O bispo realça o protagonismo das mulheres em defesa da floresta, quando da passagem de mais um ano da execução de Stang
Arquivo da CPT de Anapu/PA
Martírio na floresta
Neste dia 12 de fevereiro completam-se 19 anos da morte da Irmã Dorothy
Stang. Naquele sábado, bem cedo de manhã, em 2005, Irmã Dorothy foi assassinada
com seis tiros à queima-roupa numa estrada do interior de Anapu, município da
Transamazônica no Estado do Pará. Tinha 73 anos de idade.
Quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca
pode ser esquecido. A memória dos mártires faz parte da história e liturgia de
nossa Igreja. Esquecer os mártires é ignorar o Sangue derramado do próprio
Senhor Jesus, o Mártir por excelência de toda a história. O martírio é a doação total e irrestrita em
favor do Reino de Deus, levada até as últimas consequências. É amar até o fim
(cfr. Jo 13,1). Pode haver diversas razões, mas o motivo que leva ao martírio é
sempre o mesmo: o amor maior!
Na minha homilia na Missa de Corpo Presente em 15 de fevereiro de 2005
contei o que soube dos últimos momentos da vida de Dorothy. Antes de ser assassinada, Irmã Dorothy abriu sua sacola de
pano, cumprindo “ordem” de seus algozes que queriam saber se ela estava armada.
Mostrou-lhes o que ela chamava de sua arma: a Bíblia Sagrada. Este seu gesto
derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus
que nos inspira e orienta em nosso caminho. „As armas com que combatemos não
são humanas, o seu poder vem de Deus e são capazes de destruir fortalezas“
(2Cor 10,4).
Nas bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (Mt
5,1-12) há várias que se referem explicitamente ao empenho em favor da
promoção da justiça e da paz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça” (v.6), “bem-aventurados os misericordiosos” (v.7), “bem-aventurados os
que promovem a paz” (v.9), “bem-aventurados os que são perseguidos por causa de
justiça” (v.10). E aos que arriscam a vida em favor da justiça, em favor da
promoção humana, da dignidade humana, dos direitos humanos, é afirmado que “deles
é o Reino dos Céus”.
E tem mais. São considerados especialmente bem-aventurados aqueles e
aquelas que sofrem injúrias, perseguição, difamação, calúnia (v.12):
“Alegrai-vos e regozijai-vos…” Como alguém pode regozijar-se, ficar alegre
quando é perseguido, agredido naquilo que lhe é tão caro, o bom nome, a boa
reputação? Há um detalhe significativo no texto sagrado: o motivo da alegria
não são as agressões, as hostilidades em si, mas o sofrimento “por causa de
mim”. Aí reside a razão profunda do martírio, do martírio do sangue derramado,
mas também do martírio que é o testemunho de toda uma vida consagrada ao Senhor
e seu Reino. Esse martírio pressupõe uma paixão sem limites como nos revela São
Paulo: “Mas o que era para mim lucro tive-o como perda, por amor de Cristo. (…)
Por ele perdi tudo…” (Fil 3,7-8). E esse Cristo se identifica com os “excluídos
que não são apenas ‘explorados’”, mas considerados “’supérfluos’ e
‘descartáveis’” (Documento de Aparecida, 65).
Irmã Dorothy: uma “voz que clama no deserto”
Irmã Dorothy me pareceu uma “voz que clama do deserto” (Mc 1,3). O
deserto não é uma imensidão de areia a se perder nos horizontes. Na Amazônia é
a desgraça de homens sem dó nem piedade desertificarem o outrora inviolado
mundo de selvas e águas em que, desde tempos imemoriais, habitavam os povos
indígenas e posteriormente ribeirinhos que se alimentaram das frutas da
floresta e viviam em paz com a natureza. Em nome de uma equivocada busca de
progresso a qualquer preço, homens, apenas guiados pela expectativa de lucros
imediatos, entendem “benfeitoria” como sinônimo de “pôr abaixo”, de derrubar e
queimar a floresta. Esta perversidade se intensificou a partir da construção da
Rodovia Transamazônica no início dos anos 70. Nunca esqueço o delírio do
Presidente Medici e de sua comitiva, aplaudindo desvairados à derrubada de uma
castanheira-do-pará. Entendiam o tombo fragoroso desta gigantesca árvore no
chão previamente desnudado de sua vegetação como marco inaugural de uma nova
era. Uma placa incrustada no tronco deveria lembrar o evento em termos
bombásticos: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o
Sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa
arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”. Foi em 10
de outubro de 1970. Mas a placa de bronze permaneceu pouco tempo no tronco. Foi
roubada! Ficou apenas o tronco, surrado pelas intempéries tropicais, como
trágica recordação de que outrora uma exuberante selva cobria toda a região do
Xingu.
Irmã Dorothy chegou 1982 na Prelazia do Xingu e viu de perto o frenesi
das derrubadas em grande escala. E desde que chegou falou e não mediu esforços,
querendo convencer a quem ouvia sua vozinha mansa – mansa era apenas sua voz – de que, num futuro bem próximo, frequentes
calamidades em cada vez maiores proporções serão consequência das violentas agressões
de homens insensatos à natureza.
