A extração mineral em Canaã dos Carajás e a duplicação da Ferrovia ameaçam territórios indígenas, quilombolas e campesinos
Peguei o trem em
Parauapebas para São Luís do Maranhão. E o trem danou-se naquelas brenhas, a
ranger os trilhos, vencer misérias, solidões e distâncias. A queimar diesel por
mais de 14 horas, a cortar áreas indígenas, quilombolas e territórios
camponeses, a desagregar laços de amizade, solidariedade e familiares. Vez em
quando a trucidar gentes e animais. E o trem danou-se....
Operários em trecho de duplicação da Estrada de Ferro de Carajás (EFC)
Não havia ar condicionado
na classe econômica do trem da Vale quando pela vez primeira corri o
trecho. O magote de tempo tem perto de
duas décadas. A ferrovia já somava pouco mais de dez anos. Tempos idos. Dias em
que a professora Maria Celia Coelho organizou o livro sobre a primeira década
da Estrada de Ferro de Carajás (EFC), pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicas
da UFPA.
A neófita geógrafa Elis
Miranda assinava um relato sobre a viagem do trem entre Parauapebas, no sudeste
do Pará, até o porto do Itaqui em São Luís, no Maranhão. Perto de mil
quilômetros separam uma das principais províncias minerais do mundo da capital
ludovicense.
Naqueles dias a classe
econômica do trem era uma versão atualizada da senzala. O calor causticante
fazia crianças e idosos passarem mal. O odor de vômitos e diarreias enchiam os
vagões. Uma sofrência só. O povo do trecho cheio de esperança carregava o bucho
vazio. O povo levava todos penduricalhos que a pobreza permitia arrastar.
Cheia do Rio Tocantins - Açailândia-MA
Os párias cheiravam a
suor forte e cigarros vulgares. Em trajes rotos aguardavam a liberação do
portão em busca de um lugar para sentar no vagão. A pobreza não tem cadeira numerada
no maior trem do mundo. Meio mundo de gente a buscar dias menos doridos. Um
turbilhão de humilhação.
Entre um vagão e outro
era permitido fumar. Havia um vão que concedia a entrada do vento. Mesmo vão
que gente a padecer de mal de amor se jogava para fora do veículo.
Naquele tempo homens,
mulheres e crianças à cada parada das 14 estações em que o trem corta,
afrontavam as cidadelas das janelas dos vagões da classe econômica. Vendiam de
tudo: água, carne de caça, peixe frito, milho assado, maçãs, biscoitos, etc.
Naqueles dias era vetado
ao cliente da classe econômica percorrer para fora do seu quadrado. Ao
passageiro da classe executiva tudo era permitido. A locução do veículo anuncia
a próxima estação: Nova Vida. Serão cinco minutos para embarque e desembarque.
Fosse naquele tempo, eu procuraria um milho assado.
Trecho em duplicação da EFC
As mãos calejadas da roça
e outras tarefas deixavam as garrafas pet sujas por fora. Uma mistura de poeira
com o degelo dos frascos. O tempo do
trem é pouco. Os que arriscavam passar sob o vagão, vez em quando não obtinham
êxito.
A carreira do trem de
passageiro é desaperreada. E, sempre que
o trem de carga cruza o trecho, ele se acanha e para. É a lei do mercado. Força
de contrato. O trem de passageiro é só uma compensação ao saque.
Naquele tempo, os anos 90
emitiam os derradeiros suspiros. Por conta do Massacre de Eldorado, prestes a
contabilizar 22 anos de impunidade, o Estado reconheceu em grande escala várias
áreas ocupadas por sem terra de diferentes filiações como projetos de assentamento
da reforma agrária. Em particular na Amazônia. Ênfase nas terras do massacre.
Naqueles dias idos a onda
privatista entregou a Vale de mão beijada. Tanto tempo depois, a lama da Vale
sufocou Mariana nas Minas Gerais. Feriu de morte o Rio Doce e toda vizinhança. O
rio não tá pra peixe, que o diga o povo de Barcarena.
O tempo do trem é pouco.
Na estação de Presa de Porco o cronômetro impõe três minutos para embarque e
desembarque. O tempo do trem de passageiro é pouco. Durante a semana três dias
são dedicados para ir ou voltar de Parauapebas a São Luís. E, vice-versa. É
reggae, bumba meu boi, rumba e brega. Vizinhanças, arraiais, puteiros e
currutelas.
Monocultivo de eucalipto - Açailândia-MA
Todos os dias por
inúmeras vezes o trem de carga não cessa. É o maior do mundo. Mais de 300
vagões. Umas três locomotivas a fazer a máquina correr. A fazer a máquina rodar. Riqueza a sangrar
por mais de 30 anos. Quem vai colocar os pontos nos IS? Quem vai colocar tudo
na ponta do lápis, a Lei Kandir em xeque?
Corre o dia. Metade da
viagem. Mais de meio dia. Açailândia/MA ficou para traz. Corre o tempo. O
monocultivo de eucalipto impregna a paisagem. Açailândia era uma perna do polo
de gusa do Projeto Grande Carajás. Marabá/PA a outra. A decadência nubla o polo
desde os anos iniciais da década de 2000.
Passados perto de 20 anos. Tudo mudado. Menos de 60 minutos separam Nova
Vida de Presa de Porco. Corre o trem.
É tempo de chuva. Os
dormentes antes de madeira dão lugar a dormentes de cimento. Enquanto o minério
de ferro considerado de melhor teor do planeta, na Serra Norte, em Parauapebas
míngua, a Serra Sul (S11D), em Canaã dos Carajás pulsa.
A EFC está em fase de
duplicação por conta do atual/velho cenário de saque. É ouro! É ferro! É
níquel! É cobre! É minério de tudo que é jeito. É o fim do caminho? Quem
cobrará pelo sangue derramado dos ancestrais? É desmatamento! É execução! É massacre! É
trabalho escravo a dar de pau! Aos contrários é processo na vara cível e
criminal! O caminho tem fim?
Quase vinte anos depois o
trem de passageiro melhorou. Tanto a classe considerada executiva, como a
catalogada como econômica contam com ar condicionado. Não existe mais vão entre
um vagão e outro. Existe um vagão dedicado a refeição e o de lanchonete, que
também atende com refeição. No trem de passageiro não há vagão para
indignação.
Os dias atuais continuam
a desorganizar os territórios ancestrais.
Agora o epicentro é Canaã. Em São Luís a comunidade do Taim tem sofrido
pressões a ceder suas terras aos interesses do grande do capital. Em Itapecuru
Mirim, ainda no Maranhão, são os quilombolas os afrontados. Entre Canaã a São
Luís onde existe leite e mel a jorrar?
E o trem danou-se
naquelas brenhas.....