Diário de Bordo: Santarém. Madrugada do dia 18. Docinho (Thulla Esteves) e eu seguiremos para Marabá com a missão em organizar um apanhamento de coisas da antiga casa. Carregar somente o necessário. 1.200km separam as duas cidades polos de regiões estratégicas, o oeste e o sudeste. 24h é a estimativa de duração da viagem. No meio do caminho existe Altamira, sudoeste, sob a influência do Xingu, enquanto as anteriores respiram o Amazonas e o Araguaia-Tocantins. O rio é a vida do lugar.
Domingo. Férias das crianças. Quase 5h. Verão. O clima é abafado. As águas do Tapajós recuaram. As bombas colocadas na orla com a missão de drenar as águas já foram retiradas. 24h de viagem pela Transamazônica. A rodoviária é precária. Assim como os locais de parada para refeição e café. Eu e Docinho unidos na poeira da estrada. Nestes dias o preço da passagem de avião é impraticável para a realidade do orçamento de professores. Santarém, Baixo Amazonas. Há vestígios da presença humana com mais de 11 mil anos. A intenção do grande capital é consolidar a região como um grande corredor de exportação de produtos primários. Complexos portuários, hidroelétricas, modal de transporte (rodovia, hidrovia e ferrovia) constam nos planos. Planos e mapas que apagam as presenças de uma sociodiversidade estonteante.
O café ocorreu as 7h no km 140. Pão de queijo e
pingado (café com leite). O pão de
queijo nas bandas de cá possui outro calibre. É maior e massudo. Dois pães e você
praticamente entope o bucho por boas horas. A empresa Ouro e Prata faz o corre.
Estranhamente a lotação não tá completa. Ouro e Prata soa emblemático em área
de garimpo, a exemplo de cidades como Moraes de Almeida, Jacareacanga e
Itaituba. Vez em quando nova pesquisa sobre a presença de mercúrio no rio
Tapajós é anunciada. O mercúrio é usado nos garimpos. Três horas separam
Santarém de Rurópolis. Uma espécie de entrocamento de quem vem ou vai para as cidades com forte incidência de
garimpo. É uma bagaceira. Gente cheia de malas e pacotes. Fora os
barrigudinhos. Mês de férias das crianças. Abraços de despedida. Vai com Deus aos montes. O busão lotou. Até aqui existe asfalto. Muita gente sem máscara.
Funcionários da empresa e passageiros. O
motora implica com uma jovem que carrega um pequeno cão. Ameaça levar o bicho
para o bagageiro. Faz sol. Não avistei as meninas do garimpo. Em Rurópolis
a empresa francesa Dryfus almeja erguer uma estação de transbordo de soja. Um
outro grupo a instalação de um complexo de Pequenas Centrais Hidroelétricas
(PCHs). Fazer pequenas PCHs é um drible
no licenciamento ambiental. Grandes obras promovem a expropriação das
comunidades locais.
Antigamente era a Transbrasiliana que fazia o
trecho nas quebradas. No século passado
era permitido fumar. E até carregar pequenos animais. Tipo galinha, pato e
porco. Viajar na empresa significava aventura garantida. No busão que contava
com ar condicionado, era a primeira coisa a quebrar. Em seguida pneu estourava, e outras coisas desmantelavam. O busão parava mais que bicicleta de padeiro. As
encruzas da vida. A gente se perde. A gente se acha. Na encruza deparei com
Docinho. Ela do Sudeste, eu do cangaço. Temperos distintos na panela do
diabo.
