 hectares, a expropriação das
terras das multinacionais, a extinção do Estatuto da Terra e a criação de novas
leis com a participação dos trabalhadores e a partir das suas práticas de luta.
Os Sem Terra tinham poucas esperanças na Nova República e a descrença abriu um
espaço para pressões acerca da realização da reforma agrária. O Movimento Sem
Terra desencadeia no Sul do Brasil ocupações e acampamentos, que culminaria em
março de 1985 quando estava prevista a aprovação da Proposta do Plano Nacional
de Reforma Agrária, elaborada como
resultado de ampla discussão entre especialistas, trabalhadores rurais e,
inclusive, com as entidades patronais. Entre janeiro e outubro de 1985 registraram-se
pressões contra a Reforma Agrária. A
ação de desapropriação por interesse social foi imediatamente rejeitada. O
Conselho de Segurança Nacional propôs a substituição do PNRA pelo Plano de
Política Agrícola (PONDERE).
A contra-reforma apoiada
nos elementos de política agrícola pretendia inutilizar o principal instrumento
de reforma agrária, que era a desapropriação por interesse social. A
desapropriação imediata vinha ao encontro das reivindicações antigas do
Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais e de outros movimentos de apoio à
Reforma Agrária. Sob essa pressão houve a redução das metas propostas, ocorreu
a adulteração de parágrafos do documento oficial, inclusive o que se referia à
negociação. A desapropriação imediata foi colocada em segundo plano. A pressão
partia da União Democrática Ruralista, assim como da Tradição Família e
Propriedade. Existia evidentemente um projeto intelectual que visava o fracasso
do PNRA e essas influencias e pressões fizeram uma contra-reforma no campo.
As desapropriações foram feitas em áreas de grandes conflitos
que envolveram duas ou três centenas de famílias. Ações de desapropriação foram
marcadas pelo confronto com as forças da contra-reforma, por obstáculos
administrativos no encaminhamento dos processos. O novo Ministro desviou a
atenção das desapropriações, priorizando os assentamentos. A partir de então, a
desapropriação deixou de ser prioridade; passaram a prevalecer as práticas de
desapropriação amigável, os processos de negociação em detrimento de uma
solução para áreas fundamentais. Em consequência, houve um aumento
extraordinário dos conflitos. Muitos trabalhadores rurais foram assassinados. No
Polígono dos Castanhais, em 1985, registraram-se 93 mortes e 102 homicídios
dolosos, mas nenhuma desapropriação por interesse social. O único processo assinado
foi o do castanhal Araras, embora com erros grosseiros.
Entre 1994-2002 processaram-se
reformas estruturais de peso, assinalando um ponto de inflexão da política
agrária. As novas dinâmicas da economia mundial influenciam na reestruturação
do papel do Estado. Entre as medidas
exigidas pelo Banco Mundial estava a desobstrução do mercado de terras e a
intervenção do Estado para impedir novas chacinas e massacres, para evitar a
ocupação de terras por trabalhadores e acelerar a criação de assentamentos
rurais. Na pesquisa realizada por
Rogério Almeida apresenta-se o tripé da política de Reforma Agrária do período:
as ocupações de terras, as pressões dos
movimentos sociais e as exigências do Banco Mundial. O Estado implementa,
assim, a política de assentamentos de famílias como política social
compensatória, mediante a “estadualização” dos projetos de assentamentos,
repassando a responsabilidade pelo Estado e Municípios; a substituição do
instrumento constitucional de desapropriação pela propaganda do “mercado de
terras”.
As tentativas de mensurar
a territorialização “física” do
campesinato no sul e sudeste do Pará levam Rogério Almeida a “considerar uma
significativa territorialização”, representada por 450 assentamentos, localizados em 36 municípios, com 58.152
famílias, sendo que a capacidade seria
de 85.061, de conformidade com dados
acumulados de 1987-2005. A pesquisa
suscita interesse por conhecer esse universo, rapidamente apresentado nos seus
avanços, sem deixar de questionar sobre os limites
(assentamentos de mini-fundiários, sem sustentabilidade). Os
agentes sociais são mais falados
por meio dos números, do que por suas identidades, lacuna que poderá ser preenchida por novas
pesquisas.
Em meio à crise econômico-financeira mundial e em parte por
ela estimulada, teve início uma corrida de países importadores de alimentos em
busca de terras agricultáveis de países produtores. Brasil é alvo da corrida
com seus 200 milhões de hectares de terras cultiváveis. Desta forma, o assédio
por terras para produção de alimentos soma-se à escalada de aquisições, feitas
nos últimos anos por investidores e empresas estrangeiros, de áreas para
produção de fontes de energia renovável, de expansão da pecuária transformando projetos
de assentamento agrícola e reservas extrativistas em áreas de pastagem. No
plano econômico o agricultor familiar dos assentamentos é levado a produzir
cada vez mais para o mercado. No plano político, a territorialização desse
heterogêneo segmento camponês revela rupturas com o modelo clientelista no
campo (e nas cidades da Amazônia) como escreveu Alfredo Almeida [3](2005).
O
processo de territorialização conduzido pelos “camponeses” tem paralelo com outras
mobilizações sociais e processos sociais de territorialização no Pará. Estas territorialidades
específicas são reivindicadas por indígenas, quilombolas, extrativistas e encontram-se
em permanente combate com as forças do agronegócio, com forte sustentação
política que desenvolvem campanhas de desterritorialização, visando a negação
de direitos territoriais reconhecidos na Constituição de 1988.
Territorialização do Campesinato no Sudeste
do Pará, apresentado pelo jornalista Rogério Almeida como dissertação de
Mestrado no PDTU/NAEA persegue nas linhas teóricas e metodológicas dos autores
que compartilham desse objeto de conhecimento:
Otávio Velho, Jean Hébette, Alfredo Wagner Berno de Almeida, Octávio Ianni, Maria Célia Nunes Coelho, Gutemberg Guerra, entre outros. A premiação e publicação é também uma
contribuição a ser levada e aberta à critica por parte dos movimentos
sociais, desta forma, cumprira sua
finalidade precípua.
[1] ALMEIDA, A. W. O intransitivo da transição. O Estado, os conflitos agrários e a violência
na Amazônia. 1965-1989. In. LENA, P.
e OLIVEIRA, A. Amazônia, a fronteira
agrícola: 20 anos depois. Belém, Museu Paraense Emilio Goeldi, 1991, (p. 259-290)
P. 283.
[2] HOBSBAWM, Eric. Pessoas Extraordinárias. Resistência,
Rebelião e Jaz. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1998. Cap. XII P. 241-276
[3]
ALMEIDA, A. W. B. Processos de territorialização e movimentos
sociais na Amazônia. In. Campesinato no século XXI: Possibilidades e condicionantes do
desenvolvimento do campensinato no Brasil.
In. CARVALHO, H. M. (Org.) Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2005.
P. 84-92.
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