O dito mundo culto compreende o trecho como um espaço entre dois
pontos no tempo e no espaço. Triste ortodoxia. Todavia, no vasto universo
amazônico, o trecho é o horizonte do despossuído. O não lugar. A vida em
movimento. Mutação.
O trecho não é mãe. Nem pai. Soa mais como incerteza. Um penhasco
desconhecido ao peão. Elevado trapézio do circo da vida, sem rede ou equipe de
socorro. Socorro!!! Não entendo nada. Um rio raso para toda dor que há no mundo.
Um rio fundo. Vastidão de violência em combustão. Fronteira capital em
acumulação primitiva. Armadilha para animal.
O trecho é bruto. Encruza de estranhos. Mundo de desconfiados,
ornado de solidariedade e traição. Vida em farrapos nos confins do humano
conservado em calda de álcool. No
trecho, logo cedo, o primeiro carinho é dado pelo beiço da morte em cama de
pensão entupida de pulgas.
O trecho, paixão. Desassossego. Privação. Privado de tudo, resta o peito
mudo. Privado de tudo, resta a gota de suor a infernizar o olho cego. No
trecho, ao que se agarrar senão à esperança?
Os desencontros constituem a família nas andanças do trecho. A
boroca é a mala que acomoda tudo que a pobreza permitiu acumular durante toda
uma jornada de errância. Passo em falso sobre mar em chamas. Lonjuras de tudo.
Tudo que queria era tirar você deste lugar. Carregar tu para o Círio
em Belém, ou delírios em Macapá. Amor sobre a mesa de bilhar. Riqueza ligeira
em garimpo da Guiana Francesa, mon amour.
No trecho, a dor não possui fronteira. Amor de peão desconhece
barreira. No toca fita do carro, uma canção me faz lembrar você. Acendo mais um
cigarro, driblo a rua da delegacia de polícia, esbarro no puteiro.
Barracão de zinco. Barracão
prisão. Escravo por dívida não tem salvação. Escorre água. Escorre sangue em um
banquete de ossos. Bem sabe quem fez a seringa sangrar ou catou ouriço de
castanha em Marabá.
Tudo tarda. A sorte escapa.
Menino sem calça, bainha sem faca na forquinha do somehome ou no cogó da
onça em quatro bocas com fome. Trecho, seria uma masmorra sem cela?
O trecho não é mãe, nem pai. Menos ainda um amor ou parente
distante...um rio raso. Um rio fundo...abismo de rosas em riomar de tempestades.
Anotações realizadas entre Alenquer e Santarém. Choro sufocado pela fome em
amar.
O trecho é o lugar onde a vida encarna o que é possível. Retalhos
de gentes despedaçadas no caminho. Juntadas no caminho. Separadas...O trecho
devora o humano. Mói, mastiga, judia, maltrata, cospe e descarta. Peixeira
cravada em bucho de criança na Sexta-Feira Santa.
Trecho. Trincheira. Sem terra, sem lar, sem família...errante
desposado pelo álcool e drogas em alguidar, onde a rede acomoda o corpo sem
vida, e o rosto da morte não usa véu.
No trecho, morre-se de trairagem, vingança, desamor, bala e
malária. A cova não é funda em terra medida. Terra que querias ver dividida.
A educadora Rose Bezerra, peã do trecho desde tenra idade, assim, o
espelha: “Trecho é mais sobre o presente. O passado guardado apenas na memória
revivida nos detalhes soltos do caminho... o futuro é só esperança. Qualquer
lugar, torna-se lugar...
Existirá vida para além da terceira margem do rio?
O trecho, afinal, afinal, afinal.......o que seria?
*O esboço do texto foi gerado na madrugada do dia 06 de julho de
2023, em travessia de rio entre Alenquer-Santarém/PA. Para a presente versão contou com as
observações da educadora e peã do trecho Rose Bezerra.