"Garimpo é uma cachaça da moléstia. A gente sempre fica na esperança de
que vai achar a pedra que vai mudar a vida da gente, mas é difícil isso
acontecer”. O autor dessa frase é Petronilo Alves Reis. Me foi dita em 2008,
durante minha segunda ida ao garimpo de Serra Pelada. Petronilo tinha 75 anos e
é personagem da reportagem que acabou entrando no meu livro ‘Sujando os
Sapatos’. Procurei por ele na sexta-feira passada quando retornei a vila.
Petronilo havia morrido.
Foi o que me disseram os ex-garimpeiros, enquanto jogavam conversa fora e
deixavam o tempo passar sob o escaldante sol. Estavam no mesmo lugar de antes,
a frente da vendinha de Antonio Bernardes de Souza, o Godô, também personagem
da mesma matéria. Godô, hoje com quase 76 anos, luta contra a hanseníase e
serve uma das mais geladas latinhas de cerveja que provei nos últimos tempos.
Ali os garimpeiros antigos tentam congelar o tempo. Esperam do governo uma
definição final a respeito de uma indenização ou algo parecido que permita a
eles um final de vida digno. Sobram as histórias.
Um velho garimpeiro, apelidado de Baiano, preto retinto, de cabelos e barbas
brancas, parecendo o Tio Barnabé do Sítio do Pica pau Amarelo, me diz que um
dia não cabe para ouvir as histórias de Serra Pelada. É a mais pura verdade.
Saímos de Curionópolis cedinho, logo depois do café no hotel. Sexta-feira, 13.
Aniversário do Lui, meu filho mais velho. Ele nasceu exatamente numa
sexta-feira, 13, vinte e dois anos atrás. Mando um email afetuoso a ele.
Saudade do moleque.
Olho para a topografia de serras, enquanto Janis Joplin canta Me and Bob
McGee, a música que fala em pegar estrada, em liberdade, em nostalgia.
O que percebo é que na entrada da vila, o cenário mudou. Há um canteiro de
obras da Vale. A empresa fincou pés no local. O que resultará disso...?
Moradores da vila reclamam das detonações explosivas. ‘Treme tudo’, me diz um
deles.
Mais pro outro lado, há o canteiro da Colossus. Entre as duas gigantes, os
homens pequenos, com suas histórias épicas. Cláudio Moraes, por exemplo, me
reconhece. Ele é dono de uma loja bem organizada no centro da vila. Anda bem
vestido. Tem boa aparência aos quase 50 anos. Mas levo Uchoa para os fundos da
loja e mostro a foto de Moraes, à época do garimpo. É uma das fotos clássicas,
com o garimpeiro todo enlameado, jovem ainda. Conheci Moraes em 2010. E ele
parece melhor que seus companheiros.
Sento e converso com os garimpeiros. Sobram reclamações. A minha intenção é
falar sobre Curió, mas não entro logo de cara no assunto. Vou rodeando,
assuntando...quando falo o nome do homem, os garimpeiros mostram que ele ainda
é um mito. É compreensível.
Não vou ficar fazendo valoração moral aqui, mas é fato que Curió falou a língua
deles. Num lugar onde os homens só andavam armados, conseguiu desarmá-los e
impor disciplina.
“Mas ele não era essa brabeza toda não”, me diz um ex-garimpeiro, segurando uma
enxada e rindo solto a cada frase. É assim, o mundo anda complicado, mas o bom
humor garante a sobrevivência. Isso sempre me fascinou. “Se fosse brabo não
teria deixado passarem a mão na bunda da mulher dele aqui”. “Passaram a mão na
bunda da mulher dele?”, me espanto. “Mas, rapá, num tô te dizendo?”, responde o
garimpeiro. E rimos alto os dois.
Serra Pelada é assim, lugar de muitas histórias. Vamos até o lago que esconde
hoje o que foi o formigueiro humano. Rogério pede pra que faça uma foto dele.
Ao fundo, um velhinho lava as roupas no lago. “Porra, tem peixe aí. Como
pode?”, pergunta Rogério. Mistérios da natureza.
Na vila prefiro deixar o carro em algum canto e seguir caminhando. É melhor. Um
homem nos chama. Conversa conosco. Repórteres chamam a atenção. Guto Costa tem
47 anos e foi moço ainda a Serra Pelada. Andava de namorico com uma menina rica
e os pais dela, lógico, não viam isso com bons olhos. Pois foi atrás de fortuna
no garimpo para se fazer digno da amada. Vejo a vendinha dele e nem preciso
perguntar nada.
Com um chapéu na cabeça, Carlos Rodrigues me diz que não pensava em ser
garimpeiro. Mas em Marabá foi convencido por um conhecido. “Foi o destino, me
diz ele”. Pergunto o que faria se encontrasse hoje esse sujeito do destino
dele, trinta anos depois. “Mostraria pra ele a desgraça que fez em minha vida”,
resume.
Vou atrás de José Alfredo, personagem de duas reportagens minhas em Serra
Pelada. Me contam que o poço cavado por ele foi embargado, tapado. Não pode
mais cavucar em busca do ouro sonhado. Não encontro José Alfredo, garimpeiro
que tenho carinho de amigo. Vi os olhos dele ficarem marejados quando me contou
sobre o pai e ele encontrando ouro nos anos 80. E vi a emoção que teve quando
lhe levei a página do Diário em que ele era a foto de destaque. A casa simples
tem passado por transformações. Está se tornando de alvenaria.
Um dos filhos agora é funcionário de uma das empresas, percebo pela calça,
típica dos funcionários de mineradoras. “Tá melhor assim?”, arrisco perguntar.
Ele diz que sim. Natural. Em vez da indefinição do sonho do ouro, carteira
assinada e salário todo fim de mês. É um ciclo natural.
Voltamos a Curionópolis. Na saída da vila, vejo o imenso escudo do Vasco numa
das primeiras casas. Sorrio, certas coisas não mudam. Ainda bem. No meio do
caminho o pneu fura com as pedras. Não mudam mesmo.