terça-feira, 18 de março de 2025

Rinaldo, o pescador de Oriximiná



Imagem: orla da cidade de Oriximiná/PA

Juriti e Oriximiná integram a geografia do Baixo Amazonas paraense. Elas distinguem-se de outras cidades da região por pelo menos dois fatos. O primeiro por terem nomes de origem indígena, ao contrário das demais, que foram batizadas com homônimos de cidades lusas, a exemplo de Santarém, Óbidos, Almeirim, Alenquer, Monte Alegre, Faro e Terra Santa, entre outras nomeadas nos estados do Pará e no Maranhão.

Um marcador colonial dos tempos do marques de Pombal no afã em  “modernizar” a região, onde uma das ações residiu em reativar o mercado de africanos escravizados, a partir da criação de companhias de comércio, a exemplo do modelo inglês.  

A exploração mineral é o outro elemento. É justo este componente que as tiraram do anonimato e a catapultaram a integrar o mapa-múndi como exportadoras de produtos primários aos principais centros econômicos do mundo, outro elemento de subordinação.

Bauxita é o minério explorado. Ele é transformado em alumina em processo químico, que em seguida é transformada em lingotes de alumínio a partir de processos de metalurgia.

O município de Barcarena, nas proximidades da capital do Pará, abriga as maiores plantas industriais da América Latina da cadeia de alumínio, a Albras e A Alunorte. Por conta de abrigar inúmeros projetos industriais e portos, o município ganhou a alcunha de “Cubatão” do Pará. Um prato cheio para a COP. A experiência coleciona crimes ambientais de toda ordem cometidos pelas grandes corporações. Em sua maioria impunes.

Faz pouco mais de duas décadas que Juruti experimenta a exploração de bauxita. A operação é realizada pela empresa estadunidense Alcoa. Uma das maiores do mundo. Assim como outros grandes projetos instalados na Amazônia, a iniciativa é eivada de abusos de poder do capital contra as populações locais.

Em Oriximiná o minério é extraído desde os anos de 1970. É creditada à atividade um dos maiores crimes ambientais na Amazônia, o despejo de resíduos dos processos de extração por anos no Lago do Batata. Crime apagado da linha do tempo da Mineração Rio do Norte (MRN) em seu site, recheado de ações enquadradas como de responsabilidade social ou algo que o equivalha.  

Após passar por várias mãos, Vale, desde a sua origem na ditadura civil-militar, quando ainda era uma empresa pública no Programa Grande Carajás (PGC), a norueguesa Norsk Hidro, recentemente a suíça Glencore  assumiu o controle acionário (45%) das ações, seguida pela australiana Sout32, com 33% e o conglomerado anglo-australiano, Rio Tinto, com 22% das ações.

A Rio Tinto também opera em Barcarena, coleciona um rosário de crimes ambientais, que comprometem a reprodução econômica, social, política e social das populações da região. Além de comprometer a segurança alimentar e toda uma cosmologia local.

Todas operam em vários países e possuem um robusto histórico de violações de direitos humanos, crimes ambientais entre outras externalidades negativas. O saque estrutura a operação.

Via de regra a mineração não promove uma relação no local da extração. Pode-se sinalizar para uma acumulação originária, onde o Estado cede o subsolo, promove a renúncia fiscal, financia e possibilita a infraestrutura, onde a maioria dos gerados empregos são precarizados, e ocorrem quando da instalação do projeto.

 A massiva migração em busca de oportunidade quando da instalação dos grandes projetos  tende a pressionar as limitadas estruturas dos municípios, que por algum tempo conseguem incrementar a arrecadação do ISS (Imposto Sobre Serviço). Uma equação perversa da pilhagem em todos os quadrantes.

Em setembro do ano passado a MRN anunciou a obtenção de licença prévia para operar em outros platôs nas cidades de Oriximiná, Terra Santo e Faro no escopo do Projeto Novas Minas (PNM). O investimento estimado é de R$5 bilhões reais para uma produção média de 12,5 milhões de toneladas/ano.

Estes dias pesquisadores de universidades da Suíça e da Inglaterra realizaram um intercâmbio no sentido em conhecer a região e promover um intercâmbio com representantes das comunidades afetadas pelos empreendimentos da MRN, além de dialogas com discentes e pesquisadores da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará).  

Nas planilhas, planos, programas e políticas desenvolvimentistas, o horizonte é consolidar a região como um corredor de commodities. Modal de transporte (rodovia, hidrovia, ferrovia), portos e geração de energia são alguns dos projetos. Uma vez mais, uma integração subordinada.

Rebojos de um passado que não passa, em terra de aguda presença de civilizações complexas antes de Colombo baixar no Novo Mundo, que abriga o registro considerado mais antigo da presença humana na Amazônia, a Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre.

Indígenas, remanescentes de quilombolas, extrativistas, entre outras categorias enquadradas como tradicionais espraiam-se em diversidades modalidades de territorializações, diuturnamente ameaçadas por projetos de infraestrutura, mineração, agricultura capitalista. Vidas e saberes constantemente postos em risco, a exemplo da existência do pescador Rinaldo. 

