A
doação para as famílias quilombolas data de 1877, conforme documento assinado
pelo fazendeiro José Francisco Ferreira
Pelo menos uns 50
moradores trabalharam em sistema de puxirum [mutirão] para colocar de pé o
centro comunitário do território quilombola de Bom Jardim, na cidade de
Santarém, no oeste do Pará.
Cenas do Quilombo de Bom Jardim, I Festival Quilombola, Santarém/PA. Foto: R. Almeida
O galpão é uma
arquitetura comum nos territórios quilombolas da região. O espaço coletivo é
construído para abrigar os festivais, bem comuns em áreas quilombolas, além das
reuniões. No caso de Bom Jardim, o galpão [24x14] acolheu a primeira edição do
Festival Quilombola do Bom Jardim, comemorado entre os dias 28 a 30 do mês de
novembro.
Tijolos, telhas, areia,
cimento, madeira e outros recursos para a edificação do prédio resultam de
doações e coleta dos próprios moradores. Para alimentar a turma do puxirum, foi
usado o mesmo expediente, cada um entra com o que pode: macarrão, feijão, arroz
farinha e pinga. A noite que precedeu o
primeiro dia do festival, 28, o grupo varou a madrugada. O quilombo é conhecido
com o mais festeiro da região do planalto santareno.
Centro Comunitário construído em puxirum. Fotos: enviadas pela comunidade
Nesta latitude é abundante
o fruto do açaí. O extrativismo e a atividade
da pesca representam a principal fonte de proteína e renda do lugar, que somados
a bolsa família, aposentadorias, pensões e o funcionalismo público colabora na
subsistência familiar.
Comércio de comidas
típicas, roupas e artesanato, apresentação de capoeira, grupos de danças
regionais, festa dançante integraram a agenda dos três dias do festival, que
também celebrou os 142 anos do quilombo.
Riquezas do território quilombola. Fotos: Girlian de Sousa
A referência histórica
tem relação com o documento de doação, datado de 1877, realizado pelo senhor de
escravos. O fazendeiro produtor de cacau, José Francisco Ferreira atendeu ao
pedido de sua esposa, e resolveu repassar as terras para seis famílias de
negros que trabalhavam na lavoura do fruto, que marcou época no oeste paraense.
Obras do obidense
Inglês de Souza realçam tal período, em particular o Cacaulista. Os mais velhos do lugar estimam pelo menos em
300 anos a presença de negros em Bom Jardim e arredores, ladeados por
indígenas. Nos locais marcados pela presença da terra preta é comum encontrar
artefatos pré-coloniais.
As seis famílias
iniciais somam nos dias atuais pouco mais de cem, num contingente que beira a
casa das 600 pessoas. Joilson Vasconcelos dos Santos, membro de uma das
famílias pioneiras, explica que o festival é uma iniciativa em
demarcar/reforçar a importância territorial, por conta do cenário de retrocesso
do ambiente institucional e político do país.
“Estamos diante de um
governo declaradamente avesso às demandas do campo popular, que declarou em
alto e bom som a sua oposição às demandas indígenas, quilombolas e camponesas”
realça o professor e morador do quilombo.
“A tentativa em emplacar um capitão do mato na direção da Fundação
Palmares é mais uma aberração do governo”, emenda o educador.
Na agenda da
associação, assim como as demais do município de Santarém, organizadas a partir
de uma federação municipal, a principal bandeira de luta reside na titulação da
área. O processo soma mais de 12 anos. Os laudos do INCRA já foram realizados e
o território reconhecido como de remanescente de quilombo.
Morosidade
na titulação gera tensões no território - A morosidade no
reconhecimento territorial tende a criar situações de tensões no território. No
caso de Bom Jardim, um deles reside em cultivo de soja dentro da área
reivindicada. Narivaldo dos Santos, que preside a associação do quilombo, explica
que a monocultura prejudica os moradores, em particular os que estão mais
próximos da área plantada, por conta do uso intensivo de agrotóxico.
Ainda por conta da
soja, o produtor tentou fechar uma via usada como atalho pelos moradores. Com
relação ao pescado, a tensão mais comum é a pesca predatória por pessoas que
não residem na comunidade. A pesca de arrastão, que não respeita os acordos de
pesca e as normativas da lei com relação a espessura da linha de pesca de redes
e tarrafas.
Para além das
fronteiras do quilombo, os moradores explicam que as representações dos setores
públicos, em particular do município, sempre criam dificuldades em recebê-los,
e até mesmo em protocolar os seus pedidos.
“Na maioria dos casos, nossas demandas só são atendidas por conta da
mediação dos ministérios públicos” conta Santos.
