O colapso na saúde do Amazonas coloca em xeque a periferia e os povos indígenas
Periferia de Manaus. Fonte: R. Almeida
Lindomar de Jesus de
Sousa Silva*
Em quarentena, tento,
sem sucesso, atualizar minhas informações do agravamento acelerado do coronavírus
no Amazonas. Quem diria que uma “gripezinha” fosse capaz de colocar Manaus em
grande destaque nos meios de comunicação do mundo afora, quadruplicar enterros
e desnudar a falência do sistema público de saúde e de todos os outros que
orbitam ao seu redor.
As mortes se
multiplicam em leitos de hospitais, Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e em
casas. Imagens de caixões empilhados, enterrados em valas comuns ou trincheiras
chocam o mundo. O problema é que ao considerar as condições estaduais, todas as
informações divulgadas parecem ser apenas o prenúncio de uma catástrofe. Lembremos
que temos apenas subnotificações.
O Amazonas possui a
maior taxa de mortalidade do País, com 45 óbitos por milhões de habitantes e
com uma acelerada expansão de casos para o interior. Dos 62 municípios, 49 já
têm casos confirmados.
Nesse contexto, a
preocupação aumenta a cada dia diante da debilidade do sistema de saúde no estado,
assim como o fato de Manaus ser a única cidade de todo o Amazonas que possui
leitos de UTI. Leitos esses, segundo as informações, que se encontram
totalmente ocupados.
A dificuldade de
transportar pacientes para a capital, devido às distâncias dos municípios é
muito grande, e é um fato agravante para a recuperação de pacientes. Os barcos,
em condições normais são a principal forma de integração do interior com a capital,
mas são lentos. As pessoas doentes dos municípios do estado precisam contar com
a ajuda da prefeitura ou do estado para o resgate aéreo, que nem sempre está
disponível.
Além dos leitos com
UTI, segundo a publicação da Demografia Médica do Brasil, do Conselho Federal
de Medicina (CFM), a cidade de Manaus concentra 93,1% dos profissionais registrados
no Amazonas, o que agrava ainda mais a situação do interior do estado.
Outro fator agravante é
o avanço da infecção para os bairros da periferia da capital, que têm alta densidade
populacional, um sistema de saneamento ineficiente, fornecimento de água
intermitente e têm dificuldades para adquirir produtos de desinfecção. Soma-se
a esse fato a extrema dificuldade da população em ficar em casa, já que a geração
de renda é fruto da informalidade. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) indicam que, em 2019, 333 mil pessoas estavam na
informalidade.
A capital concentra as
atividades econômicas, em particular por conta da Zona Franca. Dois milhões de
habitantes é a população estimada da capital do Amazonas, a maior unidade da federação
em extensão territorial.
Tal Belém, a capital
manauara cresceu de costas para os rios, a sufocá-los. Manaus coleta 10,18% do
esgoto, e trata somente 23,80%, o que a ranqueia em 5º lugar entre as maiores
cidades do país em ausência de cobertura em saneamento básico. Igarapés,
lagos e o rio Negro recebem o esgoto sem tratamento.
O Sistema Nacional de
Informação sobre Saneamento (SNIS) a coloca entre as dez piores cidades em
saneamento do país. Para análise o SNIS considera abastecimento de água, coleta
e tratamento de esgoto. Entre as piores Manaus rivaliza com Ananindeua/PA
(0,75%), Porto Velho/RO (3,39%), Santarém/PA (4,29%), Macapá/AP (8,91%).
Na verdade, o que
estamos vendo em Manaus é o prenúncio da repetição de mais um ciclo vicioso, em
que a população abandonada à própria sorte, marginalizada e invisível, que
ocupa as áreas periféricas da cidade, estas desprovidas de infraestrutura, passa
a ser a mais impactada pela doença.
Essa população é a que
terá maior dificuldade em acessar o sistema público de saúde e qualquer outra
forma de auxílio ou ajuda solidária. É o ciclo que se repete no Amazonas, desde
a chegada dos colonizadores e suas doenças, como foi a varíola, a dengue, a tuberculose,
a leptospirose e tantas outras que não foram sanadas no interior do Amazonas e
na periferia da capital, Manaus. Chagas que ameaçam em particular os povos indígenas.
A pandemia do coronavírus
expôs a face perversa da opção por um modelo industrial concentrador, que
abandonou o interior à própria sorte, concentrou a população, segregou-a e
contribuiu para o seu empobrecimento.
A concentração
populacional forçada pelas circunstâncias produziu uma altíssima densidade
demográfica, devido aos pequenos lotes urbanos na periferia. Como consequência
produziu também uma alta densidade domiciliar, um ambiente insalubre, que torna
impraticável qualquer forma de isolamento, aumentando a suscetibilidade à contaminação.
A dificuldade do estado
em responder a grave crise que vivemos decorre de uma visão elitista, sempre
orientada por uma miragem industrial, excludente,
voltada a favorecer o mercado e as grandes
empresas.
Neste contexto, diante da atitude “negacionista”
e de desprezo pela vida humana, pelo conhecimento, a ciência, a cultura e à
arte encontra-se sintetizada no “E daí”? do presidente da república, somada à lógica
transloucada de fazer política de muitas pessoas, que insistem em teses
conspiratórias e a espalhar fake news, só me resta uma conclusão: estamos à
deriva, onde rareia o bote salva vidas.
*Sociólogo, pesquisador e membro do conselho
editorial da Revista Terceira Margem Amazônia.