Mataram a Irmã, calaram a sua voz profética, mas suas previsões se concretizam
de ano em ano sempre mais, nas secas antes nunca vistas na Amazônia, com
baixíssimos níveis dos rios e inundações desastrosas nos estados do sul e
sudeste.
Amazônia para uma vida saudável ou para a exploração inescrupulosa?
Nos primeiros dois governos de Lula divulgaram-se percentagens mais
moderados de deflorestação que nem sempre correspondiam à realidade. A questão
ecológica ganhou sempre mais defensores na esfera internacional. Provou-se
cientificamente que a Amazônia tem uma enorme importância para o equilíbrio
climático do planeta. Diante das reclamações vindas do exterior Lula respondeu
primeiro com irritação: “Nós precisamos mostrar ao mundo que ninguém mais do que nós queremos
cuidar da nossa floresta. Mas ela é nossa! E que gringo nenhum venha meter o
nariz onde não é chamado, que nós saberemos cuidar da nossa floresta e
saberemos cuidar do nosso desenvolvimento". “Deus lhe ouça!” rezei, pedindo a Deus que finalmente
se concretize a promessa de o Brasil cuidar das suas florestas.
A partir de 2018 o governo Jair Bolsonaro fez vistas grossas à
legislação ambiental. Favoreceu a expansão de fazendeiros e madeireiros e
estimulou o garimpo ilegal em áreas indígenas com todas as tétricas sequelas
para a vida, mormente das crianças e . adolescentes
dos povos originários. Durante a pandemia o presidente adotou o mote do
ministro Ricardo Salles: “passar a boiada”.
Lula, porém, prometeu no discurso de posse “desmatamento zero até 2030”:
“Nossa meta é alcançar o desmatamento zero na
Amazônia, a emissão zero de gases de efeito estufa na matriz energética, além
de estimular o reaproveitamento de pastagens degradadas“ e acrescentou em
relação aos povos indígenas: "Ninguém conhece melhor as nossas florestas,
nem é mais eficaz em defendê-las, que os que estavam aqui desde tempos
imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental". Lula foi aplaudido, e com razão, inclusive pela comunidade internacional,
pois deu um basta ao desmonte ambiental de seu predecessor.
Mesmo assim ficam duas preocupações:
1- Desmatamento
Zero até 2030? O prazo é muito longo e, se nos anos vindouros até 2030 as
derrubadas e queimadas continuam no mesmo ritmo do ano 2023, milhões de
hectares de floresta tropical serão varridos da face do planeta. Só no prazo de
janeiro até novembro de 2023 foram constatados 93.945 incêndios na Amazônia
brasileira. Mesmo que em relação aos 11 meses de 2022 (112.027) haja uma
diminuição de 16 %, o fogaréu que se alastrou pela Amazônia foi apocalíptico.
Quem esteve em Altamira, Pará, na segunda quinzena de outubro e na primeira de
novembro lembra com horror essas semanas em que, além de extremamente forte
calor, o povo foi condenado a respirar um ar poluído, tão nocivo à saúde
especialmente de crianças, idosos e gestantes. E Altamira, mesmo sendo o maior
município da Amazônia e do Brasil (159.500 km2), é apenas uma fatia
desta Amazônia.
2- Mesmo que Lula aumentou os recursos para o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para poder fiscalizar com mais afinco madeireiros e
fazendeiros e impedi-los a derrubar a floresta, todo o dinheiro não vai
garantir o êxito almejado se no Congresso continua a vigorar o espírito de
“passar a boiada”. A legislação ambiental fala de derrubada “ilegal” dando a
entender que há uma derrubada “legal”, permitida pela legislação ambiental. É
uma contradição! Se queremos chegar ao “desmatamento zero”, não pode existir uma
derrubada “legal” e outra “ilegal”. Derrubar ou queimar a floresta é “crime
ambiental” a ser punido severamente por sanções penais e administrativas.
Em todos os conflitos está em jogo a legislação
ambiental brasileira e a própria Constituição Federal que garante a existência
de terras fora do mercado capitalista, por exemplo áreas indígenas (Art. 232 e
233) ou parques nacionais. E é contra estes parâmetros constitucionais que o
agronegócio e seus aliados sempre de novo se insurgem. Sua palavra de ordem é:
“Nenhuma terra fora do mercado! Todas as terras devem ser usadas e aproveitadas
para produzirem e gerarem rendimentos e lucros”. Quem defender o contrário:
“Toda a terra é dom de Deus. Os povos indígenas, os quilombolas, os agricultores
familiares, os ribeirinhos têm direito às suas terras ancestrais, chão sagrado de
seus mitos e ritos e de sua própria subsistência, garantia de sua Vida, também em
vista das futuras gerações” sempre correrá o risco de ser taxado de inimigo do
progresso e desenvolvimento e, na pior hipótese, de ser “eliminado” como a Irmã
Dorothy e tantos outros na Amazônia, por contrariar interesses e a ganância de
quem vê na terra, na floresta, na água e até no ar meros artigos de negócio, de
mercado, de transações para o proveito próprio ou de grupos, em detrimento de
outras camadas sociais e, quase sempre, contra as mais elementares regras de
cuidado com o meio ambiente. São dois projetos que estão em confronto: um a
favor da terra para a Vida, o outro a favor da terra para o negócio.
