quarta-feira, 6 de maio de 2020

Covid no Amazonas: um Estado à deriva


O colapso na saúde do Amazonas coloca em xeque a periferia e os povos indígenas 


Periferia de Manaus. Fonte: R. Almeida

Lindomar de Jesus de Sousa Silva*

Em quarentena, tento, sem sucesso, atualizar minhas informações do agravamento acelerado do coronavírus no Amazonas. Quem diria que uma “gripezinha” fosse capaz de colocar Manaus em grande destaque nos meios de comunicação do mundo afora, quadruplicar enterros e desnudar a falência do sistema público de saúde e de todos os outros que orbitam ao seu redor.

As mortes se multiplicam em leitos de hospitais, Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e em casas. Imagens de caixões empilhados, enterrados em valas comuns ou trincheiras chocam o mundo. O problema é que ao considerar as condições estaduais, todas as informações divulgadas parecem ser apenas o prenúncio de uma catástrofe. Lembremos que temos apenas subnotificações.

O Amazonas possui a maior taxa de mortalidade do País, com 45 óbitos por milhões de habitantes e com uma acelerada expansão de casos para o interior. Dos 62 municípios, 49 já têm casos confirmados.

Nesse contexto, a preocupação aumenta a cada dia diante da debilidade do sistema de saúde no estado, assim como o fato de Manaus ser a única cidade de todo o Amazonas que possui leitos de UTI. Leitos esses, segundo as informações, que se encontram totalmente ocupados.

A dificuldade de transportar pacientes para a capital, devido às distâncias dos municípios é muito grande, e é um fato agravante para a recuperação de pacientes. Os barcos, em condições normais são a principal forma de integração do interior com a capital, mas são lentos. As pessoas doentes dos municípios do estado precisam contar com a ajuda da prefeitura ou do estado para o resgate aéreo, que nem sempre está disponível.

Além dos leitos com UTI, segundo a publicação da Demografia Médica do Brasil, do Conselho Federal de Medicina (CFM), a cidade de Manaus concentra 93,1% dos profissionais registrados no Amazonas, o que agrava ainda mais a situação do interior do estado.

Outro fator agravante é o avanço da infecção para os bairros da periferia da capital, que têm alta densidade populacional, um sistema de saneamento ineficiente, fornecimento de água intermitente e têm dificuldades para adquirir produtos de desinfecção. Soma-se a esse fato a extrema dificuldade da população em ficar em casa, já que a geração de renda é fruto da informalidade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que, em 2019, 333 mil pessoas estavam na informalidade.

A capital concentra as atividades econômicas, em particular por conta da Zona Franca. Dois milhões de habitantes é a população estimada da capital do Amazonas, a maior unidade da federação em extensão territorial.

Tal Belém, a capital manauara cresceu de costas para os rios, a sufocá-los. Manaus coleta 10,18% do esgoto, e trata somente 23,80%, o que a ranqueia em 5º lugar entre as maiores cidades do país em ausência de cobertura em saneamento básico.  Igarapés, lagos e o rio Negro recebem o esgoto sem tratamento.
O Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS) a coloca entre as dez piores cidades em saneamento do país. Para análise o SNIS considera abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. Entre as piores Manaus rivaliza com Ananindeua/PA (0,75%), Porto Velho/RO (3,39%), Santarém/PA (4,29%), Macapá/AP (8,91%).

Na verdade, o que estamos vendo em Manaus é o prenúncio da repetição de mais um ciclo vicioso, em que a população abandonada à própria sorte, marginalizada e invisível, que ocupa as áreas periféricas da cidade, estas desprovidas de infraestrutura, passa a ser a mais impactada pela doença.

Essa população é a que terá maior dificuldade em acessar o sistema público de saúde e qualquer outra forma de auxílio ou ajuda solidária. É o ciclo que se repete no Amazonas, desde a chegada dos colonizadores e suas doenças, como foi a varíola, a dengue, a tuberculose, a leptospirose e tantas outras que não foram sanadas no interior do Amazonas e na periferia da capital, Manaus. Chagas que ameaçam  em particular os povos indígenas.

A pandemia do coronavírus expôs a face perversa da opção por um modelo industrial concentrador, que abandonou o interior à própria sorte, concentrou a população, segregou-a e contribuiu para o seu empobrecimento.

A concentração populacional forçada pelas circunstâncias produziu uma altíssima densidade demográfica, devido aos pequenos lotes urbanos na periferia. Como consequência produziu também uma alta densidade domiciliar, um ambiente insalubre, que torna impraticável qualquer forma de isolamento, aumentando a suscetibilidade à contaminação.

