domingo, 25 de março de 2012

Triste partida de um malandro

Não tinha nem pai nem mãe. Oscilou entre São Luís e Belém. O Ver-o- Peso o aninhou. Assim se fez malandro indo e voltando. Um doutor honoris em sobrevivência. Pouco mais de um metro e setenta. Uns 90 quilos. Cabelos encaracolados. Quase sempre em desalinho. Cantarolava  samba de raiz sem nunca completar uma letra.
Sempre usava camisa de manga comprida, apesar do calor de Belém. Talvez para ocultar as cicatrizes das brigas em que se meteu. Era claro. E sempre andava armado com um lenço para enxugar o suor que escorria da testa. Vendeu de tudo. Não sei se a alma.
Em terra de Nazaré,  foi devoto do jogo de porrinha e do carteado. Ele acreditava que ganharia uma grana no jogo do bicho. Nega e Careca  ofertavam a ele um número do dia. “Hoje vai ser cachorro”. Era comum a associação com algum sonho ou pesadelo. Aprendi que sonhar com morte é jacaré. Nunca entendi a lógica.
Raro era o malandro recusar um copo de cerveja. Às vezes quando aportava na barraca da Mira, já havia mamado umas doses de conhaque antes.  Foi um ás em comprar fiado. As pessoas brigavam, mas, assim que ele honrava a dívida, voltavam a cair na lábia do suburbano.  Um dia ele contou onde morava. Sei que é uma quebrada. Não lembro o nome do lugar.
Foi casado. Teve dois filhos. Eles ainda são pequenos. Pelo jeito, o enlace com a mãe das crianças foi tarde. A aparência do “jogador” beirava a casa dos 50. Outro dia levou o casal de rebentos para passear no lugar que lhe deu a sobrevivência. Neste dia não o vi ingerir bebida. E nem ofereci.    Mas, são tantas as distrações no mercado.
Por um tempo o velho de guerra se enrolou com uma evangélica. A missão da irmã era ingrata. Desentortar o malandro do Ver-o-Peso com mais de 30 anos de praça. Parece que chegou perto. Por uns tempos ele sumiu da área. Aparecia vez em quando. Nessas aparições, após o encontro com a religiosa renunciou ao álcool. Ia ao mercado para matar a saudade dos companheiros de porrinha e outros jogos. Ela chegou a ir buscá-lo.
Narram no mercado que por conta dela puxou seis meses de cadeia. As informações são desencontradas. Uns dizem que ela, para se vingar da infidelidade do malandro, o denunciou por agressão e pedofilia. Não sei se procede a fofoca. O certo é que ele ficou vendo o sol nascer quadrado.
Ele nunca recordava o meu nome. E fazia mais de três anos que a gente tomava umas cervas sempre na mesma barraca. Pedi a ele lembrar o nome do goleiro do São Paulo. Faz uns 20 dias que ele desencarnou. A Rai que informou. Ela atende na barraca que  foi da Mira. O nosso QG. Estava com os olhos marejados. Não reclamou da dívida. Parecia triste com os derradeiros capítulos da vida de André.
“Acho que foi com você, naquele dia, que ele tomou as últimas cervejas”, falou Rai. Uma senhora de meia idade. Cabelos tingidos de amarelo. André perdia peso a olhos vistos.  Todos calculavam ser AIDS. Ele era frequentador dos “inferninhos” que flutuam nos arredores do Ver- o- Peso. Naquele dia ele reclamava de dor no estômago. Tomou de tudo que os biriteiros e erveiras indicavam. Ele acreditava que era úlcera.
Pouco mais de um mês internado foi a óbito. Morreu pele e osso. Foi sepultado como indigente. Num desses sacos pretos que o pessoal do IML cata mortos na periferia. Foi vítima de um câncer no pâncreas.  

Chove em Belém. Quem sabe, uma homenagem aos entes invisíveis que partem ser tempo de dizer adeus.  

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