domingo, 3 de maio de 2020

Delza: 89 primaveras


Delza e o bisneto, Franklin

Comer melancia na Avenida Beira Mar era a grande diversão na remota quadra da década dos anos 50 do século passado, na ainda hoje provinciana São Luís. E, urinar em algum canto no percurso de volta para casa encarnava um ato de subversão. Aos meus olhos a cidade soa enjaulada em uma era distante. Impressão?

No passeio de fim de semana o risco rareava.  Nada comparado às tensões dos dias e noites de hoje.  A violência pulsa por todos os cantos. Facções criminosas delimitam territórios com pichações nas quebradas, e mesmo no Centro da capital do Maranhão, um logradouro portuário. A principal vereda de escoamento do minério saqueado no Pará. Maranhão é terra de preto, terra de aquilombação.

Em tempos idos, recitais de poesia tomavam a Praça Gonçalves Dias, espaço do Centro da cidade, que também abriga a Igreja dos Remédios e o antigo prédio da faculdade de Filosofia, o Palácio Cristo Rei, rememora Nelba Almeida. Lá fez parte da primeira turma do curso no estado. A praça tem o Atlântico como espelho. Praça dos Amores é o terno apelido.

Nelba atende pela alcunha de Delza. O nome Nelba soava estranho à maioria das pessoas.  Naqueles dias era comum o estudo do Latim, Francês, conta Delza ainda hoje. A memória é pródiga, ainda que pese o beirar dos 90 anos, hoje soma 89 nos costados de inúmeras pelejas como educadora, mãe, que criou com a solidariedade de outras irmãs, primas e comadres dois rebentos. Um casal.  

Soava subversivo urinar na rua naqueles dias, calcule uma mulher se indispor com os pressupostos de Platão ou Sócrates. Ali se encontra o embrião da Universidade Federal do Maranhã (UFMA). 

Por conta de tramas de alcova do então reitor da época, um cônego, que a preteriu em detrimento do seu par amoroso, Delza não ingressou no magistério superior. Chateada meteu a perna no mundo, e ganhou as entranhas do pauperizado estado. Em projeto solo já tinha duas crias.  Ainda que um ex colega de turma, que posteriormente assumiu a reitoria, a houvesse convidado a assumir uma vaga. Turrona.

Um matriarcado formava a ciranda da nossa infância. Era um matriarcado invocado.  Maria José, Maria do Socorro, Graça, Roselys e tantas outras comadres da capital e de Buriti Bravo, onde militou nos anos de 1960, davam corpo ao colegiado feminista. Cada uma a seu jeito. Cada uma com suas idiossincrasias e contradições.   

Eram tantas as madrinhas e tias postiças que eu era obrigado a tomar bença, que escapa o nome de todo o escrete. Dona Neguinha e Diloca (acho que era assim) guardo na memória. Mas, tinha muito mais gente.

Era comum compartilharem víveres quando o bicho pegava. Neste matriarcado a solidariedade mútua dá liga ao profundo laço de amizade, apreço e respeito entre as partes. Uma lição silenciosa que guardo. “Amigo a gente distingue no momento de aperreio”, repetia.

Graça era uma negra linda. Partiu muito cedo. Devotava com apreço uma boa cerveja. Um infarto a golpeou. A visitava com imenso prazer. Assim como a avó, Edinete, uma enfermeira. Roselys também se foi. Era uma negra retinta. Ao contrário de Graça era de reza.  Delza, Socorro e Roselys encararam o magistério.

Tantas temporais se passaram. E, cá estamos a encarar uma pandemia. A resistir. Ainda que separados por alguns quilômetros, no entanto, unidos pela teimosia em seguir em frente, gosto pela leitura, música, carne de porco e cerveja.   

Felicitações por quase um século de navegares em mares turvos, e apesar de tudo sorrir.

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