Delza e o bisneto, Franklin
Comer melancia na
Avenida Beira Mar era a grande diversão na remota quadra da década dos anos 50
do século passado, na ainda hoje provinciana São Luís. E, urinar em algum canto
no percurso de volta para casa encarnava um ato de subversão. Aos meus olhos a cidade
soa enjaulada em uma era distante. Impressão?
No passeio de fim de
semana o risco rareava. Nada comparado
às tensões dos dias e noites de hoje. A violência
pulsa por todos os cantos. Facções criminosas delimitam territórios com
pichações nas quebradas, e mesmo no Centro da capital do Maranhão, um
logradouro portuário. A principal vereda de escoamento do minério saqueado no
Pará. Maranhão é terra de preto, terra de aquilombação.
Em tempos idos, recitais
de poesia tomavam a Praça Gonçalves Dias, espaço do Centro da cidade, que também
abriga a Igreja dos Remédios e o antigo prédio da faculdade de Filosofia, o
Palácio Cristo Rei, rememora Nelba Almeida. Lá fez parte da primeira turma do curso
no estado. A praça tem o Atlântico como espelho. Praça dos Amores é o terno
apelido.
Nelba atende pela
alcunha de Delza. O nome Nelba soava estranho à maioria das pessoas. Naqueles dias era comum o estudo do Latim, Francês,
conta Delza ainda hoje. A memória é pródiga, ainda que pese o beirar dos 90
anos, hoje soma 89 nos costados de inúmeras pelejas como educadora, mãe, que
criou com a solidariedade de outras irmãs, primas e comadres dois rebentos. Um casal.
Soava subversivo urinar
na rua naqueles dias, calcule uma mulher se indispor com os pressupostos de
Platão ou Sócrates. Ali se encontra o embrião da Universidade Federal do
Maranhã (UFMA).
Por conta de tramas de
alcova do então reitor da época, um cônego, que a preteriu em detrimento do seu
par amoroso, Delza não ingressou no magistério superior. Chateada meteu a perna
no mundo, e ganhou as entranhas do pauperizado estado. Em projeto solo já tinha
duas crias. Ainda que um ex colega de
turma, que posteriormente assumiu a reitoria, a houvesse convidado a assumir
uma vaga. Turrona.
Um matriarcado formava
a ciranda da nossa infância. Era um matriarcado invocado. Maria José, Maria do Socorro, Graça, Roselys e
tantas outras comadres da capital e de Buriti Bravo, onde militou nos anos de
1960, davam corpo ao colegiado feminista. Cada uma a seu jeito. Cada uma com
suas idiossincrasias e contradições.
Eram tantas as
madrinhas e tias postiças que eu era obrigado a tomar bença, que escapa o nome
de todo o escrete. Dona Neguinha e Diloca (acho que era assim) guardo na memória.
Mas, tinha muito mais gente.
Era comum
compartilharem víveres quando o bicho pegava. Neste matriarcado a solidariedade
mútua dá liga ao profundo laço de amizade, apreço e respeito entre as partes. Uma
lição silenciosa que guardo. “Amigo a gente distingue no momento de aperreio”,
repetia.
Graça era uma negra
linda. Partiu muito cedo. Devotava com apreço uma boa cerveja. Um infarto a
golpeou. A visitava com imenso prazer. Assim como a avó, Edinete, uma
enfermeira. Roselys também se foi. Era uma negra retinta. Ao contrário de Graça
era de reza. Delza, Socorro e Roselys
encararam o magistério.
Tantas temporais se passaram.
E, cá estamos a encarar uma pandemia. A resistir. Ainda que separados por
alguns quilômetros, no entanto, unidos pela teimosia em seguir em frente, gosto
pela leitura, música, carne de porco e cerveja.
Felicitações por quase
um século de navegares em mares turvos, e apesar de tudo sorrir.
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