Proximidades da Ladeira do Sabão, entre Uruará e Placas/PA.
“Eu conheço cada palmo deste chão”, dispara Renato Teixeira, na
canção Frete. A música fez parte da
trilha sonora da série de uma TV de amplitude nacional. Os atores Antônio
Fagundes e Stênio Garcia encarnavam uma dupla de caminhoneiros. O mote era
alumiar as aventuras e desventuras dos carreteiros país afora. Tempos idos do século passado.
Ao contrário de Teixeira, embananando-me em metro quadrado.
Perco-me em guia de meio fio. Meia vida. Meia morte. Ave Maria, Nossa Senhora
de Nazaré. Silencio quando o tempo era de falar. Tagarelo, quando o prudente
seria silenciar. Meto os pés pelas mãos. Misturo alhos com bugalhos. Arrisco a
mão em cumbuca. Confundo mulher com
parafuso. Desconheço sotaques, e se, por acaso, deixei saudade pelos lugares
por onde andei. Uma hecatombe bípede a pleitear vaga em Circo de Soleil, em
resumo.
Ainda assim, um ás em driblar a escassez, escapar de malária,
peixeira, febre amarela, olho grande, praga alheia, sarampo e bala.
Por estes dias, danei-me de saudades dos meus e cai no mundo. Um
tombo. Um tonto. Com numerário
contato, meti o pé de Santarém a São Luís. Sertão amazônico para o litoral
nordestino. Entre busão (Santarém-Marabá/PA) e trem (Marabá/PA-São Luís/MA),
umas 40h de trecho. Sei lá quantos km enfrentei. Boa parte percorrido pela Transamazônica, a
entrecortar as bacias Amazonas/Tapajós/Xingu e Tocantins-Araguaia.
A rodovia foi coisa de milico, como saída para a integração física e subordinada da região.
Entregação capital. Riqueza de poucos,
miséria de muitos, foi a equação. A opção virou a região pelo avesso.
Reconfigurou feições econômicas, políticas, sociais, culturais e territoriais. Sobre
os 50 anos da rodovia, o Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina produziu
um belo caderno que busca debulhar a desgraceira.
E por falar em desgraceira, a seguir, apresento um pequeno relato
da minha via crucis sobre jornada de “revortê” para casa. Segue assim, como foi
concebido dentro do busão e disparado em rede social.
09/02/2025. Ladeira da Véia. Bandas de Pacajá. Faz umas 3h e uns
quebrados que estamos impedidos de circular. Crianças choram, cachorros latem. Adultos
irritados, idosos exauridos. Alguns insultam os governos. Nenhuma birosca
perto. Um morador relata que passaram a máquina ontem. Com a chuva, tudo virou
lama. Puro barro. Impossível circular. Os letrados no assunto recomendam
prudência. Faz-se necessário esperar secar um pouco mais a terra. Por enquanto,
os veículos somente descem a ladeira. Somente os mais destemidos encaram a
subida. Uma garoa se pronuncia. A internet e os carregadores de celular operam no busão. O que permite a comunicação com parentes e a distração dos passageiros. Não fosse isso, espancariam o motora?
Ladeira da Véia, Pacajá/PA
09/02/2025. Via de regra, os motoras que encaram as estradas da
Amazônia são craques. Passados na casca no alho. Todavia, no inverno, o bagulho fica mais complicado.
Assim, estamos com o carro preso na lama entre Uruará e Rurópolis, a aguardar
algum encantado para ajudar. O carro
quebrou por volta de 3h da manhã. Nenhuma birosca nas proximidades. Queria espiar o
sinistro da Educação do Pará neste rolê. E, por falar nele, indígenas, quilombolas e trabalhadores da educação ocupam a Seduc em levante contra absurdos da pasta. Rossieli e Helder meteram goela abaixo um lei que fere de morte a modalidade de ensino modular. Tá bonito o movimento. Impossível não relacionar com a Cabanagem. Guardados contextos e proporções. "Nada sobre nós, sem nós", defende um tema de ordem. E, assim, a COP 30 começou....