Escola da comunidade, grupo de capoeira e grupo de dança. Fotos: Girlian Sousa e comunidade
No caso da educação, os
moradores relatam duas situações. Uma relacionada com o problema dos professores
da escola em resistirem de participar de reuniões da associação. Bem como com
relação ao conteúdo ministrado na escola, que tende a eclipsar a história da
luta do povo quilombola.
A escola do quilombo,
rebatizada de Escola Municipal São Pedro, oferece ensino até o 9º ano. Os moradores
reclamam da atitude autoritária do governo em mudar o nome da escola de Otávio
Firmino dos Santos para São Pedro. O senhor Otávio é um dos pioneiros do lugar
e avô do professor Joilson. “Trata-se de apagamento de nossa memória, precisamos
rever isso”, comenta o educador.
Outro problema é a
merenda escolar, que além de insuficiente, favorece o fornecimento de produtos
enlatados, quando a prefeitura poderia incorporar tanto a produção do açaí,
como o pescado na dieta da escola. A descontinuidade no fornecimento é outra
questão que aflige as famílias.
Educação
superior - Ainda no campo da educação, indígenas e
quilombolas têm enfrentado inúmeros problemas nos cursos ofertados na
Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Henrique de Dejesus, representante dos estudantes quilombolas, pela
passagem do Dia da Consciência, informou que um curso da área de exatas da
Ufopa não ofertou vagas por avaliar que indígenas e quilombolas não teriam
aptidão para cumprir o percurso acadêmico. Para o discente, a medida representa
racismo.
Existem ainda situações
de atrito com os próprios discentes não indígenas e com professores em sala de
aula, que muitas das vezes não compreendem as especificidades da formação dos
discentes indígenas e quilombolas, e mesmo a fragilidade do processo de educação
dos mesmos.
Na trilha do quilombo - Alcança-se o lugar a partir da rodovia Curuá-Una. Florestas, experimento de soja, estação de
tratamento de lixo, algumas empresas, condomínios, pequenos comércios – aqui
tratados como minis-box-, cemitério, inúmeros campos de futebol de variados
tamanhos colaboram na composição da feição territorial desta fração do
município. Nestas latitudes, não raro, avista-se a placa de: vende-se lote.
Um
parêntese. A especulação imobiliária representa um dos
fenômenos que se desenvolvem por conta da dinâmica da inserção subordinada da
região ao sistema mundo, a partir da dinamização da mesma como um corredor de
circulação de commodities. Especulação está que ocorre tanto na zona
considerada rural, quanto na área considerada urbana. Em certa medida, as
queimadas em Alter do Chão podem ser explicadas a partir desta dinâmica.
O quilombo é um entre
os 12 territórios que reivindicam a titulação no município. Em toda região a
soma alcança a casa dos 60. Estes territorializados nos municípios de Óbidos,
Oriximiná, Alenquer, Monte Alegre e Santarém.
Muricis, mangas,
tucumãs, buritis e goiabas são algumas das farturas encontradas no lugar, além
de animais passiveis de caça e as aves. No que tange à caça, tem-se capivara,
paca, anta; e entre as aves podem ser encontrados pato do mato, juruti e
rolinhas.
"Gitinhos" no lugar considerado encantado pelos moradores. Foto: Girlian Sousa
Narivaldo Santos [camisa vede] e prof Joilson Vasconcelos [camiseta branca] com parentes
"Gitinhos" na casa de dona Iracema e pesquisadores da UFOPA e da USP. Foto: R. Almeida
As crianças do lugar
que não conhecem ou não compreendem o processo de luta pelo território ou o
significado da escravidão, são doutores com relação ao conhecimento dos
recursos que o território é tributário. Elas realizam coleta, pescam, caçam e
conduzem com as canoas e bajaras no Lago do Maicá.
Este ameaçado pela construção
de um complexo portuário, que integra o projeto Arco Norte, que visa consolidar
a região com um grande corredor de exportação de soja. O complexo portuário, estações
de transbordo, grandes e pequenas hidroelétricas, além de modal de transporte
(rodovia, hidrovia e ferrovia) constam no pacote de grandes obras do governo
federal.
Na contramão desta
correnteza colonial organizada a partir de grandes obras, os “gitinhos” explicam
com maestria a diferença entre a árvore da sapucaia e a castanheira para o
estranho. Sabem das trilhas da capivara, dos bichos peçonhentos, aonde as arraias
se escondem, como se livrar dos jacarés, das manhãs das estivas [espécie de
ponte improvida feita do tronco da palmeira do buruti] para se alcançar o rio.