sábado, 25 de maio de 2019

Massacre de Eldorado – Estado reconhece a Curva do S como patrimônio histórico e cultural


O reconhecimento ocorre após 23 anos da chacina dos sem terra, num ambiente de avanço das forças mais retrógradas do país


Foto: Sebastião Salgado

No dia 17 de abril de 1996, sob a ordem do médico Almir Gabriel, então governador do estado do Pará pelo PSDB, e do secretário de segurança Paulo Sette Câmara, 155 PMs comandados pelo coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira executaram 19 trabalhadores rurais sem terra ligados ao MST, no lugar denominado de Curva do S, na PA 150 (hoje BR 155), no município de Eldorado do Carajás, sudeste do estado do Pará, Amazônia Oriental.

Lembremos, o crime aconteceu na presidência do professor Fernando Henrique Cardoso. No mesmo ano de outro crime, a privatização da Vale. Crimes precedidos pelo Massacre de Corumbiara, ocorrido também em terras amazônicas, desta feita em Rondônia, em agosto de 1995. Oficialmente, 16 foram os mortos.

No lugar mais violento na peleja pela terra do país, o sudeste e sul do Pará, sangue de camponesas/es e suas/eus apoiadoras/res encharca as terras, os rios e as florestas. São execuções e chacinas marcadas pela lei da impunidade em sua grande maioria.

A morosidade/anuência do estado tem desaguado em outras execuções e chacinas, como a realizada no município de Pau D´arco, no ano de 2017, onde 10 camponeses, sendo sete da mesma família foram assassinados. Aos moldes de Eldorado, tropas da PM com auxílio da Polícia Civil assinam o crime. Nas Amazônias, em solo paraense em particular, um riomar de impunidade a perder de vista sangra o estado.

No caso do Massacre de Eldorado, tiros foram desferidos a queima roupa na cabeça e órgãos vitais, atestou o laudo do IML. A estimativa é que pelo menos 10 sem terra foram executados nestes moldes. Os militares também usaram ferramentas de trabalho dos camponeses – foices e facões- para mutilar os corpos.

Um caminhão fez o translado, que na sede do IML foram espalhados pelo chão e em algumas pedras fúnebres. Não havia pedras para tantos corpos. As fotos são aterradoras. Outro tanto de gente ainda hoje carrega no corpo balas que nunca foram retiradas. No corpo e n´alma, existe mais que balas, cicatrizes e dor, pulsam traumas.
Foto: Sebastião Salgado
Nenhum militar que realizou a operação sem a devida identificação profissional morreu na empreitada, que segundo relato de ativistas, contou com apoio de um consórcio de fazendeiros da região e de estados vizinhos.

O modus operandi do setor, que tem na grilagem o principal expediente para apossamento de terras públicas é conhecido pelo próprio estado. Assim como a realização de lista com preço pela morte/cabeça dos ativistas que ocupam a linha de frente pela defesa da reforma agraria, direitos humanos e o meio ambiente.


E, por defenderem uma modalidade contrária ao uso intensivo dos recursos da floresta [ao menos o que restou dela do processo de integração física da região], tombaram no município de Nova Ipixuna, no dia 24 de maio de 2011 o casal de extrativistas Maria do Espírito Santo e José Cláudio. O extrativista, dias antes havia tornado público as ameaças que vinha sofrendo. O estado nada fez para garantir a segurança do ambientalista.

Foto: Revista Trip

E o já significativo rosário de impunidade da luta pela terra e dignidade em solo amazônico ganhou novas contas e o riomar de tristeza mais lágrimas e indignação.  

A brutalidade do estado projetou o longínquo município de Eldorado do Carajás para o mundo. Tem sido assim ao longo dos séculos a trajetória de saque aos recursos da região, marcada pelo sangue dos que historicamente socializam as tragédias promovidas pelo avanço do grande capital sobre a derradeira fronteira do capitalismo.

Os massacres de Corumbiara e Eldorado representam elementos que colaboraram a partir da tragédia, reconfigurar o território da região. O estado pressionado tanto pelos movimentos sociais nacionais e do mundo, e mesmo pelo grande capital, reconheceu em massa inúmeras áreas ocupadas – algumas com mais de duas décadas de luta – como projetos de assentamentos (PA) da reforma agrária. Até outro dia, eles representavam mais de 50% de todo o território do sudeste e sul paraense.