10/02/2025. O carro atolado/danificado. Eu a pensar em banho, em
uma bela farofa, um café quente, dengo da companheira e a euforia do cachorro e
das plantas do quintal.
10/02/2025. Até os carrapatos dos bois das terras griladas/afanadas
sabem que é sinistro esse período em vários trechos das estradas do Pará.
Existe até mapa dos pontos mais delicados. Sabendo disso, o que impede o poder
público, e mesmo as empresas em desenharem uma estratégia de socorro??? Interessante
seria os executivos e governantes experimentarem o quão desumano é a jornada.
10/02/2025. O motora é natural do Amazonas. Corria Manaus-Boa
Vista. Tinha 14 anos de firma na carteira. Colecionava algumas experiências com
assaltos. Já levou coronhadas de pistola e fora vítima de facada. Exibe-se para
uma dama rechonchuda. Em um dos assaltos, policiais executaram três miliantes.
Um deles mantinha a peixeira nos costados do condutor, até que o policial
alvejou a cabeça do assaltante. "No Amazonas coleciono mais de 30
experiências com assaltos", conta sem muito entusiasmo. Ficou
traumatizado. Tomou remédio para
ansiedade. Por conta dos traumas, ficou
a correr somente no perímetro de Manaus. Mesmo, assim, sempre que alguém com
ares que ele considerava elemento suspeito adentrava a viatura, o motora parava
o carro e corria a rumo ignorado.
Contudo, foi a praga de um amor que o feriu de morte, deixando o
seu coração em migalhas. Morto de paixão por uma paraense, largou tudo e mudou
para Pacajá. O amor já tinha um filho, resultado de outro enlace. Ela estava
separada há dez anos quando consagrou matrimônio com o motorista. Ele narra que
ao mudar para o Pará, não tardou alguns meses, a moça voltou para o ex-marido.
O motora largou tudo. Mudou para Santarém. Na véspera de embarque de volta para
Manaus, foi chamado pela empresa Ouro e Prata. Ele diz que odeia correr o
trecho de Pacajá. O coração fica mofino de saudade da pessoa que o deixou com o
coração em desgraça. O amor é de morrer. O amor é de matar. " O pior é que
ela já viajou comigo algumas vezes. Pense num mundo sem graça", relembra.
Novamente apartada do pai do primeiro rebento, ela pediu perdão ao motora, e
rogou por reconciliação. Ele não topou. Ela voltou para Manaus. Ele espera em
breve largar a nova firma e seguir o mesmo rumo. Não aguenta mais tanto risco. Murro em ponta de faca.
10/02/2025. A logística da Ouro e Prata lembra a gestão do general
"Pançuelo" na saúde durante a pandemia do desgoverno daquela praga
nacional que recuso em registrar o nome: um desastre. O motora consultou a
central do RS, que não autorizou a viagem por uma via alternativa, a
Transuruara, recentemente asfaltada. Trata-se de tradicional trecho de saque de
madeira e outros crimes.
10/02/2025. A jovem do banco da frente mora na roça, em Altamira. O
motora a mede com a gula de um retirante de crise climática. É do Maranhão. Maranhense abunda em terras
Paroaras. Eu mesmo sou da terra do poeta Ferreira Gullar. A jovem boleada, com
as gordurinhas a escaparem das vestes, tem como destino final a cidade de
Manaus. O senhor ao meu lado também vem da mesma cidade que a jovem da roça.
Ele vai para Sinop/MT, onde deve ficar uns três meses. Assim como a realidade
de outros municípios amazônicos, a cidade do Mato Grosso encarna um “case” do
exercício de grilagem. Tanto que o
próprio nome do município remete à empresa de colonização dos tempos da
ditadura civil-militar.
Voltando......O cabra já morou por lá. Por conta de envolvimento
com drogas do rebento mais novo, voltou para Altamira. A mulher zangou com ele.
Em Sinop considerava a vida menos aperreada. O casal tem três filhos. Ela
desejava internar a cria em clínica de reabilitação. Ele ponderou que o melhor
remédio seria o amor, o zelo. Ele conta que a cria já melhorou bastante. E
sobre as birras e ciúme da “conge”, recomenda dose cavalar de paciência. "
Não for assim, a gente aparta um do outro", acredita o viajante da
poltrona ao lado.
