Nota pública do Programa de
Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (PPGAA/UFPA) e do Programa de
Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS)
“As árvores são nossas irmãs” (Zé Cláudio)
A área do Projeto Agroextrativista (PAE) Praia Alta Piranheira foi um
maciço castanhal que só os moradores mais antigos conheceram. O castanhal foi
explorado durante muito tempo por uma família de Marabá, que se dizia “dona”, e
por centenas de famílias que coletavam livremente os produtos generosamente
cedidos pela natureza. Além da castanha, eram e ainda são facilmente
encontrados na floresta do PAE produtos como açaí, andiroba, cupuaçu,
diferentes tipos de cipós, ervas medicinais e muitas espécies madeireiras de alto
valor econômico.
Na década de 1990, um grupo de famílias apoiado por organizações não
governamentais e governamentais deu início à solicitação de criação do PAE
Praia Alta Piranheira. Entre essas famílias encontravam-se JOSÉ CLÁUDIO RIBEIRO DA SILVA (Zé Cláudio) e sua esposa MARIA DO ESPÍRITO SANTO SILVA (D.
Maria). Zé Claudio e D. Maria eram os mais fervorosos defensores da criação do
PAE por acreditarem na possibilidade de se estabelecer uma relação diferente
com a natureza. Finalmente criado em 1997, o PAE abrigava mais de 300 famílias
de agricultores que se propunham a explorar a natureza de uma forma distinta da
comumente adotada na região.
Zé Claudio e D. Maria exercitaram essa nova proposta ao extremo: transformaram
seu lote em um laboratório de experiências que demonstrava uma convivência mais
harmoniosa entre homem e natureza e, mais que isso, acabaram se tornando
sentinelas da preservação e transformando seu espaço de vida em uma zona de
resistência ao desmatamento. Com quase 15 anos vivendo no mesmo lugar, o casal
mantinha 80% do seu lote preservado. Essa façanha era motivo de orgulho para Zé
Claudio e D. Maria. Por essa peculiaridade, em uma região onde predomina o
desmatamento, não demorou muito para que o lote de Zé Claudio e D. Maria
chamasse atenção de pesquisadores, da mídia, além de servir de estímulo e
exemplo para centenas de famílias de agricultores que intercambiavam
conhecimentos com o casal.
Na busca de comprovações na linguagem acadêmica de que, além do valor
cultural, a floresta em pé é mais valiosa economicamente que em toras, Zé
Claudio e D. Maria se aliaram com os pesquisadores. A Universidade Federal do
Pará (em especial as ações do Campus Universitário de Marabá e do Núcleo de
Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural) apoiou e ampliou cooperações
científicas (nacionais e internacionais) com a participação dessas lideranças,
que muito contribuíram com ações concretas na busca de alternativas
sustentáveis de combate ao desmatamento.
No início deste ano, Dona Maria defendeu sua monografia e obteve seu
diploma de graduação no curso de Pedagogia do Campo, assim como vários
assentados e lideranças que acessam com frequência os espaços da UFPA e de
outras instituições de pesquisa. O filho caçula do casal cursa atualmente o
ensino médio no Instituto Federal do Pará/Campus Rural de Marabá (IFPA/CRMB),
concebido especialmente para grupos sociais no campo. Esta família é um exemplo
de busca e implementação de políticas públicas que realmente valorizem as
demandas dos camponeses que habitam neste complexo espaço agrário marcado pela deficiente
ação do Estado brasileiro.
Porém, a presença de espécies de alto valor comercial na área do PAE atraía
outros interesses. Madeireiros e carvoeiros lançaram uma ofensiva forte sobre
as famílias. Num contexto de dificuldades econômicas, muitas cederam ao conto
do lucro fácil, o que facilitava a ação ilegal desses exploradores da floresta.
Protegidos pela ineficiência do Estado em fazer cumprir a lei ambiental, esses
agentes circulam livremente no PAE, consumindo a floresta numa velocidade
estonteante. Até a castanheira, árvore protegida por lei, é derrubada sem
piedade e sua madeira “maquiada” e colocada no mercado com outros nomes.
A preocupação de Zé Claudio e D. Maria com a preservação da cobertura
vegetal extrapolava o seu próprio lote e se estendia a todo o PAE. Foi exatamente
essa preocupação que os levou a denunciar a exploração ilegal de madeira dentro
do PAE. Órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Policia Federal receberam
inúmeras denúncias formuladas pelo casal. Sem nenhuma resposta efetiva por
parte desses órgãos, assumiram a responsabilidade como cidadãos e assentados e
passaram a tomar iniciativas de ação direta, interditando estradas, parando
caminhões carregados com toras de madeira, anotando as placas, sem medir
esforços em defesa das árvores.
