sexta-feira, 7 de julho de 2023

*Trecho, afinal, o que seria?

Fonte: livro 10 anos do CAT, organizado pelo professor Jean Hébette

O dito mundo culto compreende o trecho como um espaço entre dois pontos no tempo e no espaço. Triste ortodoxia. Todavia, no vasto universo amazônico, o trecho é o horizonte do despossuído. O não lugar. A vida em movimento. Mutação.

O trecho não é mãe. Nem pai. Soa mais como incerteza. Um penhasco desconhecido ao peão. Elevado trapézio do circo da vida, sem rede ou equipe de socorro. Socorro!!! Não entendo nada. Um rio raso para toda dor que há no mundo. Um rio fundo. Vastidão de violência em combustão. Fronteira capital em acumulação primitiva. Armadilha para animal.

O trecho é bruto. Encruza de estranhos. Mundo de desconfiados, ornado de solidariedade e traição. Vida em farrapos nos confins do humano conservado em calda de álcool.  No trecho, logo cedo, o primeiro carinho é dado pelo beiço da morte em cama de pensão entupida de pulgas.

O trecho, paixão. Desassossego. Privação. Privado de tudo, resta o peito mudo. Privado de tudo, resta a gota de suor a infernizar o olho cego. No trecho, ao que se agarrar senão à esperança?

Os desencontros constituem a família nas andanças do trecho. A boroca é a mala que acomoda tudo que a pobreza permitiu acumular durante toda uma jornada de errância. Passo em falso sobre mar em chamas. Lonjuras de tudo.

Tudo que queria era tirar você deste lugar. Carregar tu para o Círio em Belém, ou delírios em Macapá. Amor sobre a mesa de bilhar. Riqueza ligeira em garimpo da Guiana Francesa, mon amour.  

No trecho, a dor não possui fronteira. Amor de peão desconhece barreira. No toca fita do carro, uma canção me faz lembrar você. Acendo mais um cigarro, driblo a rua da delegacia de polícia, esbarro no puteiro. 

Barracão de zinco.  Barracão prisão. Escravo por dívida não tem salvação. Escorre água. Escorre sangue em um banquete de ossos. Bem sabe quem fez a seringa sangrar ou catou ouriço de castanha em Marabá.

Tudo tarda. A sorte escapa.  Menino sem calça, bainha sem faca na forquinha do somehome ou no cogó da onça em quatro bocas com fome. Trecho, seria uma masmorra sem cela?

O trecho não é mãe, nem pai. Menos ainda um amor ou parente distante...um rio raso. Um rio fundo...abismo de rosas em riomar de tempestades. Anotações realizadas entre Alenquer e Santarém. Choro sufocado pela fome em amar.

O trecho é o lugar onde a vida encarna o que é possível. Retalhos de gentes despedaçadas no caminho. Juntadas no caminho. Separadas...O trecho devora o humano. Mói, mastiga, judia, maltrata, cospe e descarta. Peixeira cravada em bucho de criança na Sexta-Feira Santa.

Trecho. Trincheira. Sem terra, sem lar, sem família...errante desposado pelo álcool e drogas em alguidar, onde a rede acomoda o corpo sem vida, e o rosto da morte não usa véu.  

No trecho, morre-se de trairagem, vingança, desamor, bala e malária. A cova não é funda em terra medida. Terra que querias ver dividida.

A educadora Rose Bezerra, peã do trecho desde tenra idade, assim, o espelha: “Trecho é mais sobre o presente. O passado guardado apenas na memória revivida nos detalhes soltos do caminho... o futuro é só esperança. Qualquer lugar, torna-se lugar...

Existirá vida para além da terceira margem do rio?

O trecho, afinal, afinal, afinal.......o que seria?

 

*O esboço do texto foi gerado na madrugada do dia 06 de julho de 2023, em travessia de rio entre Alenquer-Santarém/PA.  Para a presente versão contou com as observações da educadora e peã do trecho Rose Bezerra. 

2 comentários:

Mano disse...

Bem inspirado nosso peão do trecho

Anônimo disse...

Belíssima conceituacao desse não lugar de tanta gente incluída na (in)certeza fos desejos de ser alguémno mundo. Merece ser usado nas aulas de Geografia Humana para que a sensibilidade aflore com a realidade nua e crua dos peões de trecho!