Adalgisa ergue as mãos em sinal de oração agradecendo. Quase caem lágrimas dos olhos. Ela tem as rugas, o sorriso, as vestes e a fala parecem com a de mães e avós que temos ou tivemos. Adalgisa é Adalgisa Moraes da Silva. Mais uma Silva quase anônima nesse país de silvas. Para mim é uma heroína que tive o prazer de conhecer em 2009, quando vim a primeira vez a São Domingos do Araguaia.
Naquela manhã de sol e mormaço ouvi o relato de Adalgisa sobre o período em que conviveu – e ajudou- com os guerrilheiros do Araguaia. Adalgisa e o marido, Frederico Lopes, foram alguns dos camponeses que simpatizaram com os paulistas, os militantes que se embrenharam nas matas do Araguaia tentando algo diferente naquele local.
Frederico foi preso e apanhou tanto, mas tanto dos militares, que ficou descompensado das ideias. Nunca mais conseguiu se recuperar. Quando retornou pra casa, costumava ter alucinações. Atacava Adalgisa, rasgava-lhe as roupas, batia. Resultado de dois anos de torturas.
Adalgisa quase chora agora porque conseguiu este ano receber o dinheiro da indenização a que tinha direito. Recebeu 140 mil reais e conseguiu construir uma casa de alvenaria- não é do jeito que eu queria, ela diz- bem diferente da casa de madeira bem pobre que conheci.
Adalgisa está um pouco surda. Tem mais de 80 anos. Comeu o pão que o diabo amassou para criar os 12 filhos sem ajuda de Frederico, preso. Como nunca deixou que os filhos virassem pedintes, fez de tudo um pouco.
Peço para Thiago fazer fotos deles no mesmo local onde em 2009 posaram para Tarso Sarraf. O cenário atrás deles é que mudou. A casa mudou.
Me despeço deles feliz. Embora seja duro ouvir o relato de Adalgisa e de soslaio observar o olhar perdido de Frederico, como se não estivesse totalmente ali. Frederico não anda mais, fala pouco. O olhar é quem fala por ele.
Foi Sezostrys que me levou novamente até a casa dos dois. Ao me despedir olho mais uma vez para o casal e sinto estar ali um pedaço da historia viva do país. É de gente como Adalgisa e Frederico que a história é feita. Só que raramente eles podem contá-la. Lembro do livro de Leonencio Nossa sobre o major Curió e o que ele diz, de mesmo a esquerda oficial tratá-los como massa, grupo de apoio, simpatizantes. Nunca como protagonistas, coisa que eles foram, com certeza. Adalgisa arriscou a vida, transportando munição para guerrilheiros. Frederico perdeu a razão e a lucidez.
Tenho muito mais respeito e admiração por eles do que por gente como João Amazonas.
Saímos de lá e decidimos ir até Marabá para apressar Paulinho Fonteles. Vamos até a aldeia Suruí, a 50 km de São Domingos.
Fiquei lembrando da longa conversa que tive com Pedro Matos, um senhor de mais de 70 anos, cheio de histórias boas pra contar. Matos é um Machado. Ao me ver sentado em uma cadeira de encosto em frente ao hotel, no inicio de noite, mp4 ao ouvido, pergunta se sou o repórter que está na cidade. Digo que sim e me apresento, como Ismael. Ele retruca: Machado? Digo que sim e ele diz que também é Machado.
E me pergunta se sei que a família Machado entrou no Brasil pelo Nordeste. Digo que sim, que meu pai era piauiense e minha mãe maranhense. Ele me fala de familiares ancestrais machadianos no Piauí. Percebo que a raiz pode e deve ser a mesma. ‘Há dois ramos dos machados, os pobres e os que enriqueceram’, diz ele. Digo que sou do galho pobre.
E ficamos conversando longo tempo.
Jantar em São Domingos do Araguaia é sonho. Só espetinhos de churrasco e olhe lá.
Mas já é dia seguinte e estamos pegando a estrada para ir a aldeia Suruí. Nos abastecemos de uns pães de queijo e água. Não sabíamos ainda, mas seria o almoço do dia.
Me resguardo da Roberta Miranda que grasna no carro ouvindo outras coisas no MP4.
A aldeia Sororó-Suruí fica no centro, creio eu, da reserva. Um campo de futebol fica bem no meio da aldeia, um barracão coberto de palha é o ponto de reunião e encontro. As casas são parecidas com as casas de conjunto habitacional, de alvenaria, pequenas.
Temos de esperar o cacique Mairá chegar para poder termos liberação para entrevistas. Se não fizermos isso podemos correr o risco de por tudo a perder. É esperada também a chegada da Comissão Nacional da Verdade. Só chegaria no miolo da tarde.
Ficamos por ali, gastando tempo, conversando amenidades. Os mais velhos me interessam mais porque sei que são eles que tem a história que vim buscar. A participação dos índios na guerrilha do Araguaia é um fato que só agora começa a ser contado. Quero ser um dos repórteres a contar essa história.
Não há como nós, bando de cabras safados, não ficarmos ouriçados com a beleza de uma moça índia que desfila pra lá e pra cá com um vestidinho verde curto. Thiago faz fotos disfarçadamente. ‘É casada’, nos alerta Sezostrys. Uai, ninguém quer casar com a moça, só olhar mesmo...
Thiago e Da Silva adquirem flechas. Depois Thiago me conta uma história curiosa a ver com a questão da umbanda e a flecha que acabara de ganhar. Mistérios do além terra, além consciência.
Com a chegada do povo da comissão, a coisa se encaminha. Depois da permissão do cacique, que concorrera a vereador, perdendo, começo a fazer entrevistas, colher relatos. Thiago bola as fotos que precisamos. Sugiro uma.
É fim de tarde, quase início de noite, quando saímos da aldeia. Na entrada da reserva, pedimos para Paulinho tirar uma foto, registro de nossa passagem no local.
Decidimos jantar em Marabá, já que a experiência da noite anterior estava viva. Ainda dá tempo de ver parte do segundo jogo do Paysandu. Sinto que perdemos a grande oportunidade de sair com uma vantagem enorme nessa semifinal. Depois encaramos uma caldeiradadecepcionante, Da Silva e eu.
Metade dela fica na terrina.
Metade dela fica na terrina.
No hotel, cansado, vejo depois do banho o filme Iracema, uma transa amazônica. Vejo como se buscasse um pouco mais de sentido e reflexão para essa região estranha que vivo.
Temos mais o fim de semana de trabalho. E a volta para casa.