Segue o busão. Poeira. A estrada acidentada faz
as vidraças tilintarem. Uma sinfonia. Uruará. Cidade imortalizada pelo tráfico
de madeira. Existe um atalho que reduz a distância até Santarém em uns cem
quilômetros e pouco. É a Transuruará. É nela que o bicho pega. Quando os órgãos
públicos de fiscalização contavam com recursos e gente era comum operações de
apreensão de madeira. Anos atrás fizemos o trajeto durante a noite. Entramos na
trilha as 19h em trajeto Marabá-Santarém. Ainda era o período de disciplinas da
pós. Gleice, Nete e Cleide completavam a trupe. Risco nas alturas. No caminho, forquilhas. Erramos umas três
vezes. Nada de energia elétrica. Menos ainda sinal de internet. Determinado momento
o pánico era tamanho que o medo sufocou a necessidade em urinar. Aportamos na
estrada de Curuá Una umas 2h da manhã. Tudo fechado. Única pizzaria em frente a uma casa de música
sertaneja resistia. Até que tentamos comer, todavia, não foi possível. Por preguiça
em tirar as malas empoeiradas e um estresse de viagem, resolvemos em seguir a
trilha do tráfico de madeira. Crime que até as pulgas dos cães mais sardentos
de toda a região conhecem. Na trilha do
saque, gente com motosserra, caminhões cavalo do cão. Tais caminhões ganharam o
apelido pelo fato de não contarem com a boleia tradicional. É o moto somente e
a carroceria improvisada. No busão, um pioneiro narra as tramas de esquiva do
Ibama. Um ipê vendido a R$1200. Pavulagens de pesca, mulherada. Rios Iriri e
Curuá.
Alcançamos Altamira. A cobertura de internet
não cobre todo o trecho. Todavia, por todo o percurso existe pinguela. Trata-se
de uma ponte de madeira. Ela fica sobre córregos, igarapés e rios. Onde existe
água há buritizeiros, açaiçais, ingazeiras. Aves, peixes e outros bichos.
Veredas. Rosa. Guimarães. Corremos Placas, Medicilândia e Brasil Novo. As
derradeiras cidades possuem relação com a ditadura. Medicilândia faz referência
ao mais sangrento ditador, enquanto Brasil Novo representa uma loa ao desenvolvimentismo.
Assim como Novo Progresso. Entre Placas até Anapu o cacau abunda. Superou a
Bahia. Nestes trechos tombaram Avelino (Santarém) nos anos de 80, Dema
(Altamira), Brasília (Castelo dos Sonhos). Todos dirigentes sindicais. Dorothy Stang tombou em Anapu. Aonde o capital
senta praça instala-se a violência. Altamira abriga Belo Monte. Trambolho
idealizado na ditadura e viabilizado no governo do PT. Velhas raposas no rolo:
Delfim, Lobão....grandes empreiteiras. A corrupção vem de longe. Tempos dos generais.
Faz calor. O ar condicionado do busão sai vencido do combate. O busão lembra um
micro ondas. Até Altamira tudo é poeira. Metade da viagem. Sabe Deus onde será
o jantar.
Anapu.
Parada para a janta e verter água, lavar a venta. Aqui mataram Dorothy e um
monte de camponeses. Aqui prenderam arbitrariamente no Pe. Amaro e o
incriminaram. Mais da metade do trecho. Busão lotado. Daqui para a frente o
sudeste do estado se avizinha. Após a bacia do Amazonas, do Xingu será a vez da
bacia do Araguaia-Tocantins. Uma imensidão. Um mundo farto de diversidade
social. O cansaço toma o corpo. Uns cogitam
a chegada em Marabá por volta de 2h da madruga. Fico surpreso. Geralmente seria
por volta das 5h em diante.
Marabá. Cidade polo do sudeste do estado. Cidade talhada na brutalidade do avanço do grande capital. Terra de migrantes. Comecei a andar na região do Bico do Papagaio no fim dos anos 90. Dois anos após o Massacre de Eldorado. Tempos áridos. Clima de desconfiança. Qualquer um era considerado como elemento suspeito. Um X9. Aqui foi a minha pós graduação sem parede. Devo muito às andanças nestas quebradas. Saravá.
Santarém, Altamira e Marabá. Cidades polos. Cidades
configuradas pelo avanço do grande capital. Em todas elas existem universidades
federais. Estranhamente, elas não dialogam entre si, apesar das proximidades
cimentadas pela presença do grande capital. Marabá. Faz praia. O movimento de
vai e vem de gente é agitado. Fim de tarde. Pôr do sol. Docinho defende que é
mais belo que o de Santarém, Discordo. É mais belo o rio que corre na minha
aldeia.