Por conta das constantes disputas pela terra entre o grande capital, em particular a Vale e seus respectivos empreendimentos, e a precária condição de reprodução da vida em alguns PAs, tudo sofre reconfiguração de forma acelerada, e novos latifúndios acabam por se formar.

Em locus marcado pela disputa pela terra, o subsolo e o que sobrou de floresta e de rios é reconhecida a riqueza mineral em solo que abriga o garimpo de Serra Pelada. Nestas paragens, num piscar de olhos, nada é do jeito que foi há um segundo. Corporações do grande capital, indígenas, camponeses e garimpeiros constam entre os sujeitos que agudizam nas disputas materiais e simbólicas da região.

Nas arenas de disputa, cumpre sublinhar a educação como o campo, - creio eu-, onde se processou de forma mais acentuada a territorialização camponesa. Além de turmas especiais na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), que possui a Faculdade de Educação do Campo, vale realçar de forma contundente o Campus Rural do Instituto Federal do Pará (IFPA).

Este erguido em terra grilada pelo clã mais violento da região, a família Mutran, hoje em par/mancomunada com o “banqueiro” Daniel Dantas.  Alguns grilos foram por ele “adquiridos”.

Um dos castanhais grilados pelos Mutran,  tinha a denominação de fazenda Cabaceiras, após a ocupação realizada pelo MST em 1999,  virou o PA 26 de Março. Ele foi oficializado em dezembro de 2008, após quase uma década de ocupação, várias reintegrações de posse e ações de pistoleiros. 
Foto: reintegração realizada em 1999/J Sobrinho- Correio do Tocantins

A data faz homenagem pela passagem de ano de assassinato dos dirigentes do MST, Onalício Araújo Barros (Fusquinha) e Valentim Serra (Doutor). Eles foram tocaiados por fazendeiros no município de Parauapebas, na fazenda Goiás II.  Como outros crimes contra trabalhadores, permanece impune. 


Parte do território acomoda o IFPA. No antigo grilo, além de hospedar um cemitério clandestino com ossadas de desafetos e camponeses, registrou trabalho escravo e crimes ambientais. Ressignificar tal espaço como um território de educação para filhas e filhos de camponeses, indígenas e quilombolas é de uma força simbólica contagiante.
Foto: Campus IFPA Rural de Marabá-PA/internet

Mas, a força do capital também se faz representar na Unifesspa a partir do Campus II de Marabá, dedicado a engenharias e Geologia. Nele, construído com o apoio da mineradora Vale, predomina a agenda da empresa.

Nesta mesma toada do universo simbólico do Campus Rural do IFPA, o mesmo estado que ordenou a execução dos camponeses em Eldorado do Carajás, reconheceu no dia 22 de maio deste ano, a partir da Lei de nº8.856, o espaço da Curva do S como patrimônio histórico e cultural. Formalmente o projeto foi encaminhado pelo deputado estadual Dirceu Ten Caten (PT). 

O mesmo será destinado a manifestações artísticas e culturais, e assim visa preservar a memória para que novos crimes do mesmo calibre não venham a se repetir. Ironia da vida, o filho de Jader Barbalho, o hoje governador Elder, assina o documento. Veja AQUI

A medida ocorre num contexto marcado pelo avanço dos setores conservadores do país, onde possui certa hegemonia o agrário e o militar – bancada da bala-, que buscam  revisar ou extinguir  o código do desarmamento, normas jurídicas que em certa medida consagraram os direitos das populações originárias, em particular os territórios de indígenas e quilombolas.

Ayala Lindaberth, uma jovem educadora negra e filha de imigrantes, veterana militante do MST, sobre o reconhecimento do estado sobre a Curva do S como espaço para educação e a cultura, avalia que “Já estamos há algum tempo na construção desse reconhecimento da Curva do S como espaço sagrado dos camponeses/as na luta pela terra e pela reforma agrária em um estado e região tão marcados pela violência e pela negação dos direitos humanos, a ter vida feliz e digna”.

A dirigente acredita que os atos políticos, culturais e religiosos que realizam a cada mês de abril na Curva do S se inscrevem no propósito em manter viva e presente a memória dos que tombaram pelo sonho da liberdade da terra e da reforma agrária. “Neste sentido, vejo que o reconhecimento dado pelo estado do Pará é um marco importante, e que será inscrito  no capítulo da  história de 23 anos do massacre de Eldorado do Carajás” arremata a sem terra.

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