11/02/2025. Nesta modalidade de corre de lonjuras hercúleas em
terras Paroaras, o recomendado é andar armado. Tudo pode acontecer. Eu nunca
viajo sem carregar em meu embornal pelo menos uns quatro livros. A depender do
bus e da estrada é possível ler sem risco do descolamento da retina e dos
óculos despencarem das ventas. Nesta desventura que experimento desde sexta-feira,
carreguei duas obras de Benedicto Monteiro. Trata- se de releituras
ambicionando um possível artigo. Minossauro e Transtempo são os livros. Para
distração carrego dois livros de contos de Rubem Fonseca. Um craque no riscado.
Foi “puliça”, entre outras ocupações.
Dele, trouxe Pequenas criaturas e Axilas e outras histórias indecorosas.
Já li todos. Nestas andanças amazônicas que somam quase 30 anos, é a primeira
vez que fico tanto tempo retido no meio do nada. Nenhuma birosca à vista. Bico
seco. Só na água. Acho que vou reler o livro das Axilas. Há umas sacanagens bem
legais. Inspiradoras.
11/02/2025. O motora informa: estamos na melhor parte da estrada.
Lá na frente tem a Ladeira do Sabão!!!
11/02/2025. As senhoras do busão: a primeira, toda pávula fala para
a segunda que o único problema que possui é a gula. 60 e tantas primaveras.
Toda serelepe. A segunda com mais verões nas costas reclama de fibromialgia e
algumas hérnias. A terceira parelha a segunda em primaveras. Tá indo para o
Detrito Federal tratar um câncer. Há também crianças. Uma quase viajou sozinha.
Em Altamira, o motora agoniado com o atraso, deixou a mãe que fora pegar o de
comer para o bebê. Avisaram o condutor, mesmo assim ele seguiu, parando alguns
metros adiante. 20 minutos depois a mãe alcança o bus, e arreia indignação
contra o motora. Dispara que vai fazer B.O e meter processo na firma. Tomara
que cumpra a promessa.
11/02/2025. 10h depois do bus atolar na estrada, chega o socorro, outro
bus. Que capacidade.....!!! diria o cronista esportivo.
11/02/2025. Enquanto isso, na Ladeira do Sabão.... Momento de fé... mensagem na
traseira de caminhão baú. Ainda sem nenhum vestígio de alguma
birosca que possa socorrer a todos nós. “DEUS é tão generoso que te dá a
liberdade de plantar o que você quiser. Mas, ele é tão justo, que você colhe
somente o que PLANTOU”. Pelas bandas de
cá, o grilo predomina. Assim como as cercas e o gado. “A cerca que cerca o gado
é a mesma que cerca a fome”, assim versou César Teixeira, poeta maranhense. A
cerca, o gado, o grilo, conluio de grileiros e policias notabilizou o Pará como
o estado onde mais se mata em pelejas na luta pela terra. Em fevereiro, soma 20 anos da execução da agente da CPT, Dorothy Stang. Crime ocorrido em Anapu. Mortes de dirigentes sindicais precederam o assassinato da missionária. A exemplo dos casos de Dema e Brasília. Oh Deus, onde estais...?
Mensagem de fé de caminhão baú. Ladeira da Véia, Pacajá/PA
11/02/2025. Ladeira do Sabão. Há um carro atravessado no meio do
caminho. No meio do caminho há um carro atravessado. Um trator opera a remoção.
Neste período do ano, por estas bandas do Norte, o trator é o rei.
11/02/2025. Em condições normais, eu já estaria em casa desde o
café. Saudade do meu dengo, do abraço estimulador de ocitocina, farofa, café
com pão e a alegria do Boroo, nosso cão. Não fosse a minha lesera e o cansaço,
eu teria atentado para o aviso da moça da Ouro e Prata, em Altamira. A jovem,
antes do bus partir, anunciou que daqui a mais três horas, um outro carro
chegaria e iria pela Transuruara. A rodovia asfaltada recentemente. Ninguém desceu. O receio era a demora. Mal
sabíamos que ficaríamos por mais de 15 horas na Ladeira do Sabão.