Essa atitude corajosa do casal, motivada por um sentimento nobre e de
coerência com seus princípios, despertou a ira dos madeireiros, carvoeiros e
alguns fazendeiros com interesse nas áreas do PAE. Zé Claudio e D. Maria
passaram a sofrer ameaças por defenderem a floresta em pé. Na verdade, eles
tentavam fazer o que de direito seria dever do Estado: proibir a exploração ilegal
de madeira conforme reza a lei. Sem o apoio do Estado, Zé Claudio e D. Maria
defendiam a floresta com a própria vida e tinham consciência do que faziam. Em
2010, em um evento na cidade de Manaus, Zé Claudio disse: “Eu defendo a
floresta e seus habitantes em pé, mas devido a esse meu trabalho sou ameaçado
de morte pelos empresários da madeira, que não querem ver a floresta em pé”.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) já havia denunciado as ameaças
sofridas pelo casal. Zé Claudio e D. Maria faziam parte da lista de 29 pessoas
marcadas para morrer no Pará, divulgada pela CPT em 2010. Que sociedade é essa?
Uma sociedade na qual as mortes são anunciadas com bastante antecedência e as
autoridades não tomam providências! Uma sociedade onde os valores se inverteram.
Quem defende a vida, paga com a morte! Quem se preocupa com o bem comum é
eliminado para desobstruir o caminho do lucro fácil!
No dia 24 de maio de 2011, em uma tocaia armada por “pistoleiros”,
escondidos em uma estrada que Zé Claudio e D. Maria usavam no trajeto entre seu
lote e a cidade de Nova Ipixuna, foram desferidos os disparos mortais contra o
casal. Não satisfeitos com a crueldade praticada, ainda deceparam a orelha de
Zé Claudio, provavelmente para servir de prova da encomenda realizada. Essa infâmia,
muito comum no período do coronelismo no nordeste brasileiro, é agora reeditada
na Amazônia. Dias antes, a casa do Zé Claudio e D. Maria havia sido rondada por
pistoleiros e alguns de seus animais domésticos foram alvejados. No dia do
assassinato, Zé Claudio e D. Maria estavam saindo de sua casa para procurar
segurança na cidade, dado que, aparentemente, o Estado era incapaz de fornecer
segurança. Infelizmente, não tiveram tempo de chegar a um lugar seguro.
E, desta forma, o Ano Internacional da Floresta segue marcado por
injustiças, impunidades, descasos com as pessoas, suas escolhas e seus
direitos. Exigimos que o governo brasileiro não deixe que Zé Cláudio e D. Maria
sejam apenas mártires, como tantos outros produzidos na Amazônia, e muitos
menos que sejam uma mera estatística criminal. Para se ter a Democracia, certamente
precisamos de códigos e leis. E, certamente, o debate democrático acerca dos
mesmos é necessário. No entanto, sabemos que não existe Democracia quando o
direito de matar aqueles que contestam o poder dominante é assegurado pela complacência
à violação do direito fundamental à vida. A Amazônia e os “povos da floresta”
não necessitam de mais mártires, mas de pessoas vivas, comprometidas e éticas,
que os mantenham. Eles não necessitam de mais violência. Eles têm o direito –
constitucional – a dignidade, liberdade de expressão, autonomia e exercício da
cidadania.
Em qualquer lugar, e no Brasil que se diz uma Democracia, não é
admissível que pessoas possam ser assassinadas pela divergência ao poder
corrente e pelo exercício de seus direitos. Não é possível haver “dois Estados”
e “duas leis” em um só país, afinal, uma lei que vale apenas para alguns, não é
lei.
Os assassinatos de José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito
Santo da Silva não são ocorrências individuais, são um problema nosso, de toda
a sociedade brasileira. Precisamos reagir.
Reagimos porque acreditamos que podemos contribuir, interrogando sobre
os conceitos que fundam a interpretação dos conflitos na Amazônia e permeiam as
políticas públicas brasileiras de desenvolvimento.
Reagimos porque não é possível admitir a
violência como instrumento de regulação social. Reafirmamos aqui nosso
compromisso de lutar com as nossas armas: documentando, refletindo e oferecendo
à sociedade interpretações sobre esse fenômeno sociopolítico que acompanha o
“desenvolvimento sustentável” na Amazônia: a morte anunciada dos defensores da floresta.
“Matar árvores é assassinato” (Zé
Claudio)
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