terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Traços sobre o trecho

Diário de Bordo - 22 e 23 de dezembro - Marabá - São Luís - Rogério Almeida

Partida

Eu voltar pro interior. Vou me casar com Terezinha. Vou  trabalhar de encanador. Ou lavrador.  

Manhã de 22 de dezembro. Marabá. Sudeste paraense. Amazônia. Tempo de chuva. Vésperas do nascimento de Jesus Cristo, dizem, o filho de Deus. Busão lotado. Criança saindo pelo ladrão. Gritos. Gente entulhada de bagulho. Despedidas na plataforma. Lágrimas. Vestes exalando odor de outras estradas. Poeira de outros rincões. Famílias de muitas paragens: Piauí, Ceará....Maranhão. Gente indo ao encontro dos seus celebrar a quadra natalina. Talvez eu chegue amanhã em São Luís. Busão lotado. Muitos sotaques. Batalhão de histórias. Nenhuma nação.


KM 06
O ocaso da minha vida o dado não abolirá

Tempo nublado. Penduricalhos toscos enfeitam a rodoviária do km 06 em Marabá. A canção sertaneja enche o ambiente farto de gente em trânsito. É daqui que as pessoas alcançam a estação de trem da Vale. Crianças vendem água, maçã, castanha....bolos....Daqui até Santa Inês são onze horas de sacode.

Destino

Minha vida é andar por este país. Pra ver se  um dia descanso feliz...

Recife é o destino do busao da Guanabara. Rock e sertanejo é a trilha sonora. Vez em quando ecoa um louvor. Historias de vida e de morte quebram a monotonia da viagem. Crianças dormem. A canção de Pablo parece um encosto: Saudade meu bebê... Em Marabá ela foi por uns 10 dias a alvorada. Na madrugada o apito do trem da Vale sufocava o latido dos cães. O barulho dos grilos. A sinfonia dos sapos. Os ruídos dos coitos. Menos o saque. 

Araguaia- Tocantins

E voltar pra casa todo fim de ano....cantando um bolero de Waldick Soriano

Duas pontes ajudam a superar os rios Araguaia e Tocantins na região do Bico do Papagaio no trajeto de Marabá a Imperatriz. Antes eram as balsas que acudiam a travessia. O barato era consumir peixe frito nos entrepostos no intervalo de tempo de espera das embarcações. Tudo improvisado. Latas de tintas forradas com barro serviam de fogareiro. Farinha de puba e pimenta compunham o luxuoso acompanhamento. Ali nasceu o merchadising. Os empreendedores da beira do rio não ocultavam a marca Suvinil.

Saque no trecho


Lua. Oh lua cor de prata. Me diga por favor, aonde anda aquela ingrata...

Extrativismo mineral e de energia, pecuária, monoculturas de grãos e do exótico eucalipto dominam a paisagem entre Açailândia a Santa Inês, Maranhão. A estrada é sinuosa. É serra. No meio de tudo a agricultura familiar ainda respira em paragens como Bom Jesus, Nova Vida e Buriticupu. Terra de Luiz Vila Nova. Terra de lutador. Terra de lavrador, onde aquele que mata também pode morrer. A ferrovia de Carajás corre em paralelo. Encontra-se em fase de duplicação. No século passado, quando corri o trecho pela primeira vez, a estrada era de poeira. O comércio era incipiente. A pistolagem ativa, assim como a disputa por madeira. Numa unidade de conservação havia onça. É tempo de corte do eucalipto. Pilhas de troncos da madeira ornam o trecho desprovidas de enfeites de natal.


Antônio do açaí

Garçom. Aqui nesta mesa de bar, eu hoje vou me embriagar...

Antônio tem pouco mais de 50. O chapéu de couro oculta a carapinha grisalha. O comerciante de açaí em Marabá é um negro encorpado na labuta do roçado. Ele é pai de seis filhos. Duas mulheres e quatro homens. Um formado. Dois na faculdade e os demais fechando o curso médio. É o orgulho do negociante que apenas sabe desenhar o nome.  Após 25 anos de casório caiu na catrevagem. A compa era brava. Riscava o corpo do cabra com peixeira. Ameaçava furar o bucho. Após o ocaso do primeiro enlace amoroso engatou cinco ajuntamentos. O derradeiro durou sete anos. Faz dois meses que a amada pegou o beco. Ele sofre. Declara amor. Viaja com uma filha e dois netos rumo a Campo Maior, no Piauí. Cidade conhecida pela apicultura. Foi uma das filhas que encontrou a parentela no facebook. Troca de fotos e contatos telefônicos antecederam o reencontro com a família depois de 27 anos de apartamento. Ele fala sem parar. Pode ser ansiedade.

Santa Inês

Se eu te amo e tu me amas. Um amor a dois profana.

Caldo de ovos é o prato principal no menu da rodoviária de Santa Inês, interior do Maranhão. Rivaliza em importância com a panelada, iguaria festejada no sul e sudeste paraense A cidade é um entroncamento. O ar é árido. Rude. Típica cidade parida no muque da fronteira. A moça negra de cabelos vermelhos amamenta a cria. A avó cochila e prende o outro rebento na altura da cintura. A casa tá cheia. Bancas de produtos genéricos competem com o escasso espaço. Vende-se de tudo. Bichinhos de pelúcia, brinquedos de plástico, relógios. Tudo colorido. Entre os viajantes o baiano cata latas. Em silêncio.


Criança a bordo

Nós gatos já nascemos pobres....porém já nascemos livres..

Manu é pixixita. Cabelo enfeitado com Maria Chiquinha. Uma de cada lado. Fruto do amor de um caminhoneiro cearense com uma maranhense com feição indígena. Mulher de anca grande e formas renascentistas. A bebê tem nariz de bola. Sob ele um riso fácil. Acena. Faz graça. Não chorou única vez no percurso de 12 horas entre Marabá a Santa Inês. Viaja com os pais e uma irmã mais velha. As netas de Antônio brincam com ela. Crianças enchiam o busão.

São Luís
Pra que chorar se o importante da vida é sorrir...

São Luís. Clima ameno. Vento forte. A especulação imobiliária sufocou dunas e mangues. A bosta tomou conta do mar. A maioria das praias é imprópria para banho. Na Litorânea abastados desfilam grife. Um maluco puxa sono sobre redes de dormir. No Atlântico navios em fila aguardam o instante do carregamento do saque do minério dos Carajás.

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Laranja é a cor do uniforme do gari. Os que operam nas praias de São Luís lembram ninja, só que em tom feliz. Usam além de botas, calças, blusa de manga longa,  chapéu, óculos e um pano que protege boca e nariz da areia da praia carregada pela força do vento. Na areia da praia desenhei seu nome como um enfeite a Iemanjá. Mimo que a maré alta num piscar de olhos engolirá...

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