11/02/2025. Diário de bordo da Ladeira do Sabão. Passageiros buscam frutas na floresta. É
possível avistar algumas mangueiras. Ao redor, castanheiras persistem. A
questão é quebrar o ouriço. O ouriço é tão bruto quanto a vida. Há um busão
quebrado obstruindo a passagem. Estamos a aguardar um trator que foi remover
outro busão mais adiante. Estamos nesta situação desde às 3h da manhã. Soa que
o motora vai encarar o desafio. Oremos ...não tá chovendo.
Pés de lama, após empurrar o busão.
11/02/2025. Diário de bordo da Ladeira do Sabão. Faz 13h que
estamos retidos. Transamazônica. Entre Uruará e Placas. Apareceu um carro do
DNIT. Não se vale de alguma coisa. Ainda há um cadinho de água no busão.
Tecnicamente, não é possível fazer nenhuma previsão de quando seguiremos
viagem. De onde estamos, conseguimos enxergar outros veículos parados mais
acima. Única notícia razoável é a ausência de chuva. Ao menos por enquanto. Uma
trupe de três patetas não cessa em gravar o esforço dos motoras em encarar a
péssima rodovia. Um tá fantasiado de patriota. O motora acaba de renovar o
estoque de água. Pelo andar da carruagem, ou seria o contrário? Não conseguirei
chegar em casa ainda hoje.
11/02/2025. Nestas lonjuras, sem única birosca para nos socorrer,
um pequeno trator é o rei. Tenho sede/fome de boca, breja, priquito, café,
comida quente......
11/02/2025. Diário da Ladeira do Sabão. Carretas, carros miúdos,
caminhões baú entre outras modalidades estão reféns da lama. Nestas lonjuras, o
trator reina. Alguém informa que os jovens da gravação são do canal: inverno
amazônico ou algo parecido. Tomei uma decisão que parece razoável, embarcar em
micro-ônibus e voltar para Uruará. E, em seguida, tomar outro transporte que vá
por outra via. No caso, a Transuruara, reconhecida região de exploração ilegal
de madeira. Nunca fiquei tão contente em rever a cidade. Já consegui assear os
pés cheios de barro. E até peguei uma breja, ainda que não seja do meu agrado e
uso rotineiro. Ao menos por cá há biroscas e equivalentes... após mais de 13h
de martírio....
Ladeira do Sabão. Entre Uruará e Placas/PA
12/02/2025 Então, como findou a via crucis na Ladeira do Sabão,
indagaram algumas pessoas. Lá vai... após umas 14/15h de martírio, decidi tomar
– quase de assalto – o primeiro micro-ônibus da Bururé que metesse a cara no
local, em direção à Uruará. Isso ocorreu por volta das 16h. Consegui acessar a
cidade ainda durante a luz do dia.
Contudo, por conta de inúmeras variáveis, não controladas pelas empresas
que fazem a linha para Santarém, só consegui embarcar por volta das 00h30,
chegando em casa por volta das 4h. A
Ouro e Prata, que praticamente monopoliza várias linhas, informou pelo menos
uns três horários diferentes, que variavam de 20h a 4h da manhã. Antes, porém,
foi possível um asseio, a troca de vestes, refeição e umas brejas para aliviar
a tensão. Eu estava na estrada desde a
noite de sexta-feira. Vinha de São Luís, onde fui visitar Mainha e demais entes
da família, posto não ter conseguido ir na quadra natalina. Como a tarifa do
transporte aéreo é algo impraticável, a saída foi o transporte multimodal: trem
e busão. A merda toda foi que deixei todo mundo preocupado: o meu Dengo em
Santarém e a família em São Luís. A boa, a colheita de relatos para compor uma
crônica. Repousar um cadinho, que daqui
a pouco tem aula.
PS: Os restaurantes, lanchonetes e hospedarias encarnam um capítulo a
parte nestas desventuras. Todavia, como ficamos presos entre o nada e lugar nenhum, não foi
possível o registro. Já o fiz em outra ocasião. Tentar recuperar qualquer dia
desses e socializar por aqui.