quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O esporão de arraia no pé de Arigó é o calcanhar de Aquiles da nossa terra?

 

Orla de Santarém/PA - Porto da Cargil - barcos do lugar..barcos de além rio-mar..

Faz dois meses que Arigó luta com uma ferida no pé esquerdo, na altura do tornozelo. Esporão de arraia o feriu ao afrontar o rio Tapajós. Em tempo de seca do rio é necessário cuidado. É comum as arraias nas beiras.

Os antigos ensinam que é necessário zelo no caminhar, e, é aconselhado arrastar os pés nos beirais dos rios. Desta forma, ao se deparar com o animal, ele segue em fuga e não ataca o estranho visitante de sua morada. A tática reside em não pisar o bicho.

A dor é insuportável, contam os agraciados com o esporão. Falam que dura mais de 24h. Arigó lembra que um colega faz um mês que não consegue se locomover. Pelo fato do amigo não poder se deslocar, o cabra sente-se feliz em poder andar, mas, tá aperreado com a demora na cura da ferida.

O machucado resulta de uma pescaria em praia de Belterra, no Baixo Amazonas. O negro atarracado, de uns sessenta verões é uma espécie de “faz-tudo” de um prédio recém erguido nas proximidades do Mercadão 2000, em Santarém.

Arigó acompanhou um estranho em praia de Belterra, quebrada que ele, apesar de nativo, filho de um cearense com uma caboca do Pará, desconhecia.

Em Belterra, lá no comezinho do século passado, o multimilionário Ford intentou o monocultivo de seringueira. Neste período abundava a migração de nordestinos para a Amazônia. Processo animado pelo governo Vargas.  

Ainda hoje é possível notar resquícios do monocultivo e do maquinário da época. E muita gente a lembrar a história.  Prosa  para muitas garrafas de café.

No prédio do patrão Arigó faz tudo. Mostra os apartamentos vazios a pretensos futuros inquilinos. São quatro andares. Tudo sem elevador.  O homem zela pela limpeza, carrega pacotes e malas de moradores/as.

No dia em que fomos conhecer um apartamento de vista para o rio, uma senhora parecia se deslocar em férias rumo às praias da região.  A senhora branca, portadora de vitiligo, trajava bermuda, chapéu para se proteger de um sol inclemente e óculos escuros.

O negro a ajudou na empreita em descer as malas e sacolas até o portão. No calor do momento não havia reparado para a distinção de classe. Ao papel em condição de subalternização do senhor.

Somente depois, ao retomar a leitura do premiado livro Torto Arado, do geógrafo baiano Itamar Vieira Junior, bem como as lembranças de obras de Dalcídio Jurandir, a situação clareou.

Soma-se ao quadro, o episódio ocorrido em Minas Gerais, aquele em que um professor manteve por longos anos uma senhora negra em condição análoga à escravidão.  Recordei ainda casos de trabalho escravidão na cadeia da produção do açaí no Marajó e em fazendas e carvoarias do sul e sudeste do Pará.  

Não sei exatamente ser esse o caso de Arigó. Ele porta boné, chinelos, camisa e bermudas simples. Tudo desprovido de grife. Tudo adquirido ali mesmo pelos arredores do Mercadão. Tem a fala mansa e pausada. Faz as coisas sem a agonia das horas dos grandes centros. Tem a pressa do balanço das redes ribeirinhas, do navegar de antigas embarcações da região.

Arigó é uma demonização pejorativa dada aos migrantes nordestinos por estas paragens, em particular o cearense. O termo invoca pouca sabença, leseira, matutice, bocó, etc.

Ao contrário do termo desqualificador, na orla da cidade, eles hegemonizam o comercio de varejo. Aquele que vende de tudo: tralha de pesca, panos, roupas, redes, eletrônicos importados da China. E, alguns, militam ainda na agiotagem.  A pratica por aqui mata. Mata quem deve, e também o “emprestador”. Por estas paragens morre o bravo,  morre o manso.

Na cidade os arigós são respeitados pelo apego ao trabalho. Sempre abrem os comércios independentes de feriados pátrios ou religiosos. Mesmo agora, quando do nascimento do filho do Deus, ou do primeiro dia do ano.

Assim como o restante da cidade, a orla passa por profundas modificações. A cidade se verticaliza a olhos vistos. A especulação imobiliária desfila com a desenvoltura de um rinoceronte.

E, em terra de arraias, botos e cuias, até delegado grila e especula, favorece garimpo, e prende quem da floresta intenta cuidar.  

 

Ao largo do rio, o barco segue....Amazonas....Tapajós...Arapiuns....

 

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