O julgamento ocorre na cidade de Marabá/PA, terça feira, no dia 22. Movimentos sociais prometem ato de apoio ao educador e documentarista
Professor Evandro Medeiros. Foto: Alexandra Duarte
Na manhã do dia 22, na cidade de Marabá,
sudeste do Pará, o professor Evandro Medeiros, da Unifesspa (Universidade
Federal do Sul e Sudeste do Pará), irá a julgamento. O “crime”: ter participado,
por alguns minutos, de um ato na periferia do município, em solidariedade às
famílias que tiveram as vidas destruídas com o rompimento da barragem da
mineradora Vale, em Mariana/MG, no ano de 2015. O caso do professor representa
uma conta de um rosário perto de 200 pessoas que a empresa processa na região
de Carajás. O professor correu o trecho desde cedo. Trabalhou vendendo banana e
frango em ruas e feiras, até alcançar a universidade pública, e cursar
Pedagogia. É professor da Unifesspa desde 2002, com forte atuação junto aos
movimentos camponeses numa região onde mais se mata dirigente e sem terra no
país. Além de professor, Medeiros é documentarista. A titular da 1ª Vara Criminal, Renata Guerreiro Milhomem de Souza, julgou procedente as acusações, após o educador ter sido absolvido na Cível. Para ele o processo em que
é alvo possui a verve de um autentico conto kafkaniano. Apesar da conjuntura
distópica, o professor acredita que a justiça prevalecerá.
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Furo - professor, o senhor pode falar um pouco sobre a
sua trajetória de vida?
Evandro
Medeiros – Cresci na estrada. Sou filho de uma família
pobre. Meu pai era funcionário do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens
(DNER). Era tratorista. Trabalhou na abertura da Transamazônica,
Belém-Brasília. Minha mãe era costureira, cozinheira. Eles se separaram quando
eu tinha sete anos. Fui morar com tios em Paragominas [região marcada pela
exploração madeireira e pecuária], depois de já ter morado em Itaituba [área de
garimpo a oeste do estado] e Belém. Mas, Mãe do Rio é a minha cidade de
nascimento. Região de São Miguel do Guamá, perto da capital. Sou um filho do
trecho. Em Belém morei no boêmio bairro da Pedreira, na Guanabara e Cidade
Nova. Estudei sempre em escola pública. Vendi banana na rua, frango na feira da
Batista Campos, picolé em campo de futebol, etc. Cursei Pedagogia na UFPA,
trabalhei como professor do ensino fundamental no bairro do Distrito
Industrial, na periferia de Ananindeua. Fui educador de rua na Praça da
República e no Ver o Peso, trabalhando com crianças em situação de risco
social, vítimas de violência e em situação de prostituição. Atuei como assessor
de desenvolvimento comunitário junto à população ribeirinha das ilhas que fazem
parte de Belém, como Cotijuba, Cumbú e Jutuba. Também trabalhei como
alfabetizador de adultos. E em 2000 fui cursar mestrado em Florianópolis, na
UFSC. O foco da pesquisa era educação e movimentos sociais. Em 2002 fiz
concurso para professor do campus de Marabá da Universidade Federal do
Pará (UFPA), que em 2013 virou a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa). Na universidade atuo com formação de professores nos cursos de
licenciatura, em especial na área da Educação do Campo. Agora estou afastado
para cursar o doutorado em educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bem,
em resumo, é esta minha trajetória profissional e como educador. Sempre
alinhado à educação dos setores populares e a luta por direitos mobilizada
pelos movimentos sociais, em especial com os movimentos camponeses, MST a
Federação de Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri). Além de
professor, desde 2006 tenho atuado também como documentarista. Aqui na região
fizemos documentários sobre várias histórias envolvendo a luta camponesa, sobre
a trajetória de dirigentes da luta pela terra assassinados, sobre a Guerrilha
do Araguaia, e claro, sobre a mineração, sobre os impactos das atividades da
Minera Vale na região. Creio que essa ação tenha incomodado a empresa.
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Furo - O que é a
região de Carajás?
EM –
Vivemos numa região marcada por grandes contradições de toda
ordem. É uma região rica do ponto de vista de minérios, principalmente.
