sábado, 24 de dezembro de 2011

São Luís - reminiscências de alguns quintais

Joãozinho Trinta pôs o carnaval carioca de pernas para o ar. Passou por várias agremiações até alcançar a glória na Beija Flor de Nilópolis, escola da Baixada Fluminense. Ratos e Urubus Larguem a Minha Fantasia, enredo do ano de 1989 é considerado um dos mais belos e polêmicos. O maranhense atarracado, como boa parte da população do estado com os piores índices sociais do país, passou para outro plano nesta semana (19 de dezembro de 2011).

No Centro de São Luís à Rua Silva Jardim, numa faixa que sinaliza para bairros menos nobres como a Camboa e a Liberdade, residia uma irmã do carnavalesco. João e Reginaldo são sobrinhos do artista. Em tempos de infância a molecada das brincadeiras de pipa e futebol, orgulhava-se em compartilhar dos parentes do Joaozinho. Os sobrinhos ficavam envaidecidos por conta do parente famoso. 
Naquele perímetro da cidade, na confluência da Silva Jardim com a Viração tinha de tudo: médico, desembargador, professor, alfaiate, advogado, enfermeiro, comerciante, sapateiro e motorista. Um território democrático, onde era comum rodas de dominó dos mais velhos na esquina da quitanda de seu Aldem. O barulho incomodava os devotos da novela das oito. Mas, não lembro de alguém reclamar.

Ali entre os mais velhos era comum histórias de antigamente. Mais de uma vez ouvi narrativas sobre os atletas que saíram daquele singelo lugar para ganhar notoriedade no Rio de Janeiro ou em São Paulo. No caso do futebol eles sempre festejavam a habilidade de Canhoteiro que fez sucesso no São Paulo e Porquinho no Vasco da Gama.  
Outros jovens chegaram a passar pelo Flamengo, como Tuna, mas, o provincianismo foi maior, e ele voltou para as partidas de pelada e cachaça. Mais tarde Jorge Cabral foi vice artilheiro do campeonato nacional de futebol de salão. Salve engano foi convidado para defender outras camisas fora do Maranhão. Não sei por que cargas d´água ficou na Ilha, uma cidade que parece engessada no tempo.
Na Viração com a Rua dos Viados (Celso Magalhães) moram irmãs do poeta octogenário Ferreira Gullar. Diz a lenda que todo fim de ano o poeta baixa por lá. Afogados, Sol, Alecrim, Coqueiro são outras ruas das cercanias imortalizadas no Poema Sujo de Gullar.  Ainda na Silva Jardim residiu um dos principais cronistas esportivos do estado, Djard Martins. Pai de vários filhos, uns três com problemas de saúde mental. Frequentavam a APAE. Lembro de Sérgio, doido por futebol, flamenguista roxo.
Era comum os mais jovens insultarem o time para vê-lo fora do eixo. Mauro tinha inclinação para a música e Zinho viciado em refrigerante. Todos desfilavam no bloco de Carnaval Os Tremendões, organizado pelo Médico Afonsinho Aranha, falecido tragicamente. A família era dona de inúmeras boas casas no bairro.
Da Liberdade e da Camboa os menores sabiam da feira e das brincadeiras de carnaval. Tinha a Escola de Samba da Camboa, e na Liberdade o bloco Velhinhos Transviados. Era o melhor na época. Ele e os Tremendões são brincadeiras típicas de São Luís,  tratadas como bloco tradicional.
O contratempo, instrumento de percussão é um tambor grande feito de compensado e coberto com couro de boi.  Só existe por lá. Próximo ao carnaval os ensaios se multiplicam e os blocos ganham as ruas da cidade com a fantasia do carnaval anterior. Recordo as noites de domingo quando as manifestações voltavam extenuadas para as sedes entoando uma canção que desconheço a autoria, cujos versos são: “Quem leva eu\que também quero ir\quando chego na ladeira\tenho medo de cair\quem leva eu?” Havia uma certa melancolia no ar....
Naquela mesma parte da cidade o poeta Nauro Machado morava numa casa de vasto quintal. Ali a garotada surrupiava as frutas. Entre elas o cajá. Nauro é branco e alto e nunca tira a barba. O poeta já foi traduzido para vários idiomas. Até outro dia era fácil flagrar o mesmo embriagado no Mercado das Tulhas, onde em dias remotos escravos eram comercializados.  O Maranhão é o terceiro estado em população de matriz afro. No carnaval e nos festejos juninos a cidade é tomada por manifestações culturais desta matriz.

