terça-feira, 11 de agosto de 2020

Baixo Amazonas: territórios em conflitos

 As tensões nas aldeias do Povo Munduruku em Jacareacanga por conta da atividade de garimpeiros é uma das muitas situações de conflitos no Baixo Amazonas e vizinhança

Porto da Cargil - Santarém/PA

Porto da Cargil - Santarém/PA

A Amazônia é dos capítulos mais expressivos no pacote de morte e desastre que representa o governo federal para o país, a despeito de um discurso patriota inclassificável, que prima em celebrar o 4 de julho em embaixada estadunidense. Parada de família.

No rosário de bizarrices, a reunião do dia 22 de abril merece destaque, onde o discurso da pessoa que ocupa a cadeira do Ministério do Ambiente é uma espécie de síntese sobre o ponto de vista do governo sobre a região: “precisamos passar a boiada e revisar as normativas enquanto a mídia só fala de pandemia”.  Tem expertise para a missão, fez isso em São Paulo para favorecer incorporadoras.

Mesmo antes de ter vencido a eleição, o sinistro da República já havia declarado em alto e bom som que indígenas e quilombolas não teriam vez em seu governo. A promessa tem sido cumprida com louvor, e a bandeira do racismo, que evidencia o padrão estruturante de poder na sociedade nacional, é hasteada no ponto mais elevado em local de destaque no detrito federal.

Corte de recursos, desautorização de ações de equipes de instituições do cordão de proteção aos povos indígenas, quilombolas e outras categorias que fazem parte da sociodiversidade da Amazônia, nomeação de pessoas desprovidas de qualificação para cargos estratégicos – quando não militares – constam no alguidar de maldades, nas ações de ódio contra o diferente.

A nomeação de gente do quilate de Sérgio Camargo para a coordenação da Fundação Palmares – uma pessoa que nega o racismo no país – noutro extremo um representante da milícia ruralista - ex diretor da União Democrática Ruralista (UDR) - para dirigir assuntos fundiários, Nabhan Garcia, são atos que representam a abertura da porteira para toda ordem de abusos e de licença para matar. As nomeações representam no mínimo, um desvio de função, que o diga o titular da pasta da Saúde, uma verdadeira hecatombe.

No conjunto de abusos vale sublinhar o “Dia do Fogo” organizado por ruralistas em Novo Progresso, e a prisão de jovens brigadistas em Santarém, além da apreensão de equipamentos e documentos da ONG Saúde e Alegria. Fatos ocorridos no Baixo Amazonas, prestes a somar o primeiro ano.

Em dias recentes registra-se ainda a sinalização em defesa de garimpos ilegais em terras indígenas, e a indignação do Planalto pelos setores de fiscalização cumprirem a sua missão e atearem fogo no maquinário ilegal.

No rosário de desgraças tem-se ainda o crescimento exponencial dos indicadores de desmatamento, o congelamento de reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas, um pacote de medidas revisionistas que asseguram parcamente tais territórios na Cf de 1988.

Soma-se ainda ao triste quadro da conjuntura atual, a demissão de pesquisadores do INPA, a elevação de assassinatos contra indígenas, bem como incremento das situações de conflitos que mobiliza um complexo xadrez de sujeitos, são alguns dos desdobramentos da opção governista. Soma-se ao quadro um cenário de total esvaziamento de debates dos fóruns sobre a Amazônia e de qualquer política que respeite as populações locais, historicamente violentadas pelo poder do capital sobre os seus territórios.

Neste verdadeiro campo minado de territórios em conflitos, na cidade de Jacarecanga, no Baixo Amazonas do Pará, no microcosmo do povo Munduruku, temos um espelho da complexidade das disputas intra indígenas e a sociedade envolvente, onde constam garimpeiros, grileiros de terras, ambientalistas, missionários neopentecostais e o Estado, representado tanto pelo poder municipal, como a Funai, numa refrega sobre garimpo que já contabiliza algumas décadas nos territórios indígena (TIs) Munduruku e Sai Cinza.

O território que o grande capital alcança, nele germina o conflito, assim como a expropriação, a divisão da comunidade, o rompimento de laços de amizade, solidariedade, o ocaso de ações comunais. Assim como em Jacareacanga, a realidade similar ocorreu/e em Altamira, por conta da hidroelétrica de Belo Monte, e na região em Carajás por conta da expansão da cadeia de mineração.

A criação de novos aldeamentos por conta de disputas entre os indígenas por parcas compensações do processo de expansão do capital é um dos fenômenos verificado em Altamira e em Carajás. Tem-se ainda o alcoolismo dentre tantas mazelas resultante do processo das tensões territoriais.  No caso de Jacareacanga, por conta do garimpo ilegal, provocou um racha entre os indígenas. 