O protagonismo das mulheres na sociedade e na Igreja
Estou há quase 60 anos no Xingu e muitas foram as lutas em favor da
dignidade e dos direitos humanos nessas seis décadas passadas. Em todas elas havia
uma constante que saltava à vista. Foram as mulheres que tomaram a dianteira.
Na época em que Altamira passou uma fase horrorosa por causa dos crimes que
vitimaram crianças e adolescentes, as mulheres não apenas prantearam com as
famílias os filhos vitimados, mas fundaram o “Comitê em Defesa das Crianças e
Adolescentes de Altamira”. Existia em Altamira uma Círculo Operário e há também
um Sindicato de Trabalhadores Rurais. Já que o empenho destes órgãos foi pouco
eficiente, as mulheres tomaram a iniciativa de criar o “Movimento das Mulheres
do Campo e da Cidade”. A grande maioria de conselheiros do Conselho Tutelar nos
vários municípios do Xingu e da Transamazônica é continua sendo de mulheres.
Na Prelazia do Xingu surgiram após o Encontro dos Bispos da Amazônia em
Santarém 1972 centenas de Comunidades Eclesiais de Base. Na sua maior parte elas
foram e são até hoje dirigidas e coordenadas por mulheres. O mesmo se pode
dizer dos Conselhos Paroquias e Pastorais e das equipes litúrgicas. Sem as
mulheres a nossa Igreja em muitas regiões nem existiria sequer!
Especialmente no contexto da construção da hidrelétrica Belo Monte,
muitas vezes me perguntei qual seria a razão profunda do protagonismo feminino
em todos os protestos, manifestações e passeatas? Os homens de Altamira e
municípios circunvizinhos sonharam dia e noite com chuvas de dinheiro e um
aumento significativo de chances de empregos bem assalariados. Custou-lhes
muito a se darem conta de que seus sonhos foram rasgados em pedaços e deixaram
a amarga sensação de terem sido ludibriados com promessas que nunca seriam
cumpridas. As mulheres, no entanto, foram desde o início mais “críticas” e não
se deixaram enganar. Quando descobriram que as “condicionantes”, elencadas pelo
IBAMA e a FUNAI, que deveriam ser cumpridas antes de iniciar a obra, só foram
promessas para tranquilizar o povo, passaram a chamar Belo Monte de “Belo
monstro”. Não hesitaram em denunciar a deterioração do rio e meio ambiente, o
sumiço de vilas inteiras com a promessa de reconstruí-las em outras áreas, a descoberta
de toneladas de peixes mortos e, na região, a falta de suficientes postos de
saúde e assistência médica, insuficiência de unidades escolares, encarecimento
de gêneros alimentícios, falta de saneamento básico, esgotos a céu aberto, aumento
da criminalidade na cidade, poluição sonora, e outros itens indispensáveis para
o bem-estar das pessoas e uma infraestrutura condigna para a vida urbana.
Creio que a mulher, seja ela mãe biológica ou não, é mais propensa a
dedicar-se à “prole”, intui perigos e riscos, ameaças e violências, mas seu
coração também pressente alegrias e vitórias. Não é mero instinto. É o entrelaçamento
do espiritual e do emocional com o racional que é capaz de fazer desabrochar
intuições que se situam além do raciocínio lógico de causa e efeito ou de uma
conclusão das premissas em um silogismo aristotélico. Em outras palavras: as
mulheres do Xingu raciocinam mais com o coração!
“Dorothy vive”
Irmã Dorothy foi assassinada, mas suas Irmãs de Notre Dame que conviviam
com ela continuam o caminho, dedicando-se ao povo que ela não quis deixar
entregue à própria sorte. No dia 2 de fevereiro de 2005, dez dias antes de ser
morta falou ainda a um jornalista – e eu estava presente e ouvi o que ela disse:
“Sei que eles querem me matar, mas não vou fugir. Meu
lugar é aqui, ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas por gente que se
considera poderosa”.
Hoje são também leigas e leigos, mulheres e homens,
jovens e pessoas idosas que se consagram à nobre causa pela qual Irmã Dorothy não
hesitou de doar sua vida. O entusiasmo se manifesta no refrão, repetido
ano após ano, sempre de novo, pelo povo reunido nas Santas Missas de
aniversário de sua morte: “Dorothy vive, vive! Para sempre!”
Altamira, 12 de fevereiro de 2024
Erwin Kräutler C.PP.S.
Bispo em. do Xingu
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