Rinaldo, o pescador de "Ori"

Pacu, tambaqui e tucunaré foram as espécies que Rinaldo logrou pegar esses dias. Ficou umas noites no corre. Cumpre a missão em uma  bajara. Uma embarcação típica da região. Nem grande, nem pequena. Usa aquele motorzinho. Mas, sempre carrega remo.

Sabe de cor e salteado as manhãs do universo da várzea que viceja por entre o Amazonas e o Trombetas. Bandas de Oriximiná. Baixo Amazonas, oeste paraense. Ori é terra de aquilombação. Um mundo de cachoeiras de pretas e pretos fugidos da opressão. Sabença de mocambos.  Ainda hoje são consultores para quem visita o lugar. Cachoeira não é para qualquer um.

O pescador arreceia os dias presentes:  “Foi uma seca no rabo da outra. Uma tristeza só. Os peixes tudo miúdo. Sem plantas para comer. A morrerem nos lagos. A gente tem que viajar mais longe para conseguir um peixe melhorzinho num calor de lascar”.

A gente gasta mais tempo, combustível, gelo e rancho, assim  Rinaldo  traduz os efeitos extremos que precipitam sobre o Baixo Amazonas, o oeste paraense ao longos dos recentes anos.

Rinaldo é pescador de ofício. Soma mais de 60 invernos. Destes, 40 como cabra do riomar das águas barrentas das bandas de cá. Faz uns três dezembros que celebra a aposentadoria. Orgulha-se de sempre ter contribuído com a Colônia de Pescadores. Pura sabença do mundo da várzea.  Ele não tem a compreensão exata do que sucede a COP 30 de Belém.

Mas, sabe muito bem da sofrência que é a vida dos seus em tempo de seca. Um dó que é não ter água boa de beber. Água limpa de banhar. Água de zelar pelo espititual. E, tudo na mais robusta bacia hidrográfica do mundo. 

O corpo esguio resulta da labuta e da dieta à base de peixe.  Ele rejeita carne vermelha e não nutre muito afeto pela carne de frango.  Sempre que possível devota uma breja.

Em certa manhã invernosa da cidade irrigada pelo Amazonas e Trombetas, trombei com ele a matar uma cerveja no comério Cajueiro. Nas proximidades da Praça Centenário. Nem longe. Nem perto. Umas três quadras de lonjura. Usa uma dessas camisas que são negociadas como que se tivesse recurso de proteção de sol. Boné e óculos escuros completam o figurino.

10h da manhã. Já vendeu os peixes que conseguiu pescar após uns dois dias de missão. Tucunaré, Pacu e Tambaqui em pencas. Não há atravessador do negócio do Rinaldo. Em uma bicicleta sambada de guerra ele negocia diretamente com o freguês. Quando a pesca é das boas, faz duas viagens com as pencas de peixes. Atende fiado. Assim como  tem caderno no comércio Cajueiro.

Rinaldo fez uns 12 barrugudin. Tem orgulho em ter conseguido encaminhar a todos. Fala das crias todo pávula. Mora às proximidades da bodega, que se avizinha a um porto de gasolina. “ A mulher topava qualquer parada. Mesmo depois de parir corria o trecho comigo. A gente carregava o barrigudin junto.  Seja para pescar ou catar castanha”, conta.

Rinaldo é cabra de ciência. Sabe de trás para frente o quanto tem de adquirir de combustível, gelo e mantimentos. Fruto de conhecimento acumulado ao longo de décadas. Tem as manhãs de que é quando o rio cobre o ingazeiro que o peixe tá melhor. “ Quando o rio sufoca  a várzea tá tudo certo. O peixe fica bonito”, festeja.

Tatauari, Marajá, Loiro, Socoró, Tarumã e Pixuna, entre outras espécies integram o cardápio dos peixes, ensina Rinaldo. Aqui conheço tudo. Corro o trecho: reserva do Paruru, Volta do Mutum, Ilha das Pombas e por aí vai.

Na viagem vai linha, rede, tarrafa e arpão.  O arpão é uma defesa. Se jacaré tá na tua rede, você cega ele. Tem chovido bem. Mas, ainda não tem fruta caindo.

Um amigo se achega. A pilhéria desenvolve. O amigo é do Amapá. Conta causos de caranguejos e siris.  Associam o chupar caranguejo e siri ao ato sexual de acarinhar a xota da amada. O cantinho explode em risadas. O pescador tem orgulho de ainda trabalhar. Esclarece que o negócio é só. Não anda de cambada. E, nunca teve problemas com a secretaria do meio ambiente ou com o Ibama.

Quando necessário, Rinaldo se defende como pedreiro e adora celebrar a vida. Gosta de cantar. Em nosso prosear recordou de sambas de Chico da Silva, um poeta de Manaus. Com sucessos gravados entre outros artistas, por Alcione, a exemplo de Pandeiro é meu nome.

Ao bater as mãos, Rinaldo relembra entre risos umas estrofes:

Falaram que meu companheiro
Meu amigo surdo parece absurdo

Apanha por tudo
Ninguém canta samba
Sem ele apanhar

Não ouviram que seu companheiro
Amigo pandeiro
Também tira coco do mesmo coqueiro
Apanha sorrindo pra povo cantar

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