O crescimento populacional da região deve-se a esta especificidade. Bem como ao
processo de integração física da região, implantado durante a ditadura
civil-militar (1964-1985), que advogava que a Amazônia era um vazio
demográfico. E que a terra aqui abundava. O sul e o sudeste paraense
representam o lócus onde a luta pela terra se deu de forma
mais violenta no país. E isso vem se perpetuando. Aqui foi palco do Massacre de
Eldorado, em 1996. Mais recentemente tivemos o Massacre de Pau D´arco. Se por
um lado a disputa entre posseiros e fazendeiros pela terra marca a
história dessa região, é preciso ter claro que após a descoberta da província
mineral nos anos de 1950, essa disputa se inicia também pelo subsolo,
demarcando a existência de uma disputa por território mineral, em que
a Mineradora Vale é o principal agente. Penso que a Guerrilha do Araguaia
(1968-1972), mais que desejar derrubar a ditadura, contemplava a preocupação
com a riqueza mineral da região e o seu destino. Os países centrais dessa época
tinham conhecimento dessa riqueza mineral. Sabiam do papel estratégico dela na
geopolítica, em planos de desenvolvimento de tecnologias militares, de
comunicação e da informação. Desde sempre a região de Carajás mobiliza
interesses internacionais. Isto explica a presença aqui de tantos quarteis do
Exército, o fato de ser de interesse da Segurança Nacional. Existe uma acirrada
corrida pelo controle da região. Por algum tempo as disputas pela terra,
eclipsaram as disputas territoriais pelo controle dos territórios minerais. No
momento atual, agudizasse a exploração de ferro, níquel, cobre, ouro, e tantos
outros minérios. Esta dinâmica afronta as realidades de indígenas, de
camponeses e de quilombolas. Os que ousam atravessar o caminho das grandes
corporações são processados, e quiçá, correm o risco de morte. É assim que
opera o capital.
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Furo- O que representa a Vale no estado do Pará e em Carajás em particular?
EM – É
a Mineradora Vale quem tem a hegemonia política e, de certa forma, governa o
estado e a região. Os interesses da mineração não sofrem nenhum tipo de
contestação na região. Recentemente um juiz exigiu que a empresa reconhecesse o
risco de rompimento de duas barragens da aqui na região. Mas, isso é uma
exceção. As atividades da Vale provocam vários impactos socioambientais. Os
“investimentos” que ela realiza em escolas, estradas e outras infraestruturas,
são insignificantes diante dos danos e expropriações da riqueza mineral que ela
realiza. O conjunto da sociedade, governantes e políticos silenciam. É público
que ela financia as campanhas de todos os partidos. Aqui
sempre que setores atingidos judicilizam a empresa, não tarda os advogados
desistem. Literalmente, ela represa qualquer
contestação. É certo que existem os grupos de políticos e frações que
controlam parcelas de poder, e sobre eles, a Mineradora Vale impera. O
calculo que a gente pode fazer é que tudo isso representa o poder financeiro da
corporação.
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Furo- O processo
em que o senhor é alvo, bem como outras pessoas que atuam em defesa do meio ambiente
e dos diretos humanos, e que a Vale representou judicialmente é digno de um
conto de Gabriel Garcia Márquez?
EM - A
obra de Garcia Márquez é incrível e, se a gente considerar que ele trabalha com
o realismo fantástico, e que os seus contos se inspiram em realidades de
pessoas comuns e suas tragédias, eu diria que sim. Nossa região é marcada por
aridez social ímpar por conta do avanço do capital sobre esta fronteira. Avanço
que engendrou tragédias pessoais e coletivas de todos os tipos. Quando
uma empresa do porte da Vale se empenha em processar pessoas por lutarem por
seus direitos e a empresa é colocada como vítima, estamos diante de conteúdos
de realidade que poderiam ser certamente trabalhados por “Gabo”, menos que
mágico, eu diria, que numa perspectiva do realismo trágico na verdade. Por
outro lado, avalio que o momento pelo o que eu tenho passado
nesses últimos três anos, se aproxima mais da obra do Kafka,
lembrando que Gabriel Garcia Márquez se
inspirava nele, em partícula na obra Metamorfose. Este ambiente dessa peleja
jurídica que vivo tem a cara da obra O Processo. Aquela em que um dia a pessoa
acorda, e se ver processada sem saber o motivo. E o processo dura uma longa
temporada. O conto apresenta o personagem num ambiente de angústia pelo fato
dele não saber o que crime que cometeu. É um ponto de vista trágico, que
provoca o leitor a refletir sobre como aquilo um dia pode acontecer com ele.