O grupo contrário a presença garimpeira em território Munduruku em nota sobre as situações de tensões argumenta que, “O povo Munduruku não aceita o desmatamento na Amazônia, rios sujos jamais, choramos muito por perdas que são recentes, dois líderes que nos deixaram, o garimpo invadiu as nossas casas, o nosso lar de sobrevivência, trouxe a desunião, drogas que viciaram os nossos futuros jovens Munduruku, é difícil pescar e caçar devido ao aumento do garimpo em nossa região”.

A nota assinada pelas representações indígenas Movimento Munduruku Iperegayu em Ação, Associação das Mulheres Wakoborûn, Coiab e Apib, entre outras, resulta de uma medida tomada por um grupo de indígenas que foi a Brasília defender o garimpo em seu território, e atropelando as representações do povo Munduruku. A ação teve a acolhida do general Mourão, vice presidente, que tal a facção de indígenas garimpeiros, não reconhece as instâncias de organização da aldeia em Jacareacanga.  

“A narrativa que o governo tenta criar é que são os indígenas os interessados na liberação da mineração em suas terras” reflete a antropóloga Luísa Molina. No entanto, para além das interesses, existe um poderoso lobby de grandes corporações.

O Ministério Público Federal (MPF) tem tentado atuar contra a ação dos garimpos ilegais em unidades de conservação e em territórios indígenas, no entanto esbarra na omissão do governo federal. Estima-se que a operação ilegal dos garimpos mobilize por ano entre 4,5 a 5 bilhões.  Leia o documento AQUI

Arco Norte – E, nada é tão ruim que possa ficar pior.  Um conjunto de umas 33 unidades de conservação, inúmeros territórios indígenas, outro tanto de territórios quilombolas, várias modalidades de projetos de assentamentos da reforma agrária, que conformam a representação territorial da região estão em xeque por conta da agenda de desenvolvimento pautada a partir do Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENIDs) sistematizados no projeto Arco Norte, com âncora num projeto em escala continental do projeto Iniciativa de Integração de Infraestrutura da América do Sul (IIRSA).

Como ocorrido nos anos de 1980, quando o Programa Grande Carajás reconfigurou as feições territoriais no estado e outros vizinhos, o Arco Norte, deve encarnar ao equivalente no século XXI a partir de um pacote de obras de infraestrutura, onde são consideradas prioridades a construção de um modal de transporte (rodovia, hidrovia e ferrovia), grandes e pequenas centrais hidroelétricas, complexos portuários, estações de transbordo com vistas a dinamizar corredores de circulações de commodities, grãos e minério em particular.

O caso de Jacareacanga não deve analisado de forma isolada. Ele faz parte de pacote que semeia situações de conflitos em vários territórios da região. Em Santarém, na comunidade de Lago Grande, a Alcoa almeja minerar, ainda no município o capital corrompeu o legislativo e executivo no processo de revisão do Plano Diretor da cidade, e ao contrário da decisão da assembleia do processo de revisão do plano, os poderes votaram pela construção de um complexo portuário na área de várzea do Lago do Maicá.

Ainda em Santarém é sabido e conhecido de todos a exploração ilegal de madeira na região do rio Arapiuns, a mesma “tradição” ocorre na rodovia Transuruará, que liga Uruará a Santarém.  A rodovia é uma verdadeira Disneylândia da exploração ilegal de madeira.

A mesma ação do capital em processo de revisão do plano diretor já havia ocorrido no município de Itaituba, onde as grandes corporações revisaram o plano diretor a partir da angulação de seus interesses, e assim, converteram espaços não mercantilizados ao sistema da economia mundial.

No município vizinho a Santarém, em Rurópolis, pretende-se a construção além de estações de transbordo da cadeia do escoamento do grão produzido no Brasil Central, planeja-se a edificação de um conjunto de Pequenas Centrais Hidroelétrica (PCHs). A opção por PCHs representa uma estratégia em driblar o processo de licenciamento ambiental.  

Situação equivalente marca os dias das populações tradicionais em Oriximiná, cidade fortemente marcada pela presença de remanescentes de quilombos, e que desde os anos 1980 convive com as chagas da mineração, e nos dias atuais, vive sob a ameaça da expansão da atividade e da construção de hidroelétricas.

O Baixo Amazonas, acredito, por conta deste mal traçado cenário de tensões aqui esboçado, pode materializar o que foi a região de Carajás anos de 1980, um campo minado de situações de conflitos, pilhagem, execuções de dirigentes, assessores, simpatizantes e pesquisadores.

 

 

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