A dificuldade do estado em responder a grave crise que vivemos decorre de uma visão elitista, sempre orientada por uma  miragem industrial, excludente, voltada a favorecer  o mercado e as grandes empresas.

 Neste contexto, diante da atitude “negacionista” e de desprezo pela vida humana, pelo conhecimento, a ciência, a cultura e à arte encontra-se sintetizada no “E daí”? do presidente da república, somada à lógica transloucada de fazer política de muitas pessoas, que insistem em teses conspiratórias e a espalhar fake news, só me resta uma conclusão: estamos à deriva, onde rareia o bote salva vidas.

*Sociólogo, pesquisador e membro do conselho editorial da Revista Terceira Margem Amazônia.

domingo, 3 de maio de 2020

Delza: 89 primaveras


Delza e o bisneto, Franklin

Comer melancia na Avenida Beira Mar era a grande diversão na remota quadra da década dos anos 50 do século passado, na ainda hoje provinciana São Luís. E, urinar em algum canto no percurso de volta para casa encarnava um ato de subversão. Aos meus olhos a cidade soa enjaulada em uma era distante. Impressão?

No passeio de fim de semana o risco rareava.  Nada comparado às tensões dos dias e noites de hoje.  A violência pulsa por todos os cantos. Facções criminosas delimitam territórios com pichações nas quebradas, e mesmo no Centro da capital do Maranhão, um logradouro portuário. A principal vereda de escoamento do minério saqueado no Pará. Maranhão é terra de preto, terra de aquilombação.

Em tempos idos, recitais de poesia tomavam a Praça Gonçalves Dias, espaço do Centro da cidade, que também abriga a Igreja dos Remédios e o antigo prédio da faculdade de Filosofia, o Palácio Cristo Rei, rememora Nelba Almeida. Lá fez parte da primeira turma do curso no estado. A praça tem o Atlântico como espelho. Praça dos Amores é o terno apelido.

Nelba atende pela alcunha de Delza. O nome Nelba soava estranho à maioria das pessoas.  Naqueles dias era comum o estudo do Latim, Francês, conta Delza ainda hoje. A memória é pródiga, ainda que pese o beirar dos 90 anos, hoje soma 89 nos costados de inúmeras pelejas como educadora, mãe, que criou com a solidariedade de outras irmãs, primas e comadres dois rebentos. Um casal.  

Soava subversivo urinar na rua naqueles dias, calcule uma mulher se indispor com os pressupostos de Platão ou Sócrates. Ali se encontra o embrião da Universidade Federal do Maranhã (UFMA). 

Por conta de tramas de alcova do então reitor da época, um cônego, que a preteriu em detrimento do seu par amoroso, Delza não ingressou no magistério superior. Chateada meteu a perna no mundo, e ganhou as entranhas do pauperizado estado. Em projeto solo já tinha duas crias.  Ainda que um ex colega de turma, que posteriormente assumiu a reitoria, a houvesse convidado a assumir uma vaga. Turrona.

Um matriarcado formava a ciranda da nossa infância. Era um matriarcado invocado.  Maria José, Maria do Socorro, Graça, Roselys e tantas outras comadres da capital e de Buriti Bravo, onde militou nos anos de 1960, davam corpo ao colegiado feminista. Cada uma a seu jeito. Cada uma com suas idiossincrasias e contradições.   

Eram tantas as madrinhas e tias postiças que eu era obrigado a tomar bença, que escapa o nome de todo o escrete. Dona Neguinha e Diloca (acho que era assim) guardo na memória. Mas, tinha muito mais gente.

Era comum compartilharem víveres quando o bicho pegava. Neste matriarcado a solidariedade mútua dá liga ao profundo laço de amizade, apreço e respeito entre as partes. Uma lição silenciosa que guardo. “Amigo a gente distingue no momento de aperreio”, repetia.

Graça era uma negra linda. Partiu muito cedo. Devotava com apreço uma boa cerveja. Um infarto a golpeou. A visitava com imenso prazer. Assim como a avó, Edinete, uma enfermeira. Roselys também se foi. Era uma negra retinta. Ao contrário de Graça era de reza.  Delza, Socorro e Roselys encararam o magistério.

Tantas temporais se passaram. E, cá estamos a encarar uma pandemia. A resistir. Ainda que separados por alguns quilômetros, no entanto, unidos pela teimosia em seguir em frente, gosto pela leitura, música, carne de porco e cerveja.   

Felicitações por quase um século de navegares em mares turvos, e apesar de tudo sorrir.