Estamos diante de uma sociedade em que as coisas foram tomando um formato em
que o maior crime é o fato de você assumir posturas humanistas. O fato de você
ser crítico ante as violências e se colocar alinhado aos injustiçados. O
Processo relata isso, uma sociedade onde os instrumentos jurídicos e burocráticos
nos colocam em risco da perda dos direitos e liberdade por tentarmos defender e
vivenciar os nossos direitos e liberdade! O que ocorre é uma inversão dos
valores. Estamos diante algo ultrajante em nossas vidas. No meu caso, o crime reside
em ser crítico, denunciar as arbitrariedades cometidas por uma empresa, e lutar
por afirmar melhores condições de vida para todos que habitam a região em que
esta empresa explora as riquezas.
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Furo – O senhor
cursa doutorado na Federal da Paraíba, tem 3 filhos, trabalha numa região super
delicada, marcada pela brutal disputa pela terra, como isso tudo tem afetado a
sua vida, o seu trabalho?
EM -
Tenho três crianças. Um de 14 anos, um de 11 e uma de 2 anos. Miguel, Joaquim e
Aimée. Em 2015 e 2016 os meninos sentiram muito a barra pesada do processo.
Todos os dias chegavam da escola perguntando o que estava acontecendo. Na
escola os colegas perguntavam por que o pai deles estava sendo
processado pela Vale, se eu iria ser preso, quando eu seria preso etc. Esse
ambiente não é legal para as crianças. Neste mesmo período descobri que sou
hipertenso, me envolvi em acidentes de carros por não conseguir me concentrar
direito nas atividades laborais. Sempre fui muito ativo na universidade e na
produção audiovisual. O processo atrapalhou essas atividades. Vivi num
crescente quadro de estresse. Daí em me reportar ao livro do Kafka. Não
confundir com a comida, rs. O sentimento de impotência e indignação provoca
raiva e estresse. Aqui sempre fui engajado com os movimentos populares e
sociais. Vivenciei execuções de sindicalistas e de alunos meus. Como o caso da
Maria do Espírito Santo, do Projeto de Assentamento Praia Alta Piranheira, no
município de Nova Ipixuna, junto com o esposo, José Cláudio. Ela era minha
aluna, estudante do curso de Pedagogia, e ele parceiro de atividades na
universidade. O doutoramento foi uma oportunidade em sair um pouco do meio do
furacão. Uma necessidade de respirar e deslocar os meninos para outros
ambientes. Também foi a oportunidade de pensar academicamente sobre essas
situações. Fiquei uns dois anos fora. Agora estou na região outra vez, para
atividade de pesquisa de campo.
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Furo – Quem
são os advogados que defendem o senhor, e qual a sua expectativa em relação ao
desfecho do processo?
EM – Os
meus advogados fazem parte do quadro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da
Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). Não tenho condições
de bancar esse processo, e não teria confiança em outros advogados que
não fossem esses ativistas. E, até pelo fato da Mineradora Vale ter a
tradição de comprar advogados da região, não estaria seguro com outros
advogados. José Batista Afonso (CPT) coordena a equipe em parceria com Marco
Polo (SPDDH). São notórios em defesa das lutas populares. Tenho
total confiança. O caso na vara cível fui absolvido. Os advogados conseguiram
demonstrar que as acusações da Vale não tinham fundamento. Ganhamos em primeira
e na segunda instância. Transitado e julgado. Agora estamos na batalha criminal
pelo fato do Ministério Público ter acatado as acusações da Vale. Não sabemos
quais são a novas acusações que a empresa alega. Estamos estudando o processo.
A juíza não aceitou o pedido de arquivamento feito pela defesa com base na
sentença do processo da vara cível. Agora estamos indo para o julgamento no dia
22 de outubro. Vamos com a mesma coragem e tranquilidade do primeiro processo.
A gente sabe que há uma inversão de papeis, onde as vítimas, os processados,
que somam quase 200, estão sendo colocados como réus por defenderem a vida em
sua plenitude. Apesar da distopia reinante nos campos da política e da justiça,
a expectativa é que se faça justiça. Sendo absolvido, a gente moverá ações contra
a Mineradora Vale por danos de toda ordem. Bom seria que os advogados dessa
região não realizassem um grande levante contra os abusos da mineradora, cujas
atividades impactam em especial comunidades quilombolas, indígenas e
camponesas. A batalha não encerra aqui, no meu caso.
Reitoria manifesta apoio ao professor Evandro
Movimentos sociais farão ato de protesto no dia do julgamento