Na roda de dominó soube que os caras mais habilidosos em briga de rua daquela parte da cidade eram Gato Branco e Xerife ou Cheris Boy. O último, além de bom de briga era excelente motorista e mecânico. Mas, perdeu para a cachaça uma vida menos marcada pela privação. Morava na Quinta do Macacão, que veio a ser desapropriada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Com a grana comprou um táxi.

No entanto, torrou mesmo a parte que lhe coube com os moleques da rua. Ele era uma espécie de Madame Satã do trecho, só não fazia performance como o marginal fluminense. Xerife morreu de tanto beber pinga. Os moradores o acudiam com alimentação e vestes.  O boteco do Zé Escangalhado socorria a ele e outros pés inchados com a branquinha.  Ali também ocorriam rodas de samba.

A Quinta do Macacão, diz a lenda, era de propriedade de uma mulher chamada Ana Jansem (Donana). Era senhora de escravos. No poço da quinta, contam os moradores antigos, Donana sacrificava os escravos que ela usava para deleites sexuais. Há na cidade uma lenda urbana que diz que a carruagem com cavalos sem cabeça, arrastando correntes, rasga os paralelepípedos em noites escuras.
Camboa. O bairro é bem sonoro. A família Fontoura colecionava vários músicos, inclusive uma professora de piano. Um tocava cavaquinho, outo violão, tinha bandolinista e o patriarca tocava sopro. A rua estreita se enchia nas manhãs de domingo com os saraus da família que veio do interior.  Da Liberdade os tambores das macumbas e dos bois de zabumba encharcavam os nossos ouvidos. Além dos motores dos barcos. Sem falar nas festas dos salões dos reggaes.
  
Ainda os malandros. Albano era de outra geração. Cheguei a jogar futebol com ele sob a ponte da Camboa, que é batizada com o nome de outro poeta que também morou no bairro, Bandeira Tribuzzi. O filho de portugueses morava defronte à casa de Nauro Machado.  Albano além de bom de briga era exímio percussionista, defendia um troco desafiando outros malandros e taxistas no carteado e nas mesas de bilhar. Chegou a matar um cara com uma peixeirada numa dessas disputas.
Além de carteado e bilhar jogava dados com os taxistas do ponto da Praça Deodoro, próximo ao Liceu Maranhense. No Liceu estudaram a filha do maior cacique político do estado, a hoje governadora, Roseana Sarney, Alcione (a sambista) e o poeta César Teixeira.   Ao contrário dos primeiros, Teixeira, autor de celebres sambas da Turma do Quinto, escola de samba do boêmio bairro da Madre Deus, é um outsider. É militante dos direitos humanos no estado e nunca abandonou a trincheira dos movimentos sociais. Constitui uma espécie de reserva moral.
Perto da casa onde fui criado, havia uma pequena praça, nomeada Odorico Mendes. Nela a gente jogava bola entre estátuas e árvores.  Ali um dia o bar Etc e Tal aglutinava artistas de todas as estirpes. Zeca Baleiro não morava no trecho, mas, era habitue do recinto. O pai do Zeca, no pequeno espaço do Centro Histórico de São Luís comercializava serviços de enfermeiro e uma cachaça. Cheguei a comprar uma garrafa e levar para Marabá, sudeste do Pará, onde morei por uns tempos.  Quando anunciei do que se tratava, foi um tapa.

Na Praça Deodoro fica a Biblioteca Pública e a do Sesc. Ali fui socorrido com boa literatura. Lembro bem de Antero de Quental. Entre as narrativas das mesas de dominó, e os vai e vens das bibliotecas, as canções dos bois bumbás, macumba e outras canções cá estou amalgamado. A sangrar reminiscências da Beira Mar, da Praça Gonçalves Dias...A saudade parece sem cura. .. neste natal a ceia será só....aqui em Belém...

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