Lançado pela Mezanino Editorial, Búfalo antigo é a oitava cria da lavra de errâncias do pensador do front amazônico. Em primeira mão o poeta apresenta as suas armas e acende a fogueira de indignações e furor diante da encruza civilizatória
Charles Trocate é caboclo Amazônida, nascido e criado nas transitoriedades do Pará, e nosso intelectual corre-mundo como escreveu o professor Paulo Nunes em texto de orelha do livro em questão. Em poesia é sua oitava aparição desde que decidiu escrever para driblar a miséria que confrontava sua adolescência. Nas últimas duas décadas transformou-se em militante político e escritor, e escritor e militante político, pelo último livro que agora vem a público é fácil perceber que não se rendeu em nenhuma das frentes, alterando de maneira permanente estes lugares que escolheu para viver e imaginar.. A seguir, um dedo de prosa com o autor.
Blog furo: Em que consiste Búfalo Antigo – ou Gabriel e outras orquídeas no bolso?
CT: : É um livro que levei alguns dias para escrevê-lo, e foi a demora necessária sem a qual, não teria êxito algum. Pude com esta paciência captar as confrontações da linguagem, e no transmudo assumir estas escolhas rítmicas que me alegra pelo resultado. Diria que ele é o imitável do que se move na floresta sonora – não tem compromisso só com a palavra bem escrita, mas com a extinção que ela provoca quando se externaliza na mercadoria, ‘sobretudo mercadorias privadas’, dos efeitos subjetivos que cria – ou mesmo quando se personifica no sujeito oculto, mas do que socializa a circunstância. Ainda posso afirmar que é o livro de como percebo a lâmina da faca e a carne que ela corta tentando me opor ao esmeril em sono sonâmbulo.
Blog
Furo: “Me opor ao esmeril em sono sonambulo” como metáfora, isso se traduz em
que?
CT: Vamos lá, “Búfalo- Antigo” é um poema só, assinado em lugares e datas diferentes e sem cabeçalhos, quer dizer, sem títulos, começa com a seguinte construção – “em todo caso sei espantar a mosca, torcer a roupa que o corpo inventa”... e conclui, “e o charque repõe divisas nas preciosas pedras de amolar canivetes”. Isto para mim é o que pode fazer a poesia sobre este fatídico indivíduo que assimilamos e deve estar no centro das linguagens para libertar os entreatos da cooperação, ou ainda, renomear as coisas em equilíbro com a economia, a natureza e a sociedade, não pode ser texto para prazeres extra questões, só assim se tencionará para não ser escrita acessório à cata ventos.
Blog Furo: Pensando aqui o livro que nos apresenta como “floresta sonora”, pode precisar este movimento da floresta?
CT: Este é um livro também “animista”, parte desta compreensão de que minha vida se sofistica com a dos outros animais nunca ao contrário, e é arte também a forma de percebê-la, nas outras vidas que tornamos moribunda e a expressão disso é a floresta, úmida, cultural, diversa. De certa forma, o livro se sobressai como protesto por esta “forma de matar, e por este jeito de morrer”, por este equívoco imperativo, de que podemos, mas que as outras vidas, no fundo, estamos eletrificados por esta perspectiva, e subverter isso pressupõem alterarmos o currículo da nossa forma de ser. Quando escrevo “eu beijei um a um membro efetivo da canga mineral, são os animais que bestializamos e tornamos sal e estrume esquecidos dentro do objeto industrial”, não é só a adesão solitária do indivíduo mimico, ou a comoção do eu lírico, é a forma de dizer que esta modernidade que nos dedicamos tanto a ter, a possuir sem pudor, se retroalimenta de algo finito, inclusive, nos arremessa à fábula da inevitabilidade, de que esta transgressão ecológica é o nosso ponto final.
Blog Furo: O livro ainda será lançado, mas já recebi em primeira mão, por isto, te indago, é um livro contra ordem, sobretudo pela poesia de densidade mineral que há nele?
