Raimundo de Assis é negro. Tem uns 60 anos. Mas, a carapinha ainda não sinaliza a idade física. É dono de riso fácil. Parece religioso. O conheci no bairro da Terra Firme, na noite de sábado, 28 de abril, na porta da igreja Domingos de Gusmão. Fui observar um cortejo cultural que integra o projeto do Museu Paraense Emílio Goeldi em parceria com representações da comunidade, chamado Território da Memória. Assis foi rezar.
A casa religiosa é tutelada pelo pe Bruno, reconhecido pela militância junto a crianças e adolescentes em Belém. A igreja mantém um centro que incentiva o acesso à cultura de crianças e adolescentes no bairro estigmatizado pela violência nos programas policiais de rádio e TV, e no caderno do mesmo gênero dos impressos. No centro da igreja são ofertados cursos de canto, teatro, violão, construção de instrumentos, entre outros.
Assis é migrante do Maranhão. Migrantes compõem 70% da população da Terra Firme. Desse total parte significativa é proveniente do Maranhão. A informação foi repassada durante uma conversa informal, por uma educadora que participou de uma pesquisa da Secretaria Municipal de Educação.
O nosso personagem tem corpo esguio. Fruto da herança genética e do árduo trabalho na roça e em garimpos. Saiu de Bacabal, região central do Maranhão ainda moço. Queixa-se que naquele tempo a atividade na roça era dura, e os dividendos magros. Resolveu aventurar-se nos garimpos de Rondônia, na Amazônia, onde grandes corporações erguem megas hidrelétricas no rio Madeira.
A viagem tem ares de algo épico. A busca por fortuna de forma mágica num lugar distante, assim como os europeus fizeram em tempos remotos. Na busca do Eldorado, Assis chegou a viajar a pé por mais de 15 dias. O maranhense vendeu “os quase nada” que tinha em Bacabal. Separou de uma moça, a qual havia jurado amor eterno.
Um amigo iria com ele. Na hora do “pega pra capar”, ele refugou, conta Assis, que carrega os óculos no bolso da camisa alinhada. Tenho pressa para saber da história. O garimpeiro aposentado pede calma, e ri. A chuva que antecipou o cortejou cultural da Terra Firme nos empurrou para a proteção da porta da igreja. Ali a prosa se desenrolou.
Num trecho da viagem de Assim surge um par. Seguem juntos. O trecho é a pé. Tudo muito difícil, conta o aventureiro. “Não havia abrigo. Uma casa ficava a quilômetros da outra. Tínhamos que pedir socorro para os moradores, e nem todos gostavam da ideia de abrigar gente estranha”, rememora Assis.
O garimpeiro lembra que numa casa morava um casal. O homem é bem desconfiado. Arredio a visitantes. Quando chegaram na casa dos moradores o homem havia ido caçar. A mulher informa que ele não iria permitir que ficassem. A noite se aproxima. O cabra chega em casa com um veado nas costas.
Assis explica a situação. O dono da casa não concorda que fiquem nem nos arredores do sítio. O candidato a garimpeiro oferece serviço de tirar o coro do animal. O dono da casa aceita o desafio. Rápido a dupla tira o coro e faz os cortes no bicho. Ganham uma noite de abrigo. Não havia água.
A fonte ficava um pouco longe. O dono da casa pede que o visitante acompanhe a mulher até o local. No caminho a moça estranha que ele tenha deixado o pouso da dupla de viajante. A dona da casa explica que o homem guarda em uma caixa com dinheiro e vários relógios. Avalia que é de outros passantes.
Noutro dia a dupla segue o rumo. Assis conta que fez dinheiro no rio Madeira num garimpo de cassiterita. “Não tinha de comprar nada. Cheguei. Fiz roçado e comecei a tarefa. Dei sorte e consegui perto de duas tonelada, e enchi um saco de 60 quilos com cruzeiro” narra o viajante.
O ex agricultor recorda que ficou mais de ano sem fazer nada. Apenas gozando a fortuna da sorte em sua terra natal. A torrar os cruzeiros em farras e bem fazeres a antigos amigos. Conta ele que comprava os produtos dos agricultores e os distribuía na cidade.
O afortunado lembra as aventuras amorosas com as estrangeiras na fronteira da Venezuela e Bolívia, e das dificuldades com a língua dos vizinhos. Ele recorda das farras em Santarém e Manaus, nos momentos da viagem de volta a Belém.
Depois do garimpo com cassiterita aventurou-se com o ouro. No caso do ouro ele virou mergulhador. Como mergulhador no rio Madeira quase foi a óbito num acidente. Ele conta que nesse tempo tinha mulher em Belém. Um primo o socorreu. Recebeu os primeiros socorros. Teve uma espécie de apagão após um mergulho. Ficou desacordado.
Quando deu conta estava em Belém. Parte do dinheiro subtraído por um primo em Rondônia, que segundo ele, apostava na morte do parente. O mergulho quase fatal o obrigou a aposentar.
Hoje lamenta ter gasto os recursos do garimpo em farras. A chuva cessa. Muitos jovens estão na igreja. Assis adentra. Eu sigo em busca do local do cortejo. A despedida ocorre respeitosamente. Como se fossemos antigos companheiros de viagem. Uns malungos.
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