CT: Diria que sim, e que também é um livro dialético, no entanto, sua mecânica não é para apascentar a ordem, torná-la aprazível, é contra sua forma de ser, arbitrária do moinho satânico e o seu tilintar cotidiano, seja pelas extremidades que provocam no sumiço repentino de geologias e os aforismos que há neles, como também pela cegueira política que abona tudo isso. Por exemplo, tem bienais de arte, as mais famosas delas, grandiosas festas literárias financiadas pelo dinheiro da commodity mineral, um sem fim de artistas que não quero aqui julgá-los, mas que, conscientes ou inconscientes, são envolvidos sem se perguntar – o que continua a ocorrer, no país, em Mariana e Brumadinho (MG), Barcarena (PA), quanto custa a natureza exaurida por esta forma de minerar e de lucrar, e financiar a arte? O que sei é que quando a arte e o artista se alienam da natureza, e as corporações da mineração constroem suas próprias subjetividades, estamos não só no limite ético, como estético também! Creio que não há mais espaço para esta acepção de que estamos bem, vivendo bem, neste modelo empresarial “que ergue e destrói coisas belas.”
Blog Furo: Qual tarefa tem o artista e a arte nessa fase de crise ecológica e transição energética?
CT:
Há
um pensamento em Umberto Eco – que “a arte só faz sentido para aqueles que não
estão prisioneiros dos meios de comunicação de massas”. Eis aí uma questão para
os movimentos políticos, contestatórios, de como fazer e comunicar a arte por
outros meios? E isso quer dizer muito, de como estamos interpretando a crise
climática e sobretudo – o que significa no fundamental a transição enérgica
para as nossas vidas e qual o sentido ela trará para a arte? Por exemplo, até
quando a técnica coordenará a política produzindo esse avesso das necessidades
humanas, ainda que seja produto da sua criação? Parece decisivo que ocorra o
contrário! No entanto, sei que a arte é a imitação da realidade, se ela estará
prisioneira das corporações a nos assombrar pelo volume de capital que se
realiza nela – nos grandes eventos de galeria como refinada maquiagem de que
tudo está mudando para não mudar, ou seguirá autônoma, porém, limitada pela
barbárie que assola o artista.
Blog Furo: Que fé depositar no artista?
CT:
O
que imagino sobre estas tensões é que o artista não pode fazer tudo, mas não
pode se conformar, deve seguir com seu farol e agir sem parcimônia e habilitar-se,
deve não só sentir, mas sem pedir licença, apresentar-se para evitar a queda do
céu, como nos alertou Davi Kopenawa!
Blog Furo: Há uma fascistização da palavra em curso?
CT: Este é um dos assuntos que tenho pensado demais, mas se consideramos que há um movimento social de ‘extrema direita’ na sociedade, é quase que natural que isso ocorra, e é deliberadamente sentido na repetição “da metafísica dos costumes”, o retorno ao passado, em tudo, a família era melhor no passado e etc... – minha impressão é que o neoliberalismo, se antes havia triunfado na economia e na desregulamentação no uso da natureza, por fim, transgrediu o indivíduo e a linguagem, e isto operacionaliza léxicos sociais do poder onde o consumo é a linguagem dos sentidos, claro que isto representa uma crise política estética onde tudo vira caricatura em estado degradante, onde o supérfluo se reconfigura pela padronização do gosto, seja nas amplificações de si para si e do dinheiro que se ganha com isso – como também, se expressa no esvaziamento de que a literatura e a cultura são direitos sociais e devem, ao meu ver, serem reconduzidos ao centro dos nossos dilemas...
Blog
Furo: Queres comentar, mas alguma questão...
CT:
Paro por aqui, com o que diz o poeta Mexicano, Octavio Paz, fiquemos com “as
perturbadoras propriedades das palavras”.
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